Você já imaginou o quanto é difícil, complicado, complexo e extenuante escrever um livro? Inventar um enredo, criar personagens, escolher ambiente e período em que a história se passa, por qual ponto de observação (foco narrativo) optará? Quantas vezes terá de revisar capítulos, eliminar parágrafos e estruturar frases ainda correndo o risco de ter de fazer tudo de novo ou de alguns pontos exaustivamente corrigidos saírem errados?
Se um só livro nos traz um trabalho imenso, imagine escrever cerca de noventa preocupando-se ao mesmo tempo com colaborações em dois dos maiores jornais brasileiros, revistas semanais e especializadas, palestras, cursos no exterior, tradução de suas obras em outros continentes? Essa é a vida agitada de um dos maiores – senão o maior – escritores brasileiros dos últimos cinqüenta anos: Moacyr Scliar.
Membro de uma família de imigrantes judeus instalados em Porto Alegre, Scliar comenta em algumas crônicas a influência da mãe que, mesmo sabendo do orçamento deficitário, não lhe deixava faltar livros. O adolescente freqüentador da feira do livro da capital gaúcha voltaria anos mais tarde ao evento na condição de um dos mais importantes escritores brasileiros contemporâneos.
O início da carreira se deu de maneira pouco pacífica. Embora escrevesse, como ele mesmo gosta de frisar, em papéis, guardanapos, folhas coloridas ou qualquer outro suporte que lhe caísse nas mãos, em qualquer lugar e em qualquer momento, o primeiro trabalho foi mal recebido pelos parentes e amigos que o leram e o criticaram duramente.
Diferentemente de muitos pretensos artistas (escritores, compositores, escultores, pintores etc) que desistem diante das primeiras críticas e se acomodam ante a possibilidade de trabalhos extenuantes que os levarão a gastar mais do que podem ou a se privar de situações rotineiras efemeramente prazerosas, o escritor gaúcho não desistiu e, quatro anos depois da estréia, encetou nova e exitosa tentativa.
Daí em diante, enveredou pelos ensaios, passeou pelos romances, deliciou-se em novelas, brincou nos contos, vivenciou a crônica, ganhou prêmios nacionais e internacionais (participando também de júris mundo afora), lecionou os meandros e as peculiaridades da arte da escrita para profissionais estrangeiros, elegeu-se membro da Academia Brasileira de Letras e, numa militância claramente literária, ajudou a fundar a Associação Gaúcha de Escritores na década de 1980.
Em uma de suas centenas de entrevistas, Scliar nos relata que – assim como Antônio Candido e Nelson Rodrigues – a colaboração em jornais o ajudou a aperfeiçoar a escrita na medida em que prazo e tamanho de textos amadureciam seu estilo. Estilo que o acompanha em grande parte de seus romances e novelas, caminhando tranquilamente entre seus livros de ensaios, entre os quais destacamos “Enigmas da culpa”.
Embora os estudiosos de sua extensa produção literária apontem as reinvenções e as reinterpretações das relações judaicas em enredos ou em alguns personagens, discordaria quase integralmente ao vislumbrá-la como uma leitura subjetiva do fato social que é a religião. Em “O exército de um homem só”, “Os deuses de Raquel”, “Max e os felinos” ou em “Os voluntários”, a busca pela salvação ou pela remissão de ações e de pecados são situações encontradas em todas as religiões cujos seguidores se julgam culpados diante da infração de normas. Assim é o cristianismo – e suas doutrinas heterodoxas – que, na concepção de Nietzsche, se deixou transformar numa religião de ódio, terror e medo.
O realce empreendido por Scliar repousa na capacidade de contar uma boa história que prende a atenção de seus leitores. Uma de suas qualidades: o ritmo que o romancista emprega em sua narrativa. Se, como supõe o ensaísta mexicano Carlos Fuentes, a Literatura se compõe de Linguagem e Imaginação, Scliar consegue reunir as duas características de maneira amadurecida e arrojada na medida em que, contando, inventando ou se inspirando em passagens ou extensos fragmentos bíblicos, consegue prender nossa atenção em uma história que dificilmente conseguiríamos contextualizar, como em alguns dos contos e crônicas de “Histórias para (quase) todos os gostos”.
Tamanha a maturidade exalada da pena do escritor gaúcho que lemos um romance com a mesma facilidade que passamos os olhos em suas crônicas publicadas semanalmente na “Folha de São Paulo” ou seus artigos bi-semanais no “Zero Hora” (Porto Alegre – RS). A linguagem límpida e corrente da crônica aplicada ao romance não redundaria em superficialidade? De nenhuma maneira. A profundidade não está na simplicidade de seu texto, mas no tratamento e na exteriorização de suas idéias. Nesse item, Scliar consegue gozar de plenitude, maturidade e cosmopolitismo invejáveis.
*Publicado originalmente na Série Especial Dez Escritores Contemporâneos do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 31 de dezembro de 2009.
quinta-feira, 31 de dezembro de 2009
DESPEDIDA
Olá, eventuais leitores de “Literatura”.
Encontramo-nos semanalmente nos últimos trinta e quatro meses, sendo vinte e seis deles nesta coluna em que escrevi – ou tentei escrever – contos, crônicas e críticas literárias, colaborando eventualmente na segunda página com artigos políticos, sociais, econômicos e culturais.
Durante esses dois anos e dois meses, recebi pouco mais de cento e oitenta mensagens eletrônicas de leitores que concordavam, discordavam, se perdiam em reflexões inconsistentes ou se armavam de argumentos bem estruturados.
Fui abordado nas ruas, restaurantes, livrarias e universidades por leitores assíduos de Palmital, Assis, Maracaí, Paraguaçu Paulista e Tarumã cujos contatos contribuíram para o amadurecimento diário e o aperfeiçoamento contínuo que culminaram na conquista de seis prêmios literários nas categorias contos e crônicas em concursos de São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul.
Grande parte desse sucesso decorre da escrita semanal em jornal que, nas palavras do acadêmico e imortal Moacyr Scliar, estimula a disciplina, baseando-se no tamanho do texto e no prazo de entrega. Pela criação da coluna e pelo convite para escrevê-la, agradeço a Carolina Marquezini, diretora de redação.
Se a vida constitui-se de etapas e se Sêneca estava correto ao despertar os amigos para suas peculiaridades, meu ciclo de colaborações no Jornal de Assis se encerra para que tantos outros comecem e, em seus tempos, igualmente findem.
Fico absolutamente grato aos leitores anônimos ou identificados que me acompanharam regular ou eventualmente, a Carolina Marquezini e a toda a equipe do Jornal de Assis, aos amigos que fiz por meio da imprensa assisense, entre eles o filósofo Marcio Alexandre da Silva e o grande poeta brasileiro Antônio Lázaro de Almeida Prado, aos escritores com quem mantive contato e às editoras que confiaram – nem sempre gostando do que liam – em nosso trabalho.
Aproveito para desejar boa sorte ao novo titular da coluna ou das colunas que vierem a sucedê-la, exprimindo sinceros votos de que a Literatura e a Arte sejam semanalmente brindadas com crônicas, contos e críticas literárias, sempre que possível estabelecendo relações na grande área de ciências humanas, destacadamente a teoria Literária, a historiografia, a sociologia, a filosofia e a antropologia.
Assim como os demais, o ano que se aproxima nos traz surpresas. Elas são indispensáveis para nos apresentar caminhos de evolução. Meus caminhos de evolução foram – e continuam sendo – possíveis graças a estrutura familiar que tenho. Gostaria sinceramente que, no próximo ano, cada um de vocês tivesse a sorte e o privilégio de ter uma grande família.
Sempre que lembro, agradeço pelos pais que tenho: o psicólogo José Antônio da Silva e a pediatra Veralúcia Regis do Nascimento Silva. Jamais seria nada sem eles assim como jamais seria nada sem minhas avós Laura (em memória) e Isaura e, muito menos, sem meus irmãos Regis e Jovian. Até meu irmão Jovian - que não gosta muito ler - inicia seus entreveros de escrita.
Agradeço especialmente às minhas “filhasdrastas” Emily e Natália por fazerem da infância uma maneira de escapar de minha rabugice e a Adriana, pela paciência, pela dedicação e pela solicitude que brotam da prática diária do amor erótico e, predominantemente, fraterno.
Aos que nos acompanharam durante todo esse tempo, meus agradecimentos e votos de um fabuloso 2010.
*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 31 de dezembro de 2009.
Encontramo-nos semanalmente nos últimos trinta e quatro meses, sendo vinte e seis deles nesta coluna em que escrevi – ou tentei escrever – contos, crônicas e críticas literárias, colaborando eventualmente na segunda página com artigos políticos, sociais, econômicos e culturais.
Durante esses dois anos e dois meses, recebi pouco mais de cento e oitenta mensagens eletrônicas de leitores que concordavam, discordavam, se perdiam em reflexões inconsistentes ou se armavam de argumentos bem estruturados.
Fui abordado nas ruas, restaurantes, livrarias e universidades por leitores assíduos de Palmital, Assis, Maracaí, Paraguaçu Paulista e Tarumã cujos contatos contribuíram para o amadurecimento diário e o aperfeiçoamento contínuo que culminaram na conquista de seis prêmios literários nas categorias contos e crônicas em concursos de São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul.
Grande parte desse sucesso decorre da escrita semanal em jornal que, nas palavras do acadêmico e imortal Moacyr Scliar, estimula a disciplina, baseando-se no tamanho do texto e no prazo de entrega. Pela criação da coluna e pelo convite para escrevê-la, agradeço a Carolina Marquezini, diretora de redação.
Se a vida constitui-se de etapas e se Sêneca estava correto ao despertar os amigos para suas peculiaridades, meu ciclo de colaborações no Jornal de Assis se encerra para que tantos outros comecem e, em seus tempos, igualmente findem.
Fico absolutamente grato aos leitores anônimos ou identificados que me acompanharam regular ou eventualmente, a Carolina Marquezini e a toda a equipe do Jornal de Assis, aos amigos que fiz por meio da imprensa assisense, entre eles o filósofo Marcio Alexandre da Silva e o grande poeta brasileiro Antônio Lázaro de Almeida Prado, aos escritores com quem mantive contato e às editoras que confiaram – nem sempre gostando do que liam – em nosso trabalho.
Aproveito para desejar boa sorte ao novo titular da coluna ou das colunas que vierem a sucedê-la, exprimindo sinceros votos de que a Literatura e a Arte sejam semanalmente brindadas com crônicas, contos e críticas literárias, sempre que possível estabelecendo relações na grande área de ciências humanas, destacadamente a teoria Literária, a historiografia, a sociologia, a filosofia e a antropologia.
Assim como os demais, o ano que se aproxima nos traz surpresas. Elas são indispensáveis para nos apresentar caminhos de evolução. Meus caminhos de evolução foram – e continuam sendo – possíveis graças a estrutura familiar que tenho. Gostaria sinceramente que, no próximo ano, cada um de vocês tivesse a sorte e o privilégio de ter uma grande família.
Sempre que lembro, agradeço pelos pais que tenho: o psicólogo José Antônio da Silva e a pediatra Veralúcia Regis do Nascimento Silva. Jamais seria nada sem eles assim como jamais seria nada sem minhas avós Laura (em memória) e Isaura e, muito menos, sem meus irmãos Regis e Jovian. Até meu irmão Jovian - que não gosta muito ler - inicia seus entreveros de escrita.
Agradeço especialmente às minhas “filhasdrastas” Emily e Natália por fazerem da infância uma maneira de escapar de minha rabugice e a Adriana, pela paciência, pela dedicação e pela solicitude que brotam da prática diária do amor erótico e, predominantemente, fraterno.
Aos que nos acompanharam durante todo esse tempo, meus agradecimentos e votos de um fabuloso 2010.
*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 31 de dezembro de 2009.
quinta-feira, 24 de dezembro de 2009
PRESENTE DE NATAL
Ao lado do posto de saúde uma árvore de tronco grosso, galhos enormes e folhas frondosas proporciona uma sombra convidativa embaixo da qual estaciono, abro a porta do carona, sintonizo na Tribuna Soft FM ou introduzo um disco de ópera ou de música clássica ou de Sinatra ou de Altemar Dutra, armo minha cadeira de praia e escolho um dos quatro ou cinco livros que geralmente me acompanham. Alio a leitura literária à paisagem do Parque Ecológico João Domingos Coelho.
Vislumbrei um casal senil na extremidade oposta do quarteirão quando manobrava para estacionar numa dessas tardes. Ele disparou para a esquina em que eu parava. Ela caminhava com dificuldades, mão e pé esquerdos rijos. Revoltei-me pelo comportamento do marido, abandonando a esposa com dificuldades de locomoção. Ele distanciava-se rapidamente e, quando deduzi que viraria a esquina e desapareceria, se escondeu.
Na medida em que se aproximava, o marido, ouvidos atentos, circundava o tronco. Antes de alcançar a esquina, olhou para os lados, parou e o esperou sair de trás da árvore portando um rosa. Uma rosa que não estava em sua mão. Uma rosa que não estava plantada ali.
Abraçaram-se. Como atores que encenam uma mesma peça centenas de vezes sem perder a paixão da estréia, do primeiro contato com o palco, do primeiro enfrentamento com a platéia, da reticência da recepção imediata, ambos saíram sorrindo.
Baixei as faces sobre o volante. Chorei. Talvez pela sorte de testemunhar o mais fantástico espetáculo de supremacia estética. Certamente pela felicidade de, naquele instante moderno e indiferente, transportar-me para um passado de afabilidade transcendental.
Vislumbrei um casal senil na extremidade oposta do quarteirão quando manobrava para estacionar numa dessas tardes. Ele disparou para a esquina em que eu parava. Ela caminhava com dificuldades, mão e pé esquerdos rijos. Revoltei-me pelo comportamento do marido, abandonando a esposa com dificuldades de locomoção. Ele distanciava-se rapidamente e, quando deduzi que viraria a esquina e desapareceria, se escondeu.
Na medida em que se aproximava, o marido, ouvidos atentos, circundava o tronco. Antes de alcançar a esquina, olhou para os lados, parou e o esperou sair de trás da árvore portando um rosa. Uma rosa que não estava em sua mão. Uma rosa que não estava plantada ali.
Abraçaram-se. Como atores que encenam uma mesma peça centenas de vezes sem perder a paixão da estréia, do primeiro contato com o palco, do primeiro enfrentamento com a platéia, da reticência da recepção imediata, ambos saíram sorrindo.
Baixei as faces sobre o volante. Chorei. Talvez pela sorte de testemunhar o mais fantástico espetáculo de supremacia estética. Certamente pela felicidade de, naquele instante moderno e indiferente, transportar-me para um passado de afabilidade transcendental.
sábado, 19 de dezembro de 2009
DALTON TREVISAN: O MAIOR CONTISTA DO SÉCULO XX
Recebi uma mensagem eletrônica de uma leitora perguntando da necessidade de títulos grandiloqüentes para os trabalhos dos escritores. Referia-se particularmente aos artigos sobre Cyro dos Anjos e Antônio Lázaro de Almeida Prado e as concepções distintas – muitas vezes antagônicas – de seus lugares no campo literário brasileiro.
A leitora está correta. A indiferença ou objetividade é bem aceita no meio acadêmico. Porém, a objetividade e a indiferença se afastam do calor e do frenesi provocados pela paixão. Minha concepção de crítico literário, de leitor e de apaixonado me conduzem pelos caminhos da grandiloqüência. Provavelmente na esperança de jogar os germens da paixão nos trajetos de outras pessoas, como parece ter sido com a leitora em questão, a quem agradeço a mensagem e com quem compartilho outras paixões literárias, entre elas Dalton Trevisan.
Embora considerado – nos mesmos moldes de Nelson Rodrigues – um autor pornográfico e erótico, Dalton Trevisan se erige ao patamar de maior contista do século XX. Capaz de delinear os comportamentos do cotidiano urbano usando linguagem prosaica altamente poética, o escritor paranaense fez do conto a ferramenta literária capaz de transmitir desejo, excitação e angústia.
Alguns estudiosos valem-se do minimalismo para descrever sua qualidade maior. O minimalismo – que significa usar o mínimo de palavras, de frases, de parágrafos ou de capítulos – é um fator importante no estilo do contista paranaense, mas reduzir seu talento à essa explicação limitada e abandonar a segundo plano sua originalidade na reinvenção semântica e sintática são absurdos.
Quando nos debruçamos sobre a obra ou descompromissadamente passamos os olhos por algum conto, as dúvidas sobre a economia frasal são respondidas pelos eflúvios de alta densidade poética (absolutamente) difíceis de imitar. Apenas escrever telegraficamente não representa a capacidade de criação.
O segundo ponto em nossa observação se mantém nos cenários urbanos em que os personagens transitam entre o retrato diário e os desejos abafados. O abuso de uma jovem por um grupo de homens, os estupros, as delícias da infidelidade ou a aceitação dos encontros fortuitos da esposa com amantes diversos são retratos da Curitiba que representa os percalços não apenas no Brasil. Daí que, nesse item, os contos de Dalton Trevisan são verossímeis (porque encontram guarida na realidade) e universais (acontecem em qualquer lugar e em qualquer tempo).
Assinalar o conto de Dalton Trevisan como pornográfico ou erótico também se afasta da realidade. Contos pornográficos se distanciam dos subentendidos inerentes à Literatura e, na maioria das vezes, são tracejados pela repetição sem criatividade e sem o tratamento artístico da linguagem. Eróticos são os que permitem regozijo em pensamentos e excitação pragmática, conquanto não descrevam integralmente as cenas de desejos.
Grande parte dos contos de Dalton Trevisan não se enquadra nem na corrente pornográfica nem na erótica, optando pelo simples retrato de figuras cotidianas urbanas: a ninfomaníaca, o homem que sofre de priapismo, a jovem que se entrega aos desejos do velho ou a professora madura em busca da sujeição do aluno.
A manifestação do cotidiano se evidencia pela superação de conflitos. O homem traído muda-se continuamente e continuamente aceita a gravidez da esposa que leva os amantes para casa e, entre as roupas do marido expostas no varal, estende cuecas pertencentes a outros homens. Idêntica superação de conflito mostra-se na retomada do caminho da jovem abusada por um grupo ou pelos transeuntes, ignorando a condição humana, deixam um homem morrer enquanto seus objetos são roubados lentamente.
O estilo e a linguagem de Dalton Trevisan ainda são invejáveis por dois motivos que o acompanham desde sua estréia em 1948 com o famigerado “O vampiro de Curitiba”: a estabilidade e a maturidade. Decorridos mais de sessenta anos de ofício da escrita, Dalton Trevisan mantém um estilo estável que o consagrou em gerações de leitores. Enquanto verificamos pulos, controvérsias, incoerências, imperfeições e contraposições em outros escritores, Trevisan exibe-se numa maturidade inacreditável, como se antes de tudo a poesia se infiltrasse em seus enredos curtos.
Apenas por esses motivos, Dalton Trevisan é, sem sombra de dúvida e sem medo de errar, o maior contista brasileiro do século XX, ainda em plena e invejável atividade no XXI. Sua obra, também lançada em edição de bolso a preços acessíveis, pode ser encontrada nas boas livrarias. Não indico um livro específico – porque a obra estável e madura nos permite ler qualquer conto –, mas sugiro aos aspirantes a escritores e aos leitores em atividade que procurem conhecer esse grande mestre da literatura como maneira de entender a genialidade brasileira.
*Publicado originalmente na Série Dez Escritores Contemporâneos do Oeste Notícias (Presidente Prudente - SP) de 18 de dezembro de 2009.
quinta-feira, 17 de dezembro de 2009
MULHERES DO CALENDÁRIO
Sinceramente confesso minha incapacidade de escrever uma crônica, um conto ou um romance sobre essas mulheres inigualáveis, porém tranquilamente sugeriria aos fotógrafos, aos artistas plásticos, aos designers e aos amantes da arte da imagem uma mistura de perenidade e popularidade: um calendário. Que tal um calendário de mulheres de quarenta anos? Arriscaria batizá-lo “Balzaquianas contemporâneas”.
Janeiro começaria com a Penélope Charmosa de Maringá em vestido transparente pela principal e mais famosa Avenida da Cidade Canção: a Colombo festejaria o sorriso discreto e os motoristas buzinariam em cortejo festivo.
O calor e as festas carnavalescas se concretizariam no sorriso e no gingado deslumbrante da atriz Carla Marins, caminhando em Florianópolis, biquíni branco, chapéu de palha. Toque de classe e bom gosto.
O calendário não teria importância sem a jornalista Ana Paula Padrão. A ela seria destinado o mês de março. Short branco, camiseta azul, cabelos soltos, maquiagem leve e sandálias coloridas imprimiriam a leveza das faces joviais ao corpo de mulher cosmopolita. Deslizaria pelo Parque do Povo em Presidente Prudente (SP) e, ao fundo da imagem, a insinuação de dados econômicos.
Que tal um fim de semana de abril em Petrópolis? Uma quarentona genial e naturalmente bela desfilaria pelas ruas da cidade imperial, esbanjando sutileza e carisma: Sandra Bullock.
Os ventos de maio seriam brindados nos trejeitos e no casaco – menos com finalidade prática do que estética – delicadamente disposto sobre os ombros jubilosos de Helena Ranaldi, cujos cabelos pretos – e preferencialmente após os ombros – seriam presos por uma arco discreto de brilhantes.
Junho exigiria a delicadeza e sugeriria o sorriso de uma linda mulher. Sugestões? Julia Roberts ouvindo Ravel ou Chopin no rompimento do crepúsculo nas areias de Lucena (PB). O espetáculo da metamorfose das cores no horizonte ensejaria alguns suspiros de angústia e do medo natural das aventuras efêmeras.
As noites de Julho nos impelem a ficar agarradinhos na chuva, na fazenda ou numa casinha de sapê. Paula Toller desfilaria em um jogo de luz e sombra nas fachadas da Quinta da Boa Vista.
Agosto constitui-se na mistura do gelo que teima em ficar e do calor que insiste em arrombar a porta da primavera. A voz esplêndida de Drica Moraes poderia vir de brinde. Vez por outra teríamos o privilégio de apertar um botão e ouvir declamações de poesias de Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Pessoa, Cecília Meireles, Affonso Romano de Sant’Anna ou Antônio Lázaro de Almeida Prado.
Se Setembro indiscutivelmente traz os benefícios das melodias dos pássaros reunidas aos desejos intransponíveis das árvores de passearem nas redondezas e estabelecerem novas amizades, Maria Padilha desfilaria em alguns trechos floridos do Parque João Domingos Coelho em Assis, óculos escuros ameaçando despencar dos cabelos.
Nada possuo contra mulheres na política. De modo que Outubro estamparia a sacada da Casa Rosada e, envolvida na faixa presidencial argentina, Cristina Kirchner posaria numa mistura invejável de beleza e autoritarismo.
Ainda na política, talvez convidássemos a monarca da Jordânia para figurar em novembro. A rainha Rânia desprenderia as maçãs e destacaria os olhos harmônicos e multicoloridos em uma foto fechada sobre eles.
Dezembro, espaço em branco. Os compradores do calendário elegeriam a mulher balzaquiana contemporânea que mais lhes despertasse interesses. De maneira fugidia, discreta, secreta, acanhada ou angustiante, roubariam uma foto empunhando a câmera fotográfica atrás de uma árvore, na fila do supermercado ou entre a entrada e saída de veículos em um estacionamento qualquer.
As meninas, as adolescentes e as jovens me desculpem, mas maturidade é fundamental. Se eventualmente o calendário das “Balzaquianas contemporâneas” saísse, eu compraria uns trinta ou quarenta para espalhá-los nos locais que geralmente freqüento, sempre dando um jeito de grampear as folhas a fim de que março se eternizasse todos os dias, todos os meses, todos os anos.
*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 17 de dezembro de 2009.
Janeiro começaria com a Penélope Charmosa de Maringá em vestido transparente pela principal e mais famosa Avenida da Cidade Canção: a Colombo festejaria o sorriso discreto e os motoristas buzinariam em cortejo festivo.
O calor e as festas carnavalescas se concretizariam no sorriso e no gingado deslumbrante da atriz Carla Marins, caminhando em Florianópolis, biquíni branco, chapéu de palha. Toque de classe e bom gosto.
O calendário não teria importância sem a jornalista Ana Paula Padrão. A ela seria destinado o mês de março. Short branco, camiseta azul, cabelos soltos, maquiagem leve e sandálias coloridas imprimiriam a leveza das faces joviais ao corpo de mulher cosmopolita. Deslizaria pelo Parque do Povo em Presidente Prudente (SP) e, ao fundo da imagem, a insinuação de dados econômicos.
Que tal um fim de semana de abril em Petrópolis? Uma quarentona genial e naturalmente bela desfilaria pelas ruas da cidade imperial, esbanjando sutileza e carisma: Sandra Bullock.
Os ventos de maio seriam brindados nos trejeitos e no casaco – menos com finalidade prática do que estética – delicadamente disposto sobre os ombros jubilosos de Helena Ranaldi, cujos cabelos pretos – e preferencialmente após os ombros – seriam presos por uma arco discreto de brilhantes.
Junho exigiria a delicadeza e sugeriria o sorriso de uma linda mulher. Sugestões? Julia Roberts ouvindo Ravel ou Chopin no rompimento do crepúsculo nas areias de Lucena (PB). O espetáculo da metamorfose das cores no horizonte ensejaria alguns suspiros de angústia e do medo natural das aventuras efêmeras.
As noites de Julho nos impelem a ficar agarradinhos na chuva, na fazenda ou numa casinha de sapê. Paula Toller desfilaria em um jogo de luz e sombra nas fachadas da Quinta da Boa Vista.
Agosto constitui-se na mistura do gelo que teima em ficar e do calor que insiste em arrombar a porta da primavera. A voz esplêndida de Drica Moraes poderia vir de brinde. Vez por outra teríamos o privilégio de apertar um botão e ouvir declamações de poesias de Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Pessoa, Cecília Meireles, Affonso Romano de Sant’Anna ou Antônio Lázaro de Almeida Prado.
Se Setembro indiscutivelmente traz os benefícios das melodias dos pássaros reunidas aos desejos intransponíveis das árvores de passearem nas redondezas e estabelecerem novas amizades, Maria Padilha desfilaria em alguns trechos floridos do Parque João Domingos Coelho em Assis, óculos escuros ameaçando despencar dos cabelos.
Nada possuo contra mulheres na política. De modo que Outubro estamparia a sacada da Casa Rosada e, envolvida na faixa presidencial argentina, Cristina Kirchner posaria numa mistura invejável de beleza e autoritarismo.
Ainda na política, talvez convidássemos a monarca da Jordânia para figurar em novembro. A rainha Rânia desprenderia as maçãs e destacaria os olhos harmônicos e multicoloridos em uma foto fechada sobre eles.
Dezembro, espaço em branco. Os compradores do calendário elegeriam a mulher balzaquiana contemporânea que mais lhes despertasse interesses. De maneira fugidia, discreta, secreta, acanhada ou angustiante, roubariam uma foto empunhando a câmera fotográfica atrás de uma árvore, na fila do supermercado ou entre a entrada e saída de veículos em um estacionamento qualquer.
As meninas, as adolescentes e as jovens me desculpem, mas maturidade é fundamental. Se eventualmente o calendário das “Balzaquianas contemporâneas” saísse, eu compraria uns trinta ou quarenta para espalhá-los nos locais que geralmente freqüento, sempre dando um jeito de grampear as folhas a fim de que março se eternizasse todos os dias, todos os meses, todos os anos.
*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 17 de dezembro de 2009.
sexta-feira, 11 de dezembro de 2009
ALMEIDA PRADO: MAGNIFICÊNCIA POÉTICA
Confesso a facilidade de criticar romances, novelas, contos, crônicas, teatro (restringindo-me apenas ao texto), ensaios. Também confesso que, embora existam centenas de livros teóricos e pragmáticos lecionando as técnicas de análise de poemas, leio poesia menos com uma função mecânica do que com um desejo passional, emotivo, sentimental, espiritual e inexplicável. Poesia é como a paixão: bateu, valeu. Não tem explicação. Você já viu alguém apaixonando explicando o amor de maneira racional?
Por essa razão, desconheço os motivos que desde sempre me levaram à paixão por Manuel Bandeira e Augusto dos Anjos e, mais recentemente, Carlos Drummond de Andrade e Antônio Lázaro de Almeida Prado.
Mais ou menos um metro e sessenta de altura, óculos graves cravados em faces morenas sobre as quais cabelos puxados para trás aliam-se à voz firme e erudita de professor universitário. Doutor e Livre Docente em língua e Literatura italianas pela Universidade de São Paulo (USP), Almeida Prado abandonou a capital paulista e cidades de grande porte para se instalar em Assis, batizada por ele Cidade Fraternal, na qual ajudou a fundar e consolidar o campus da Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho e de onde saíram brilhantes nomes de nossa Literatura, entre eles, além de Almeida Prado, os críticos literários Antônio Cândido e Antônio Soares Amora.
Embora a geração acadêmica atual ganhe prêmios e reconhecimento – destacando-se Luiz Antônio de Assis Brasil, Deonísio da Silva, Cristovão Tezza e Milton Hatoum –, Almeida Prado pertence à época em que teoria e prática literárias apresentavam-se dissociadas ao grande público, daí que conhecemos poucos bons detentores das teorias e metodologias que conseguiram elaborar obras criativas, inteligentes, inteligíveis e interessantes como temos visto recentemente.
Rompendo o estigma da inaplicabilidade de teorias à prática criativa, Almeida Prado passeou pelos campos da crítica, da análise e da criação literárias, dos ensaios, da compreensão historiográfica.
Dedicou-se, como ainda vem se dedicando, à crítica literária em revistas e jornais gerais e especializados, elegendo a honestidade intelectual e a franqueza teórica como norteadores de seu trabalho. Como analista literário, produziu dezenas de artigos científicos e participou de congressos, seminários, simpósios, mesas-redondas e bancas de mestrado e doutorado.
Publicou livros de ensaios nas décadas de 1960/1970 que tratavam da obra de literatos italianos: Salvatore Quasímodo e Cesare Pavese. Versado em línguas, traduziu filósofos e intelectuais, entre eles Giambattista Vico e Giuseppe Ungaretti.
Percorrendo os difíceis, cáusticos e desafiadores percursos da história, a quatro mãos com Maria Silvia Moreli escreveu “Assis – passado, presente e futuro”, livro com rico e diversificado acervo iconográfico que detalha a trajetória da cidade fundada pelo capitão Assis e internacionalmente reconhecida pelo campus da Universidade Estadual Paulista.
Apesar do amplo trabalho acadêmico e teórico desenvolvido em mais de cinco décadas, Almeida Prado realça sua habilidade literária na criação, manifestada harmoniosa e maduramente nas poesias.
Por ocasião das comemorações dos cem anos de Assis (SP), arregimentou sua produção artística em “Ciclo das chamas” (Ateliê Editorial, 2005) e, anos mais tarde, nos versos de “Lúcido Sonho” (Olavo Brás, 2008), em que grande parte dos títulos poderia facilmente ser reunida numa temática particular: o amor pela esposa Themis.
Os grandes escritores buscam a forma perfeita, a frase única, o verso singular e contundente. A bibliografia de Carlos Drummond de Andrade seria anódina sem “Anúncio classificado”. Manuel Bandeira pouco se destacaria sem “Poemeto erótico”. Augusto dos Anjos se distanciaria do ápice caso não tivesse concebido “Versos íntimos” e “Psicologia de um vencido”. E Almeida Prado?
Almeida Prado conquista e mantém um lugar privilegiado na poesia brasileira não apenas por sua densidade poética exalada em todo o seu trabalho, mas principalmente na elaboração de um poema. Se pudesse escolher um poema que pudesse demonstrar toda sua magnitude, “Desafio orquestral” indubitavelmente seria eleita a poesia cujos últimos versos ressoam oniricamente: “Que eu faço versos/ mas sem espinhos,/ com partituras/ pros passarinhos...”
O leitor desatento e pouco poético se perguntará o que tem de tão especial nesses versos. O primeiro ponto reside na distinção entre a poesia como instrumento inerente à humanização e a árdua lembrança de épicos intermináveis. O segundo ponto, o ponto mais brilhante, fica por conta da criação de partituras. Partituras não para compositores, amantes da música ou instrumentistas. Partituras para passarinhos correrem os olhos e traçarem a harmonia e a melodia de seu canto. Desde quando passarinhos precisam de partituras? Desde quando a poesia se banhou de tanta beleza em tão poucos versos?
*Publicado originalmente na Série Especial Dez Escritores Contemporâneos do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 11 de dezembro de 2009.
Por essa razão, desconheço os motivos que desde sempre me levaram à paixão por Manuel Bandeira e Augusto dos Anjos e, mais recentemente, Carlos Drummond de Andrade e Antônio Lázaro de Almeida Prado.
Mais ou menos um metro e sessenta de altura, óculos graves cravados em faces morenas sobre as quais cabelos puxados para trás aliam-se à voz firme e erudita de professor universitário. Doutor e Livre Docente em língua e Literatura italianas pela Universidade de São Paulo (USP), Almeida Prado abandonou a capital paulista e cidades de grande porte para se instalar em Assis, batizada por ele Cidade Fraternal, na qual ajudou a fundar e consolidar o campus da Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho e de onde saíram brilhantes nomes de nossa Literatura, entre eles, além de Almeida Prado, os críticos literários Antônio Cândido e Antônio Soares Amora.
Embora a geração acadêmica atual ganhe prêmios e reconhecimento – destacando-se Luiz Antônio de Assis Brasil, Deonísio da Silva, Cristovão Tezza e Milton Hatoum –, Almeida Prado pertence à época em que teoria e prática literárias apresentavam-se dissociadas ao grande público, daí que conhecemos poucos bons detentores das teorias e metodologias que conseguiram elaborar obras criativas, inteligentes, inteligíveis e interessantes como temos visto recentemente.
Rompendo o estigma da inaplicabilidade de teorias à prática criativa, Almeida Prado passeou pelos campos da crítica, da análise e da criação literárias, dos ensaios, da compreensão historiográfica.
Dedicou-se, como ainda vem se dedicando, à crítica literária em revistas e jornais gerais e especializados, elegendo a honestidade intelectual e a franqueza teórica como norteadores de seu trabalho. Como analista literário, produziu dezenas de artigos científicos e participou de congressos, seminários, simpósios, mesas-redondas e bancas de mestrado e doutorado.
Publicou livros de ensaios nas décadas de 1960/1970 que tratavam da obra de literatos italianos: Salvatore Quasímodo e Cesare Pavese. Versado em línguas, traduziu filósofos e intelectuais, entre eles Giambattista Vico e Giuseppe Ungaretti.
Percorrendo os difíceis, cáusticos e desafiadores percursos da história, a quatro mãos com Maria Silvia Moreli escreveu “Assis – passado, presente e futuro”, livro com rico e diversificado acervo iconográfico que detalha a trajetória da cidade fundada pelo capitão Assis e internacionalmente reconhecida pelo campus da Universidade Estadual Paulista.
Apesar do amplo trabalho acadêmico e teórico desenvolvido em mais de cinco décadas, Almeida Prado realça sua habilidade literária na criação, manifestada harmoniosa e maduramente nas poesias.
Por ocasião das comemorações dos cem anos de Assis (SP), arregimentou sua produção artística em “Ciclo das chamas” (Ateliê Editorial, 2005) e, anos mais tarde, nos versos de “Lúcido Sonho” (Olavo Brás, 2008), em que grande parte dos títulos poderia facilmente ser reunida numa temática particular: o amor pela esposa Themis.
Os grandes escritores buscam a forma perfeita, a frase única, o verso singular e contundente. A bibliografia de Carlos Drummond de Andrade seria anódina sem “Anúncio classificado”. Manuel Bandeira pouco se destacaria sem “Poemeto erótico”. Augusto dos Anjos se distanciaria do ápice caso não tivesse concebido “Versos íntimos” e “Psicologia de um vencido”. E Almeida Prado?
Almeida Prado conquista e mantém um lugar privilegiado na poesia brasileira não apenas por sua densidade poética exalada em todo o seu trabalho, mas principalmente na elaboração de um poema. Se pudesse escolher um poema que pudesse demonstrar toda sua magnitude, “Desafio orquestral” indubitavelmente seria eleita a poesia cujos últimos versos ressoam oniricamente: “Que eu faço versos/ mas sem espinhos,/ com partituras/ pros passarinhos...”
O leitor desatento e pouco poético se perguntará o que tem de tão especial nesses versos. O primeiro ponto reside na distinção entre a poesia como instrumento inerente à humanização e a árdua lembrança de épicos intermináveis. O segundo ponto, o ponto mais brilhante, fica por conta da criação de partituras. Partituras não para compositores, amantes da música ou instrumentistas. Partituras para passarinhos correrem os olhos e traçarem a harmonia e a melodia de seu canto. Desde quando passarinhos precisam de partituras? Desde quando a poesia se banhou de tanta beleza em tão poucos versos?
*Publicado originalmente na Série Especial Dez Escritores Contemporâneos do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 11 de dezembro de 2009.
quinta-feira, 10 de dezembro de 2009
MEMÓRIAS
Ao professor Wilson Rodrigues, Promotor de Justiça emérito de Paraguaçu Paulista e brilhante civilista brasileiro
Um argentino de roupas floridas conversava com o neto quando perguntou: - Como construíram uma estátua tão grande num lugar tão alto?
O avô e eu nos viramos. O Cristo sorria discretamente do Corcovado. Na sabedoria que só os avós transmitem aos netos em momentos de beleza, respondeu:
- Com um carretel. Com um carretel de linha de costura, para ser mais preciso.
Quis rir, mas me contive para não quebrar a mágica da explicação. Um Cristo daquele tamanho construído com um carretel?
- Um homem subiu até a ponta do morro. Quando chegou lá em cima, puxou uma linha de costura, desenrolada de um carretel. Com a linha puxou uma corda. Com uma corda puxou uma caixa de pregos, alguns pedaços de madeira, um martelo e uma pequena picareta. Com a picareta abriu um buraco na rocha, colocou um pedaço de madeira, pregou outros pedaços de madeira e amarrou algumas cordas por meio das quais outros homens subiram. Muitas cordas e muitos homens: cimento, ferros, areia, tijolos, tinta, mármore, diversos instrumentos de construção. Com uma simples linha, construíram algo tão grandioso.
Aquela passagem fincou-se em minha memória. Anos depois levei minhas duas filhas às praias de Santa Catarina. Caminhávamos pelo calçadão em Camboriú, quando uma delas me perguntou por que o mar era salgado.
Poderia explicar cientificamente que o impacto permanente do mar contra as rochas desprendia uma quantidade de fluidos que salgavam as águas. Entretanto, lembrando-me do avô argentino, pensei em transformar a pergunta numa ocasião especial.
- Vocês já leram aquela parte da bíblia que fala que Deus fez o mundo em sete dias?
Ambas balançaram afirmativamente a cabeça.
- Vocês lembram que em um dia Deus fez a terra? No outro, as águas? No outro, os animais?
Confirmaram novamente minhas explanações.
- Então, retomei mais confiante, Deus acordou depois de trabalhar na construção de mais um dia. Era de madrugada, tudo escuro, o sol ainda não nascera. Caminhou até a cozinha, ligou o fogo, colocou uma panela, jogou manteiga e um ovo – queria comer pão com ovo e café São Braz – e quando ia pegar um pouco de sal, o pacote de sal caiu das mãos dele e foi parar na água. Onde o sal caiu, Deus chamou mares e oceanos. Onde o sal não caiu, Deus chamou rios, lagos e lagoas.
Minhas filhas olharam-me desconfiadas. Falhara na tentativa de marcar uma história na memória delas. Enganei-me. No dia seguinte, enquanto o ônibus transitava para Itapema, elas conversavam com um rapaz que, inusitadamente, não sabia responder o porquê do sal do mar. Diante do titubeio, contaram em detalhes o que lhes falara na véspera.
*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 10 de dezembro de 2009.
Um argentino de roupas floridas conversava com o neto quando perguntou: - Como construíram uma estátua tão grande num lugar tão alto?
O avô e eu nos viramos. O Cristo sorria discretamente do Corcovado. Na sabedoria que só os avós transmitem aos netos em momentos de beleza, respondeu:
- Com um carretel. Com um carretel de linha de costura, para ser mais preciso.
Quis rir, mas me contive para não quebrar a mágica da explicação. Um Cristo daquele tamanho construído com um carretel?
- Um homem subiu até a ponta do morro. Quando chegou lá em cima, puxou uma linha de costura, desenrolada de um carretel. Com a linha puxou uma corda. Com uma corda puxou uma caixa de pregos, alguns pedaços de madeira, um martelo e uma pequena picareta. Com a picareta abriu um buraco na rocha, colocou um pedaço de madeira, pregou outros pedaços de madeira e amarrou algumas cordas por meio das quais outros homens subiram. Muitas cordas e muitos homens: cimento, ferros, areia, tijolos, tinta, mármore, diversos instrumentos de construção. Com uma simples linha, construíram algo tão grandioso.
Aquela passagem fincou-se em minha memória. Anos depois levei minhas duas filhas às praias de Santa Catarina. Caminhávamos pelo calçadão em Camboriú, quando uma delas me perguntou por que o mar era salgado.
Poderia explicar cientificamente que o impacto permanente do mar contra as rochas desprendia uma quantidade de fluidos que salgavam as águas. Entretanto, lembrando-me do avô argentino, pensei em transformar a pergunta numa ocasião especial.
- Vocês já leram aquela parte da bíblia que fala que Deus fez o mundo em sete dias?
Ambas balançaram afirmativamente a cabeça.
- Vocês lembram que em um dia Deus fez a terra? No outro, as águas? No outro, os animais?
Confirmaram novamente minhas explanações.
- Então, retomei mais confiante, Deus acordou depois de trabalhar na construção de mais um dia. Era de madrugada, tudo escuro, o sol ainda não nascera. Caminhou até a cozinha, ligou o fogo, colocou uma panela, jogou manteiga e um ovo – queria comer pão com ovo e café São Braz – e quando ia pegar um pouco de sal, o pacote de sal caiu das mãos dele e foi parar na água. Onde o sal caiu, Deus chamou mares e oceanos. Onde o sal não caiu, Deus chamou rios, lagos e lagoas.
Minhas filhas olharam-me desconfiadas. Falhara na tentativa de marcar uma história na memória delas. Enganei-me. No dia seguinte, enquanto o ônibus transitava para Itapema, elas conversavam com um rapaz que, inusitadamente, não sabia responder o porquê do sal do mar. Diante do titubeio, contaram em detalhes o que lhes falara na véspera.
*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 10 de dezembro de 2009.
sábado, 5 de dezembro de 2009
CYRO DOS ANJOS: O ESTILISTA DO SÉCULO XX
Embora os críticos literários apontem Machado de Assis como o maior escritor brasileiro de todos os tempos, o século XX – considerado a Era dos Extremos pelo historiador Eric Hobsbawm – ficaria em segundo plano sem a presença de um escritor mineiro que fez da magnitude da linguagem questão de capacidade e distinção.
Alguns podem se lembrar naturalmente de Guimarães Rosa, Murilo Rubião, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Autran Dourado, Affonso Romano de Sant’Anna ou Carlos Drummond de Andrade. Apesar da contribuição de cada um deles, o século XX jamais seria o século XX, insisto, se Minas Gerais não tivesse concebido Cyro dos Anjos.
Autor de, entre outros livros, “O amanuense Belmiro” e “Abdias”, Cyro dos Anjos atingiu o ápice do refinamento lingüístico, deixando para trás o grande Machado de Assis. O crítico literário Wilson Martins rebateria as comparações e argumentaria contra a hipótese de um Machado de Assis “renovado”, “melhorado” ou “rejuvenescido”. Obviamente Machado e Cyro possuem personalidades e estilos diferentes. Entretanto, não se pode deixar de inventar um trajeto de elegância e concisão iniciado com Machado de Assis, passando por Cyro dos Anjos e buscando o fim em algum escritor que ainda aparecerá. A procura da perfeição para os que desejam esgotar as possibilidades semânticas – destacando-se entre os contemporâneos Dalton Trevisan – é cíclica: constituiu-se em recomeço permanente e, em alguns casos, patológicos.
Pouco (re)conhecido no âmbito acadêmico e fora dele, Cyro dos Anjos aparentemente reflete simpatias por protagonistas masculinos, silenciosos, acanhados ou socialmente distanciados. Narrando sempre em primeira pessoa, Belmiro e Abdias sofrem com o isolamento optativo ou forçado. A escolha do narrador em primeira pessoa colabora para realçar o sofrimento e alçar os diários de ambos à verossimilhança transfigurada pela confissão, pela confidência, pelo delírio, pela paixão, pela mágoa e pela esperança. Mágoa e esperança percebidas nas investidas (explícitas ou implícitas) de ambos os protagonistas sobre seus respectivos objetos de desejo e, tempo depois, no ridículo e na frustração causados pelo fracasso.
Tomando Minas Gerais como ambiente predominante de seus romances, Belmiro e Abdias são caracterizados como espíritos submissos, sem ação, fechados em mundos pessoais que dialogam com o exterior por meio da palavra escrita e sem ressonâncias. Belmiro mal consegue impor suas opiniões entre os amigos, pouco se sobressaindo no trabalho de escrevente público. Abdias desfruta de vida intelectual fria e sem chances de despontar no cenário regional ou nacional: administra um museu. Convidado para lecionar numa escola feminina coordenada por freiras francesas, enlaça-se com uma das alunas. Crente de que abandonará mulher e filhos para usufruir de uma nova aventura, cai no ostracismo quando refutado pela discente numa dança em um baile bastante concorrido. Como amá-la inesperadamente? Como acreditar num amor ilusório? Como trocar de vidas e, trocando de vidas, enfrentar desafios anteriormente considerados audaciosos? Um covarde se revestiria de coragem?
Ao término das desilusões amorosas e dos malogros cotidianos, Belmiro e Abdias seguem rotineiramente o trajeto sem sobressaltos, sem desesperos e sem instabilidades. Belmiro e Abdias retratariam o homem cético, ansioso pela aceitação no grupo e, como conseqüência desta, a aceitação de si mesmo. No entanto, o ceticismo – estável e programado – se sobrepõe aos desejos e aos desígnios inesperados, percorrendo o caminho paralelo que, tão próximo e tão premente, espera o momento adequado para se perder, se misturar e se confundir, alterando vida/realidade em morte/sonho.
Como amplamente mencionado, a capacidade lingüística e a elegância sintática de Cyro dos Anjos possui uma qualidade singular: a inefabilidade. Embora alguns tentem, poucos são os leitores e estudiosos que consegue analisar eficientemente o escritor mineiro – e infelizmente eu não sou um deles – descrevendo pormenorizadamente e explicando pedagogicamente quais artifícios, métodos e teorias foram utilizados na constituição da escrita.
O leitor - que se interesse pela maturidade da escrita e deseje um livro indiscutivelmente bem elaborado, personagens bem compostos, enredos rotineiros e tensão cética e estável – poderá procurar as edições recentes de ambos os títulos, lançadas impecavelmente pela editora Globo.
Sem sombra de dúvida, Cyro dos Anjos é o escritor que mais se destacou na estilística do texto: um dos maiores romancistas do século XX.
*Publicado originalmente na Série Especial Dez Escritores Contemporâneos do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 4 de dezembro de 2009.
Alguns podem se lembrar naturalmente de Guimarães Rosa, Murilo Rubião, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Autran Dourado, Affonso Romano de Sant’Anna ou Carlos Drummond de Andrade. Apesar da contribuição de cada um deles, o século XX jamais seria o século XX, insisto, se Minas Gerais não tivesse concebido Cyro dos Anjos.
Autor de, entre outros livros, “O amanuense Belmiro” e “Abdias”, Cyro dos Anjos atingiu o ápice do refinamento lingüístico, deixando para trás o grande Machado de Assis. O crítico literário Wilson Martins rebateria as comparações e argumentaria contra a hipótese de um Machado de Assis “renovado”, “melhorado” ou “rejuvenescido”. Obviamente Machado e Cyro possuem personalidades e estilos diferentes. Entretanto, não se pode deixar de inventar um trajeto de elegância e concisão iniciado com Machado de Assis, passando por Cyro dos Anjos e buscando o fim em algum escritor que ainda aparecerá. A procura da perfeição para os que desejam esgotar as possibilidades semânticas – destacando-se entre os contemporâneos Dalton Trevisan – é cíclica: constituiu-se em recomeço permanente e, em alguns casos, patológicos.
Pouco (re)conhecido no âmbito acadêmico e fora dele, Cyro dos Anjos aparentemente reflete simpatias por protagonistas masculinos, silenciosos, acanhados ou socialmente distanciados. Narrando sempre em primeira pessoa, Belmiro e Abdias sofrem com o isolamento optativo ou forçado. A escolha do narrador em primeira pessoa colabora para realçar o sofrimento e alçar os diários de ambos à verossimilhança transfigurada pela confissão, pela confidência, pelo delírio, pela paixão, pela mágoa e pela esperança. Mágoa e esperança percebidas nas investidas (explícitas ou implícitas) de ambos os protagonistas sobre seus respectivos objetos de desejo e, tempo depois, no ridículo e na frustração causados pelo fracasso.
Tomando Minas Gerais como ambiente predominante de seus romances, Belmiro e Abdias são caracterizados como espíritos submissos, sem ação, fechados em mundos pessoais que dialogam com o exterior por meio da palavra escrita e sem ressonâncias. Belmiro mal consegue impor suas opiniões entre os amigos, pouco se sobressaindo no trabalho de escrevente público. Abdias desfruta de vida intelectual fria e sem chances de despontar no cenário regional ou nacional: administra um museu. Convidado para lecionar numa escola feminina coordenada por freiras francesas, enlaça-se com uma das alunas. Crente de que abandonará mulher e filhos para usufruir de uma nova aventura, cai no ostracismo quando refutado pela discente numa dança em um baile bastante concorrido. Como amá-la inesperadamente? Como acreditar num amor ilusório? Como trocar de vidas e, trocando de vidas, enfrentar desafios anteriormente considerados audaciosos? Um covarde se revestiria de coragem?
Ao término das desilusões amorosas e dos malogros cotidianos, Belmiro e Abdias seguem rotineiramente o trajeto sem sobressaltos, sem desesperos e sem instabilidades. Belmiro e Abdias retratariam o homem cético, ansioso pela aceitação no grupo e, como conseqüência desta, a aceitação de si mesmo. No entanto, o ceticismo – estável e programado – se sobrepõe aos desejos e aos desígnios inesperados, percorrendo o caminho paralelo que, tão próximo e tão premente, espera o momento adequado para se perder, se misturar e se confundir, alterando vida/realidade em morte/sonho.
Como amplamente mencionado, a capacidade lingüística e a elegância sintática de Cyro dos Anjos possui uma qualidade singular: a inefabilidade. Embora alguns tentem, poucos são os leitores e estudiosos que consegue analisar eficientemente o escritor mineiro – e infelizmente eu não sou um deles – descrevendo pormenorizadamente e explicando pedagogicamente quais artifícios, métodos e teorias foram utilizados na constituição da escrita.
O leitor - que se interesse pela maturidade da escrita e deseje um livro indiscutivelmente bem elaborado, personagens bem compostos, enredos rotineiros e tensão cética e estável – poderá procurar as edições recentes de ambos os títulos, lançadas impecavelmente pela editora Globo.
Sem sombra de dúvida, Cyro dos Anjos é o escritor que mais se destacou na estilística do texto: um dos maiores romancistas do século XX.
*Publicado originalmente na Série Especial Dez Escritores Contemporâneos do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 4 de dezembro de 2009.
quinta-feira, 3 de dezembro de 2009
FOGO BRANDO
Mudara-me para Tarumã deixando amigos na cidade em que concluíra a graduação e da qual saíra, no começo do ano, para assumir uma vaga de escriturário num banco da cidade paulista.
Não demorou para simpatizar com uma família que morava na frente da agência e, semanas depois, namorar a filha mais nova, cabelos pretos lisos e compridos, que propositalmente aparecia nas horas impróprias – em que trabalhava como caixa para diminuir a fila – a fim de depositar um centavo.
O comportamento detestável descambou numa espera ansiosa de modo que, sempre que a fila crescia em dias posteriores aos domingos ou aos feriados, meus olhos passeavam pelas faces em busca de uma franja de cabelos pretos ao fim da qual vislumbraria o sorriso cativante harmoniosamente desenhado para suprimir a inexpressividade dos olhos.
Terminava de preencher alguns formulários no reservado quando o gerente acenou-me. Cinco amigos vestidos de roupas de turistas lotando os assentos destinados aos clientes. Quarta-feira que antecedia o feriado de Corpus Christi parecia dia ideal, segundo meus amigos, para me fazerem uma visita surpresa e conhecerem a tão famigerada cidade.
Tentei acomodá-los em minha casa de quarto e sala, mas a euforia e a simplicidade impediam-nos de se darem conta de que dormiriam praticamente uns sobre os outros. Apenas um ponto me preocupava: os pais de Sara.
Prometera-lhes um jantar em casa. Os parentes de Florianópolis chegariam e os pais, ansiosos por apresentar o bom partido, pretendiam mostrar que eu tinha vida modesta, mas era independente e possuía um futuro tranqüilo para sustentar a filha.
Telefonei para um restaurante próximo, encomendei alguns salgadinhos, refrigerantes e cinco garrafas de vinho gaúcho. Faríamos uma reunião informal, os pais de Sara conheceriam meus amigos, meus amigos conheceriam os pais de Sara e os parentes compartilhariam momentos agradáveis.
- Tenho uma coisinha especial para esse velho, confidenciou-me André, sorrindo maliciosamente.
Adverti que não poderia aprontar barbaridades, pois o pai dela mostrava-se sério quase todo o tempo. De dentro de uma mala, André retirou cuidadosamente um barril engraçado com uma torneira.
- Trouxe cachaça. Vou colocar aqui em cima e, quem quiser, é só abrir a torneirinha e beber. Cachaça de João Pessoa. Da boa.
Meu sogro chegou antes do horário combinado. Deu-me as chaves para pegar a filha, a esposa e os parentes. Meia hora depois estacionava em frente da casa, fechava o carro, ativava o alarme, olhava o lustre dos sapatos e tomava a frente da comitiva abraçado a Sara.
Passamos rapidamente pelo pequeno jardim coletivo, abrimos a porta e, pulando nos sofás, o pai de Sara e meus cinco companheiros, cantando, berrando e sorrindo incontrolavelmente, entoavam músicas de serenata.
Ao avistar a esposa, engatinhou, derrubou meus livros no chão ao bater na mesinha de centro:
- Eu não tive culpa, meu bem. Eu não tive culpa. Eles disseram que a cachaça era boa, mas eu não sabia que era tão boa assim. Tomei só dois dedinhos...
*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 3 de dezembro de 2009.
Não demorou para simpatizar com uma família que morava na frente da agência e, semanas depois, namorar a filha mais nova, cabelos pretos lisos e compridos, que propositalmente aparecia nas horas impróprias – em que trabalhava como caixa para diminuir a fila – a fim de depositar um centavo.
O comportamento detestável descambou numa espera ansiosa de modo que, sempre que a fila crescia em dias posteriores aos domingos ou aos feriados, meus olhos passeavam pelas faces em busca de uma franja de cabelos pretos ao fim da qual vislumbraria o sorriso cativante harmoniosamente desenhado para suprimir a inexpressividade dos olhos.
Terminava de preencher alguns formulários no reservado quando o gerente acenou-me. Cinco amigos vestidos de roupas de turistas lotando os assentos destinados aos clientes. Quarta-feira que antecedia o feriado de Corpus Christi parecia dia ideal, segundo meus amigos, para me fazerem uma visita surpresa e conhecerem a tão famigerada cidade.
Tentei acomodá-los em minha casa de quarto e sala, mas a euforia e a simplicidade impediam-nos de se darem conta de que dormiriam praticamente uns sobre os outros. Apenas um ponto me preocupava: os pais de Sara.
Prometera-lhes um jantar em casa. Os parentes de Florianópolis chegariam e os pais, ansiosos por apresentar o bom partido, pretendiam mostrar que eu tinha vida modesta, mas era independente e possuía um futuro tranqüilo para sustentar a filha.
Telefonei para um restaurante próximo, encomendei alguns salgadinhos, refrigerantes e cinco garrafas de vinho gaúcho. Faríamos uma reunião informal, os pais de Sara conheceriam meus amigos, meus amigos conheceriam os pais de Sara e os parentes compartilhariam momentos agradáveis.
- Tenho uma coisinha especial para esse velho, confidenciou-me André, sorrindo maliciosamente.
Adverti que não poderia aprontar barbaridades, pois o pai dela mostrava-se sério quase todo o tempo. De dentro de uma mala, André retirou cuidadosamente um barril engraçado com uma torneira.
- Trouxe cachaça. Vou colocar aqui em cima e, quem quiser, é só abrir a torneirinha e beber. Cachaça de João Pessoa. Da boa.
Meu sogro chegou antes do horário combinado. Deu-me as chaves para pegar a filha, a esposa e os parentes. Meia hora depois estacionava em frente da casa, fechava o carro, ativava o alarme, olhava o lustre dos sapatos e tomava a frente da comitiva abraçado a Sara.
Passamos rapidamente pelo pequeno jardim coletivo, abrimos a porta e, pulando nos sofás, o pai de Sara e meus cinco companheiros, cantando, berrando e sorrindo incontrolavelmente, entoavam músicas de serenata.
Ao avistar a esposa, engatinhou, derrubou meus livros no chão ao bater na mesinha de centro:
- Eu não tive culpa, meu bem. Eu não tive culpa. Eles disseram que a cachaça era boa, mas eu não sabia que era tão boa assim. Tomei só dois dedinhos...
*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 3 de dezembro de 2009.
sábado, 28 de novembro de 2009
TRANSPORTADORA
Quando me chamou para parceria comercial, meu amigo advertiu que a empresa eventualmente poderia apresentar resultados negativos nos primeiros meses, certamente durante um semestre. Divulgação, pedágios, conserto de avarias, horas extras, alimentação e pensões em viagens mais longas.
Desde que não tivesse prejuízo e pudesse efetuar saques mensais estava tudo perfeito para mim. A sociedade prolongou-se e nos três anos seguintes passava uma vez por mês na transportadora. Queria apenas pegar o dinheiro e ir embora, mas meu amigo insistia para que verificasse os livros contáveis, aprovasse a compra de novos caminhões, opinasse sobre os equipamentos de segurança, sugerisse modificações em trajetos, procurasse medidas legais para diminuir os impostos.
Eu prometia que me esforçaria para atender seus pedidos, fingia que os anotava num pequeno caderno que guardo na bolsa, apertava-lhe a mão e aparecia trinta ou quarenta dias depois para meu saque.
Acordei na quarta-feira aparentemente feliz porque não teria de trabalhar. Quinta-feira seria feriado, sexta-feira ponto facultativo. Faltavam-me apenas algumas centenas de reais para encher o tanque do carro, comprar alguns mantimentos e correr os quinhentos quilômetros até a praia. Se saísse de Assis por volta das dez e meia estacionaria em lugar privilegiado para o pôr-do-sol ao som de Ravel.
Se saísse...
Percebi um movimento intenso na transportadora. Admirava como meu amigo lidava com imprevistos, pressão, desencontros e cobranças. Conferia as notas de entrega, assinava cheques, copiava dados numa planilha, assinava contratos com a prefeitura, recalculava os fretes atrasados pelo rompimento de ponte e por causa da chuva.
Eu o acompanhava. Entramos no depósito, na oficina, na contabilidade, no repositório de peças. Ele na frente, ao telefone, eu atrás, mãos no bolso, esperando um intervalo para pedir meu dinheiro. De repente:
- Sabe dirigir caminhão?
Eu responderia que minha Carteira Nacional de Habilitação me permitia dirigir caminhões e ônibus. Ele emendou:
- Se sabe, sabe. Se não sabe, vai aprender agora.
Em pouco mais de cinco minutos entrava na cabine incumbido de entregar uma carga em Londrina. Sem muitas surpresas, saí de Assis meio temeroso, mas muito confiante. Talvez se apertasse o pé conseguisse voltar antes do meio-dia. Afinal, Londrina era ali. Um pulo. Entregaria a encomenda, pegaria o recibo, entregaria o recibo ao meu amigo e sócio e entraria nos limites da praia no início da noite.
Cento e dez quilômetros por hora. Precisava alcançar essa velocidade para meus planos darem certo. Assim que fiz o trevo da Unesp percebi que não conseguiria ultrapassar os noventa por hora. Na primeira subida, o caminhão diminuiu para menos de sessenta.
Observando os caminhoneiros, notei que aceleravam na descida para obter alguma vantagem na subida. Fui tomando gosto pela coisa, pegando as manhas, sentindo-me integrado ao grupo de profissionais. Aos poucos, as marchas encaixavam tranquilamente, os freios correspondiam à sensibilidade de meus toques, o veículo deslizava nas curvas.
A paisagem entrecortada por dois rios e tonalidades de verde despertou-me lembranças nem tão distantes. Recordava quando meu pai nos jogava no banco traseiro do carro – meu irmão, minhas duas avós e eu – e assumia a direção tendo, ao lado, minha mãe e meu irmão mais novo. Vez por outra nosso cachorro nos acompanhava à praia. Naquele tempo, preferia ficar em casa, dormindo. Praticamente os dias de sábado e de domingo na praia significavam sono. Sono profundo. Detestava praia. Depois de velho, os silabares marítimos despertavam-me alguma nostalgia. Nostalgia do que poderia ter sido. Cada nova paisagem me levava ao carro de nossa família, deslocando-se entre coqueiros. A lembrança tornou-se ainda mais forte quando uma rádio de Londrina entoou uma música de Roberto Carlos.
Minha viagem à praia seria ótima, pensava, olhando no retrovisor para mudar de faixa. Seria ótima se, aproveitando o embalo da descida para manter a velocidade na subida, não tivesse passado a noventa por hora nas duas lombadas de Sertanópolis. Eu sabia das lombadas, porém, extasiado com a aventura de caminhoneiro, esqueci-me delas.
Achei facilmente o endereço da Avenida Maringá, buzinei feliz, desci sorridente quando, quase esfregando as mãos e fazendo propaganda da qualidade e da rapidez da transportadora, o gerente da loja de material de construções se disse ansioso para ver os novos modelos de espelhos, pias e vasos sanitários.
*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 28 de novembro de 2009.
Desde que não tivesse prejuízo e pudesse efetuar saques mensais estava tudo perfeito para mim. A sociedade prolongou-se e nos três anos seguintes passava uma vez por mês na transportadora. Queria apenas pegar o dinheiro e ir embora, mas meu amigo insistia para que verificasse os livros contáveis, aprovasse a compra de novos caminhões, opinasse sobre os equipamentos de segurança, sugerisse modificações em trajetos, procurasse medidas legais para diminuir os impostos.
Eu prometia que me esforçaria para atender seus pedidos, fingia que os anotava num pequeno caderno que guardo na bolsa, apertava-lhe a mão e aparecia trinta ou quarenta dias depois para meu saque.
Acordei na quarta-feira aparentemente feliz porque não teria de trabalhar. Quinta-feira seria feriado, sexta-feira ponto facultativo. Faltavam-me apenas algumas centenas de reais para encher o tanque do carro, comprar alguns mantimentos e correr os quinhentos quilômetros até a praia. Se saísse de Assis por volta das dez e meia estacionaria em lugar privilegiado para o pôr-do-sol ao som de Ravel.
Se saísse...
Percebi um movimento intenso na transportadora. Admirava como meu amigo lidava com imprevistos, pressão, desencontros e cobranças. Conferia as notas de entrega, assinava cheques, copiava dados numa planilha, assinava contratos com a prefeitura, recalculava os fretes atrasados pelo rompimento de ponte e por causa da chuva.
Eu o acompanhava. Entramos no depósito, na oficina, na contabilidade, no repositório de peças. Ele na frente, ao telefone, eu atrás, mãos no bolso, esperando um intervalo para pedir meu dinheiro. De repente:
- Sabe dirigir caminhão?
Eu responderia que minha Carteira Nacional de Habilitação me permitia dirigir caminhões e ônibus. Ele emendou:
- Se sabe, sabe. Se não sabe, vai aprender agora.
Em pouco mais de cinco minutos entrava na cabine incumbido de entregar uma carga em Londrina. Sem muitas surpresas, saí de Assis meio temeroso, mas muito confiante. Talvez se apertasse o pé conseguisse voltar antes do meio-dia. Afinal, Londrina era ali. Um pulo. Entregaria a encomenda, pegaria o recibo, entregaria o recibo ao meu amigo e sócio e entraria nos limites da praia no início da noite.
Cento e dez quilômetros por hora. Precisava alcançar essa velocidade para meus planos darem certo. Assim que fiz o trevo da Unesp percebi que não conseguiria ultrapassar os noventa por hora. Na primeira subida, o caminhão diminuiu para menos de sessenta.
Observando os caminhoneiros, notei que aceleravam na descida para obter alguma vantagem na subida. Fui tomando gosto pela coisa, pegando as manhas, sentindo-me integrado ao grupo de profissionais. Aos poucos, as marchas encaixavam tranquilamente, os freios correspondiam à sensibilidade de meus toques, o veículo deslizava nas curvas.
A paisagem entrecortada por dois rios e tonalidades de verde despertou-me lembranças nem tão distantes. Recordava quando meu pai nos jogava no banco traseiro do carro – meu irmão, minhas duas avós e eu – e assumia a direção tendo, ao lado, minha mãe e meu irmão mais novo. Vez por outra nosso cachorro nos acompanhava à praia. Naquele tempo, preferia ficar em casa, dormindo. Praticamente os dias de sábado e de domingo na praia significavam sono. Sono profundo. Detestava praia. Depois de velho, os silabares marítimos despertavam-me alguma nostalgia. Nostalgia do que poderia ter sido. Cada nova paisagem me levava ao carro de nossa família, deslocando-se entre coqueiros. A lembrança tornou-se ainda mais forte quando uma rádio de Londrina entoou uma música de Roberto Carlos.
Minha viagem à praia seria ótima, pensava, olhando no retrovisor para mudar de faixa. Seria ótima se, aproveitando o embalo da descida para manter a velocidade na subida, não tivesse passado a noventa por hora nas duas lombadas de Sertanópolis. Eu sabia das lombadas, porém, extasiado com a aventura de caminhoneiro, esqueci-me delas.
Achei facilmente o endereço da Avenida Maringá, buzinei feliz, desci sorridente quando, quase esfregando as mãos e fazendo propaganda da qualidade e da rapidez da transportadora, o gerente da loja de material de construções se disse ansioso para ver os novos modelos de espelhos, pias e vasos sanitários.
*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 28 de novembro de 2009.
sexta-feira, 27 de novembro de 2009
O ROMANCE EM CONSTRUÇÃO
Engana-se quem pensa que a qualidade de um livro se relaciona diretamente ao tamanho ou à fama de um editora, à rede de distribuição ou aos milhões de exemplares vendidos. A qualidade de uma obra se liga ao desempenho do escritor na condução e composição dos elementos de criação e de análise literárias (enredo, personagem, tempo, espaço, narrador, linguagem).
Tanto é assim que grandes nomes – entre eles, Dalton Trevisan, Autran Dourado, Moacyr Scliar e Cristovão Tezza – iniciaram suas carreiras literárias patrocinando seus lançamentos e assumindo os óbvios riscos do mercado e da crítica.
Alguns escritores conseguiram entrar no catálogo de grandes, médias e pequenas editoras, porém outros optaram pela aventura indescritível de patrocinarem seus lançamentos, exercendo um duplo ofício de criador artístico e de empresário de um ramo com grandes dificuldades. Esse é o caso do escritor santa-ritense Reginaldo Antônio de Oliveira que, com uma obra voltada ao ensaio, ao relato autobiográfico e aos romances, tem se apresentado e se consolidado como um grande das letras do estado de José Lins do Rego, Augusto dos Anjos e Celso Furtado.
Seguindo uma linha que transforma o romance numa espécie de fábula moral, Reginaldo Antônio de Oliveira busca na discussão entre ética, moral e bons costumes o combustível necessário para levar adiante as digressões e devaneios das relações humanas conturbadas que, na prática, constituem exemplo de fato social.
Em “A vida escandalosa de Ruth”, o foco narrativo se desloca ao narrador onisciente que segue o trajeto, os pensamentos e as ações dos personagens da trama, iniciada no conturbado nascimento da protagonista. A vida difícil da menina a leva a se prostituir, aos amantes, aos prazeres sexuais e financeiros, a tentar retomar à normalidade cotidiana e, em seguida, a ser aclamada grande dama da sociedade.
Ruth tem um destino traçado para se comportar como uma mulher mediana: casar, ter filhos, levar umas pancadas do marido e se submeter aos ditames do estigma e do machismo. Entretanto, rebelando-se contra as amarras da escravidão psicológica, observa o sexo como instrumento necessário para a ascensão e manutenção de status social.
O narrador então discorre sobre os tempos em que ela se dedicava ao bordel instalado num dos pontos mais visitados da Paraíba, seguindo linearmente o abandono do local para se dedicar ao marido e posteriormente o retorno estupendo à mesma profissão. Badalada, clientes de outras cidades e homens ricos de outros estados procuram-na pela fama que se estabeleceu na região.
Depois de novamente sair do bordel e de estabelecer uma vida regrada com um proprietário de terras – geralmente alcunhado coronel no âmbito rural – Ruth presencia o declínio financeiro da família constituída e se perde em suplícios e humilhações.
Valendo-se de uma linguagem pouco trabalhada, em minha concepção um defeito grave, os clichês presentes em todo o texto empobrecem sua força semântica que poderia desencadear reflexões reais sobre a vida das mulheres em grupos machistas em pleno século XXI. Se, por um lado, a linguagem é um problema que necessitaria de solução nos trabalhos vindouros, por outro, a denúncia social e a construção da fábula moderna sobressaem maduramente.
A prostituição aparece como patologia que precisa ser vencida e as mulheres que a praticam são, segundo a percepção do narrador (não confundir narrador com autor), uma excrescência urbana. Pensar dessa maneira desfaz os anseios de igualdade entre gêneros e da liberdade, características gritantes da sociedade contemporânea ocidental. Contudo, utilizar o enredo como denúncia dos abusos sofridos pelas meretrizes, profissionais indispensáveis desde sempre, representa o exame atencioso das condições femininas e da segurança no exercício de suas escolhas.
Além dessa observação, uma leitura diferente também pode se estabelecer como fabulação, mais ou menos determinando, em grande extensão, uma moral ao fim da história, evidenciada por clichês como “o crime não compensa”, “dizes com quem andas e te direi quem és” ou adágios que exaltem as virtudes superficiais ditadas pelas convenções dos grupos dominantes.
Apesar dos problemas enumerados (principalmente o da linguagem aparentemente pouco esmerilada), o trabalho de Reginaldo Antônio de Oliveira merece destaque pela sensibilidade descritiva ricamente cultivada no desenho das mazelas, das escolhas e das eventuais punições do destino sobre os que escolhem caminhos adversos dos trâmites considerados morais.
*Publicado originalmente na Série Especial Dez Escritores Contemporâneos do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 27 de novembro de 2009.
Vicentônio Regis do Nascimento Silva (www.vicentonio.blogspot.com) é tradutor e crítico literário.
Tanto é assim que grandes nomes – entre eles, Dalton Trevisan, Autran Dourado, Moacyr Scliar e Cristovão Tezza – iniciaram suas carreiras literárias patrocinando seus lançamentos e assumindo os óbvios riscos do mercado e da crítica.
Alguns escritores conseguiram entrar no catálogo de grandes, médias e pequenas editoras, porém outros optaram pela aventura indescritível de patrocinarem seus lançamentos, exercendo um duplo ofício de criador artístico e de empresário de um ramo com grandes dificuldades. Esse é o caso do escritor santa-ritense Reginaldo Antônio de Oliveira que, com uma obra voltada ao ensaio, ao relato autobiográfico e aos romances, tem se apresentado e se consolidado como um grande das letras do estado de José Lins do Rego, Augusto dos Anjos e Celso Furtado.
Seguindo uma linha que transforma o romance numa espécie de fábula moral, Reginaldo Antônio de Oliveira busca na discussão entre ética, moral e bons costumes o combustível necessário para levar adiante as digressões e devaneios das relações humanas conturbadas que, na prática, constituem exemplo de fato social.
Em “A vida escandalosa de Ruth”, o foco narrativo se desloca ao narrador onisciente que segue o trajeto, os pensamentos e as ações dos personagens da trama, iniciada no conturbado nascimento da protagonista. A vida difícil da menina a leva a se prostituir, aos amantes, aos prazeres sexuais e financeiros, a tentar retomar à normalidade cotidiana e, em seguida, a ser aclamada grande dama da sociedade.
Ruth tem um destino traçado para se comportar como uma mulher mediana: casar, ter filhos, levar umas pancadas do marido e se submeter aos ditames do estigma e do machismo. Entretanto, rebelando-se contra as amarras da escravidão psicológica, observa o sexo como instrumento necessário para a ascensão e manutenção de status social.
O narrador então discorre sobre os tempos em que ela se dedicava ao bordel instalado num dos pontos mais visitados da Paraíba, seguindo linearmente o abandono do local para se dedicar ao marido e posteriormente o retorno estupendo à mesma profissão. Badalada, clientes de outras cidades e homens ricos de outros estados procuram-na pela fama que se estabeleceu na região.
Depois de novamente sair do bordel e de estabelecer uma vida regrada com um proprietário de terras – geralmente alcunhado coronel no âmbito rural – Ruth presencia o declínio financeiro da família constituída e se perde em suplícios e humilhações.
Valendo-se de uma linguagem pouco trabalhada, em minha concepção um defeito grave, os clichês presentes em todo o texto empobrecem sua força semântica que poderia desencadear reflexões reais sobre a vida das mulheres em grupos machistas em pleno século XXI. Se, por um lado, a linguagem é um problema que necessitaria de solução nos trabalhos vindouros, por outro, a denúncia social e a construção da fábula moderna sobressaem maduramente.
A prostituição aparece como patologia que precisa ser vencida e as mulheres que a praticam são, segundo a percepção do narrador (não confundir narrador com autor), uma excrescência urbana. Pensar dessa maneira desfaz os anseios de igualdade entre gêneros e da liberdade, características gritantes da sociedade contemporânea ocidental. Contudo, utilizar o enredo como denúncia dos abusos sofridos pelas meretrizes, profissionais indispensáveis desde sempre, representa o exame atencioso das condições femininas e da segurança no exercício de suas escolhas.
Além dessa observação, uma leitura diferente também pode se estabelecer como fabulação, mais ou menos determinando, em grande extensão, uma moral ao fim da história, evidenciada por clichês como “o crime não compensa”, “dizes com quem andas e te direi quem és” ou adágios que exaltem as virtudes superficiais ditadas pelas convenções dos grupos dominantes.
Apesar dos problemas enumerados (principalmente o da linguagem aparentemente pouco esmerilada), o trabalho de Reginaldo Antônio de Oliveira merece destaque pela sensibilidade descritiva ricamente cultivada no desenho das mazelas, das escolhas e das eventuais punições do destino sobre os que escolhem caminhos adversos dos trâmites considerados morais.
*Publicado originalmente na Série Especial Dez Escritores Contemporâneos do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 27 de novembro de 2009.
Vicentônio Regis do Nascimento Silva (www.vicentonio.blogspot.com) é tradutor e crítico literário.
sábado, 21 de novembro de 2009
JOSUÉ MONTELLO: SÍNTESE DO ROMANCE
Um escritor não se imortaliza pela atividade irrestrita ou pela produção maciça e cosmopolita, mas por algumas peculiaridades manifestadas no decorrer do ofício e consolidadas aos poucos, no exercício pleno da criação artística. A consolidação de estilo maduro – de trânsito fácil que vai do romance à memorialística, passando pelo jornalismo, pela crítica e pelo ensaio – faz de Josué Montello um paradigma para quem deseja um romance de fôlego.
Embora desconhecido do grande público, Montello integra o seleto grupo que, nas palavras do crítico literário Wilson Martins, possui qualidade, mas que ainda não foi lido e analisado adequadamente.
Elegemos “Cais da Sagração” para esmiuçar um pouco do universo desse imortal da Academia Brasileira de Letras, considerado por muitos o ensaísta definitivo da obra de Machado de Assis, que faz do Maranhão o cenário de algumas de suas obras.
“Cais de Sagração” se passa entre São Luis e – predominantemente – uma cidade litorânea de onde os personagens saem apenas por transportes marítimos. O miolo da narrativa se expande pela linearidade sulcada com grandes lapsos psicológicos de memória, esquecimento e redimensionamento do passado. Além disso, a linguagem serena, amadurecida e firme se quebra salutarmente por intervalos cômicos profundos.
Proprietário de um barco que se movimenta graças à ajuda do vento e aparentemente arredio às novidades mecânicas que poderiam proporcionar mais segurança, mais conforto e mais rapidez às viagens empreendidas, Mestre Severino encarna – numa mistura de sobriedade, de apegos a princípios e de autoritarismo pinçado pelo silêncio – o homem irredutível e machista. As conversas mais complicadas com a família ou com alguns amigos se exteriorizam por monólogos protagonizados pelo comandante do “Bonança” que, por muitos anos, se manteve atado ao trapiche.
O descaso em relação ao barco coincide com o período de prisão. Morando com Lourença, mulher sem grandes atrativos, simplória, acabrunhada e matuta, Mestre Severino adquire a liberdade da meretriz Vanju, que vive em São Luis. De volta da capital, informa a Lourença que se casará na semana seguinte. Lourença naturalmente se enche de felicidade, desconserta-se pela pressa do comandante, pensa em voz alta nos detalhes do vestido de noiva providenciado com uma amiga e, antes de se perder em devaneios, é alertada sobre a outra.
O aviso do enlace matrimonial parece conformar a companheira que, retirando seus pertences do quarto comum, muda para o cômodo contíguo. A aceitação do casamento, por parte de Lourença, e o deslumbramento de Mestre Severino pela meretriz Vanju simbolizam o quadro da condição feminina.
A verossimilhança e a universalidade da cena são rematadas por um discurso do narrador onisciente. Numa situação de beleza e repugnância, Mestre Severino atinge o clímax do machismo ao pensar que nenhum homem poderia se interessar por outra mulher depois de dormir com Vanju.
A vida monótona e sem glamour desencadearia a inquietação numa mulher, outrora festejada e adorada, que perdia os dias folheando revistas velhas e jogando conversa fora com Lourença, convertida em empregada doméstica.
O poder de sedução de Vanju desperta a cobiça dos transeuntes e os ciúmes doentios de Mestre Severino. Desconfiado de suas inclinações e das eventuais trocas de olhares com o promotor que chegara ao povoado, o comandante leva a esposa para uma praia afastada, afoga-a, assume o crime, se entrega à polícia, é processado e condenado e, mesmo na cadeia, passa os dias recomendando a Lourença que providencie uma lápide suntuosa para o túmulo da mulher e que cuide da filha dele.
Um momento de comicidade se dá quando, rememorando os tempos de cadeia, Mestre Severino é comunicado do falecimento do promotor. Quase enlouquecido, convence o carcereiro a abandonar temporariamente suas funções e a buscar o padre. O fracasso do carcereiro angustia Mestre Severino que se debate, mas vencido pelo cansaço, compartilha suas aflições com o clérigo no dia seguinte: a infidelidade de Vanju com o promotor se concretizaria no além.
A filha de Mestre Severino cresce, casa-se com um homem de mar e, antes de o filho se desenvolver, falece. Lourença criará o neto de Mestre Severino que, já fora da cadeia, debilitado pela idade e por problemas cardíacos, resiste aos medicamentos e à escolha religiosa do menino.
A vitória de Mestre Severino – machista autoritário – se concretiza na volta de São Luis: ao acordar depois de intensas dores no peito, testemunha o neto guiando o barco.
O problema da trama fica por conta da linguagem que, se por um lado comprova a capacidade no manuseio do léxico, por outro, enfrenta desatinos na fala de personagens, dando-lhes cultura impertinente.
Apenas pela maturidade da linguagem, pela denúncia social, pela caracterização completa da universalidade e da verossimilhança, “Cais da Sagração” deve ser lido o quanto antes. Uma obra-prima da Literatura contemporânea!
*Publicado originalmente na Série Especial Dez Escritores Contemporâneos do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 20 de novembro de 2009.
Embora desconhecido do grande público, Montello integra o seleto grupo que, nas palavras do crítico literário Wilson Martins, possui qualidade, mas que ainda não foi lido e analisado adequadamente.
Elegemos “Cais da Sagração” para esmiuçar um pouco do universo desse imortal da Academia Brasileira de Letras, considerado por muitos o ensaísta definitivo da obra de Machado de Assis, que faz do Maranhão o cenário de algumas de suas obras.
“Cais de Sagração” se passa entre São Luis e – predominantemente – uma cidade litorânea de onde os personagens saem apenas por transportes marítimos. O miolo da narrativa se expande pela linearidade sulcada com grandes lapsos psicológicos de memória, esquecimento e redimensionamento do passado. Além disso, a linguagem serena, amadurecida e firme se quebra salutarmente por intervalos cômicos profundos.
Proprietário de um barco que se movimenta graças à ajuda do vento e aparentemente arredio às novidades mecânicas que poderiam proporcionar mais segurança, mais conforto e mais rapidez às viagens empreendidas, Mestre Severino encarna – numa mistura de sobriedade, de apegos a princípios e de autoritarismo pinçado pelo silêncio – o homem irredutível e machista. As conversas mais complicadas com a família ou com alguns amigos se exteriorizam por monólogos protagonizados pelo comandante do “Bonança” que, por muitos anos, se manteve atado ao trapiche.
O descaso em relação ao barco coincide com o período de prisão. Morando com Lourença, mulher sem grandes atrativos, simplória, acabrunhada e matuta, Mestre Severino adquire a liberdade da meretriz Vanju, que vive em São Luis. De volta da capital, informa a Lourença que se casará na semana seguinte. Lourença naturalmente se enche de felicidade, desconserta-se pela pressa do comandante, pensa em voz alta nos detalhes do vestido de noiva providenciado com uma amiga e, antes de se perder em devaneios, é alertada sobre a outra.
O aviso do enlace matrimonial parece conformar a companheira que, retirando seus pertences do quarto comum, muda para o cômodo contíguo. A aceitação do casamento, por parte de Lourença, e o deslumbramento de Mestre Severino pela meretriz Vanju simbolizam o quadro da condição feminina.
A verossimilhança e a universalidade da cena são rematadas por um discurso do narrador onisciente. Numa situação de beleza e repugnância, Mestre Severino atinge o clímax do machismo ao pensar que nenhum homem poderia se interessar por outra mulher depois de dormir com Vanju.
A vida monótona e sem glamour desencadearia a inquietação numa mulher, outrora festejada e adorada, que perdia os dias folheando revistas velhas e jogando conversa fora com Lourença, convertida em empregada doméstica.
O poder de sedução de Vanju desperta a cobiça dos transeuntes e os ciúmes doentios de Mestre Severino. Desconfiado de suas inclinações e das eventuais trocas de olhares com o promotor que chegara ao povoado, o comandante leva a esposa para uma praia afastada, afoga-a, assume o crime, se entrega à polícia, é processado e condenado e, mesmo na cadeia, passa os dias recomendando a Lourença que providencie uma lápide suntuosa para o túmulo da mulher e que cuide da filha dele.
Um momento de comicidade se dá quando, rememorando os tempos de cadeia, Mestre Severino é comunicado do falecimento do promotor. Quase enlouquecido, convence o carcereiro a abandonar temporariamente suas funções e a buscar o padre. O fracasso do carcereiro angustia Mestre Severino que se debate, mas vencido pelo cansaço, compartilha suas aflições com o clérigo no dia seguinte: a infidelidade de Vanju com o promotor se concretizaria no além.
A filha de Mestre Severino cresce, casa-se com um homem de mar e, antes de o filho se desenvolver, falece. Lourença criará o neto de Mestre Severino que, já fora da cadeia, debilitado pela idade e por problemas cardíacos, resiste aos medicamentos e à escolha religiosa do menino.
A vitória de Mestre Severino – machista autoritário – se concretiza na volta de São Luis: ao acordar depois de intensas dores no peito, testemunha o neto guiando o barco.
O problema da trama fica por conta da linguagem que, se por um lado comprova a capacidade no manuseio do léxico, por outro, enfrenta desatinos na fala de personagens, dando-lhes cultura impertinente.
Apenas pela maturidade da linguagem, pela denúncia social, pela caracterização completa da universalidade e da verossimilhança, “Cais da Sagração” deve ser lido o quanto antes. Uma obra-prima da Literatura contemporânea!
*Publicado originalmente na Série Especial Dez Escritores Contemporâneos do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 20 de novembro de 2009.
sexta-feira, 20 de novembro de 2009
PRODUTOS ERÓTICOS
Treze anos de casamento: monotonia, rotina, cansaço, falta de criatividade. A esposa reclamava da atuação noturna.
- Ou achas uma maneira de mudarmos, ou acabo tudo. Ouviste? Acabo tudo! Tudo!
Confidenciando o problema aos amigos do futebol noturno de quarta-feira, ouviu uma sugestão pragmática: produtos eróticos.
Procurasse algumas sugestões em páginas de internet: algemas, orelhas de coelho, focinhos de porco, lingeries esgarçadas, chicotes, botas pretas de cano alto, camisolas curtas e transparentes.
- O que você quiser – e também o que não quiser – você encontra. Pode confiar.
Esperou a esposa deitar-se, os filhos dormirem e os vizinhos da esquerda e da direita apagarem as luzes na esperança de se sentir sozinho durante a prática de atividade reprovada, mas altamente instigante, deslumbrante, excitante.
Um amigo mais afoito passou-lhe três endereços eletrônicos nos quais poderia adquirir produtos de excelente qualidade facilitados em cinco vezes no cartão de crédito.
- No cartão de crédito? E se alguém pegar?
- Na fatura do cartão os gastos vêm descritos como lanchonete, restaurante ou farmácia. Qualquer um gasta num lugar desses e depois nem sem lembra.
Milhares de ofertas fizeram-no se deter mais tempo do que esperava de modo que o relógio o amedrontou às seis e vinte. Desligou o computador correndo, entrou no banheiro e quando sentou-se no vaso sanitário sentiu o alívio de a esposa bater na porta pedindo que se apressasse. Escorregou a tampa do vaso, tirou a roupa e saiu sorridente.
Depois do almoço, juntou quatro cadeiras no meio da sala de reuniões, improvisou um travesseiro com grossa e velha lista telefônica escondida atrás de um vaso para segurar a porta sempre que necessário.
A secretária o acordou minutos antes de um grupo de colaboradores de uma filial entrar pelo corredor lateral e se apossar do ambiente espalhando olores femininos. Os olores trespassaram as frestas das janelas, percorreram o corredor central e invadiram sua sala instigando o interesse noturno.
Chegou mais ou menos seis e meia, tomou banho, comeu qualquer coisa e se jogou na cama acordando às onze e quinze quando a mulher, filhos colocados na cama, vestia a camisa velha e a bermudinha com furo no lado direito. Disse para ela que precisava concluir um relatório.
Voltou a uma das páginas da internet, encantou-se com um chicote que parecia maior do que ele, um par de algemas de prata e um lingerie preto de chocolate.
Cinco dias depois a recepcionista entregava-lhe um pacote lacrado com papel madeira e um aviso de recebimento. Olhou curiosamente as letras do seu nome e o endereço do escritório. O amigo entrou na sala quando contemplava o embrulho.
- Boa sorte, disse ao cruzar com ele.
Os amigos o rodearam assim que chegou ao futebol noturno de quarta-feira. Cara triste, jeito discreto, cabisbaixo. Indagado sobre a noite, voltou a carro e mostrou os produtos eróticos que mudariam seu casamento: o chicote tinha menos de quinze centímetros, as algemas mal davam para prender os punhos da boneca da filha e o lingerie preto de chocolate derretera com o calor e os solavancos da viagem.
*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 19 de novembro de 2009.
- Ou achas uma maneira de mudarmos, ou acabo tudo. Ouviste? Acabo tudo! Tudo!
Confidenciando o problema aos amigos do futebol noturno de quarta-feira, ouviu uma sugestão pragmática: produtos eróticos.
Procurasse algumas sugestões em páginas de internet: algemas, orelhas de coelho, focinhos de porco, lingeries esgarçadas, chicotes, botas pretas de cano alto, camisolas curtas e transparentes.
- O que você quiser – e também o que não quiser – você encontra. Pode confiar.
Esperou a esposa deitar-se, os filhos dormirem e os vizinhos da esquerda e da direita apagarem as luzes na esperança de se sentir sozinho durante a prática de atividade reprovada, mas altamente instigante, deslumbrante, excitante.
Um amigo mais afoito passou-lhe três endereços eletrônicos nos quais poderia adquirir produtos de excelente qualidade facilitados em cinco vezes no cartão de crédito.
- No cartão de crédito? E se alguém pegar?
- Na fatura do cartão os gastos vêm descritos como lanchonete, restaurante ou farmácia. Qualquer um gasta num lugar desses e depois nem sem lembra.
Milhares de ofertas fizeram-no se deter mais tempo do que esperava de modo que o relógio o amedrontou às seis e vinte. Desligou o computador correndo, entrou no banheiro e quando sentou-se no vaso sanitário sentiu o alívio de a esposa bater na porta pedindo que se apressasse. Escorregou a tampa do vaso, tirou a roupa e saiu sorridente.
Depois do almoço, juntou quatro cadeiras no meio da sala de reuniões, improvisou um travesseiro com grossa e velha lista telefônica escondida atrás de um vaso para segurar a porta sempre que necessário.
A secretária o acordou minutos antes de um grupo de colaboradores de uma filial entrar pelo corredor lateral e se apossar do ambiente espalhando olores femininos. Os olores trespassaram as frestas das janelas, percorreram o corredor central e invadiram sua sala instigando o interesse noturno.
Chegou mais ou menos seis e meia, tomou banho, comeu qualquer coisa e se jogou na cama acordando às onze e quinze quando a mulher, filhos colocados na cama, vestia a camisa velha e a bermudinha com furo no lado direito. Disse para ela que precisava concluir um relatório.
Voltou a uma das páginas da internet, encantou-se com um chicote que parecia maior do que ele, um par de algemas de prata e um lingerie preto de chocolate.
Cinco dias depois a recepcionista entregava-lhe um pacote lacrado com papel madeira e um aviso de recebimento. Olhou curiosamente as letras do seu nome e o endereço do escritório. O amigo entrou na sala quando contemplava o embrulho.
- Boa sorte, disse ao cruzar com ele.
Os amigos o rodearam assim que chegou ao futebol noturno de quarta-feira. Cara triste, jeito discreto, cabisbaixo. Indagado sobre a noite, voltou a carro e mostrou os produtos eróticos que mudariam seu casamento: o chicote tinha menos de quinze centímetros, as algemas mal davam para prender os punhos da boneca da filha e o lingerie preto de chocolate derretera com o calor e os solavancos da viagem.
*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 19 de novembro de 2009.
quarta-feira, 18 de novembro de 2009
GRACILIANO RAMOS: ARIDEZ TRUNCADA
Alguns professores de Literatura, de redação ou de oficinas literárias indicam Graciliano Ramos como paradigma de escrita concisa e fluente. Os alunos mais ávidos em pertencerem aos célebres grupos de bons escritores lêem a obra completa procurando elementos de densidade psicológica, de coesão, de coerência, de pontualidade e escassez de palavras para, de algum modo, ensaiá-los em seus próprios textos.
Geralmente festejado por “Vidas Secas” e, em seguida, por “São Bernardo”, o romancista possui uma bibliografia rica e diversificada que passeia pela literatura infantil e pelas memórias. Diferentemente do contista Dalton Trevisan, canonizado pela concisão, pelo uso morigerado de palavras, pela alta carga poética e pelo estilo maduro e quase imutável, Graciliano Ramos cria narradores consistentes.
Embora as comparações entre “Vidas Secas” e “São Bernardo” se espalhem exaustivamente em algumas leituras, a linguagem empregada no primeiro destoa do segundo pela maneira – que além de concisa é – seca, direta, objetiva e estupidamente natural. Enquanto a vida de Fabiano e a da família são esmiuçadas nos limites do sofrimento da sobrevivência, as ações de Paulo Honório desenrolam-se em um caso de amor que, repleto de peculiaridades e controvérsias, segue o modelo comumente utilizado nos grandes romances recorrendo-se aos entreveros psicológicos que tanto engrandecem “São Bernardo”.
Pela leitura desses dois trabalhos, solicitados em alguns exames vestibulares, estabelecem-se diferenças na linguagem fluida e apurada. Essa mesma linguagem já não pode ser encontrada em “Infância”.
A seca, aturdida e intragável composição sintática de “Infância” contrastam com o enredo focado em um protagonista aparentemente simplório que não enfrenta nem problemas insolúveis nem grandes questionamentos intelectuais, espirituais ou existenciais. Os leitores (experientes ou profissionais, na acepção que lhes emprega o crítico literário Wilson Martins) perceberão na linguagem truncada um importante elemento constitutivo da narrativa na medida em que grandes empecilhos se manifestam não mais para o personagem-menino que vivencia o comércio do pai, as conversas dos clientes, as experiências ou devaneios amorosos, mas para o narrador que rememora e reescreve dolorosamente sua imagem e suas impressões juvenis.
Décadas antes, Simões Lopes Neto valera-se de um narrador-personagem densamente caracterizado pelo vocabulário do interior gaúcho assim como, posteriormente, Osman Lins apresentaria sua maestria na concepção de trama indiscutivelmente angustiante, decorrência do rechaço e da regurgitação de sentimentos díspares e incongruentes.
A grandiosidade de Graciliano Ramos é evidente, porém se modela um equívoco ao tentar uniformizar sua linguagem como unidade de obra. Machado de Assis – segundo Antônio Candido, o maior escritor brasileiro de todos os tempos – geralmente se destaca pelo estilo maduro e singular que atingiu, contudo não se pode deixar de observar que idêntica linguagem aplicada ao romance e à crônica realça as qualidades do primeiro e cansa a leitura da segunda.
Daí que a fluência do velho Graça se manifesta na profundidade de uma mensagem baseada numa linguagem aparentemente simples, superficial, coloquial.
A maneira com que o narrador repassa suas impressões e emite suas opiniões desencadeia uma série de efeitos que facilitarão ou prejudicarão a recepção de um ou outro livro o que, na prática, pode demonstrar que, em questão de crítica e de público, “Vidas Secas” e “São Bernardo” ainda parecem as obras mais elogiadas do escritor alagoano que, segundo consta, imprimia uma vertente literária da linguagem mesmo quando redigia suas centenas de trabalhados burocráticos no serviço público.
Um dos nomes mais lembrados do regionalismo pós-semana de arte moderna, Graciliano Ramos desfila no mesmo patamar de grandes figuras do porte de José Lins do Rego, Raquel de Queirós ou Jorge Amado, entretanto supera a todos ao concentrar suas atenções na composição sintática, provavelmente esperando que os efeitos esboçados se manifestem não apenas pelo sofrimento econômico, social, político, econômico e religioso descrito, mas principalmente pela força da linguagem – despida de adjetivos em alguns casos – na concepção imagética e no natural desenlace orgânico repulsivo do leitor.
*Publicado originalmente no Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 13 de novembro de 2009.
Vicentônio Regis do Nascimento Silva (www.vicentonio.blogspot.com) é tradutor e crítico literário.
Geralmente festejado por “Vidas Secas” e, em seguida, por “São Bernardo”, o romancista possui uma bibliografia rica e diversificada que passeia pela literatura infantil e pelas memórias. Diferentemente do contista Dalton Trevisan, canonizado pela concisão, pelo uso morigerado de palavras, pela alta carga poética e pelo estilo maduro e quase imutável, Graciliano Ramos cria narradores consistentes.
Embora as comparações entre “Vidas Secas” e “São Bernardo” se espalhem exaustivamente em algumas leituras, a linguagem empregada no primeiro destoa do segundo pela maneira – que além de concisa é – seca, direta, objetiva e estupidamente natural. Enquanto a vida de Fabiano e a da família são esmiuçadas nos limites do sofrimento da sobrevivência, as ações de Paulo Honório desenrolam-se em um caso de amor que, repleto de peculiaridades e controvérsias, segue o modelo comumente utilizado nos grandes romances recorrendo-se aos entreveros psicológicos que tanto engrandecem “São Bernardo”.
Pela leitura desses dois trabalhos, solicitados em alguns exames vestibulares, estabelecem-se diferenças na linguagem fluida e apurada. Essa mesma linguagem já não pode ser encontrada em “Infância”.
A seca, aturdida e intragável composição sintática de “Infância” contrastam com o enredo focado em um protagonista aparentemente simplório que não enfrenta nem problemas insolúveis nem grandes questionamentos intelectuais, espirituais ou existenciais. Os leitores (experientes ou profissionais, na acepção que lhes emprega o crítico literário Wilson Martins) perceberão na linguagem truncada um importante elemento constitutivo da narrativa na medida em que grandes empecilhos se manifestam não mais para o personagem-menino que vivencia o comércio do pai, as conversas dos clientes, as experiências ou devaneios amorosos, mas para o narrador que rememora e reescreve dolorosamente sua imagem e suas impressões juvenis.
Décadas antes, Simões Lopes Neto valera-se de um narrador-personagem densamente caracterizado pelo vocabulário do interior gaúcho assim como, posteriormente, Osman Lins apresentaria sua maestria na concepção de trama indiscutivelmente angustiante, decorrência do rechaço e da regurgitação de sentimentos díspares e incongruentes.
A grandiosidade de Graciliano Ramos é evidente, porém se modela um equívoco ao tentar uniformizar sua linguagem como unidade de obra. Machado de Assis – segundo Antônio Candido, o maior escritor brasileiro de todos os tempos – geralmente se destaca pelo estilo maduro e singular que atingiu, contudo não se pode deixar de observar que idêntica linguagem aplicada ao romance e à crônica realça as qualidades do primeiro e cansa a leitura da segunda.
Daí que a fluência do velho Graça se manifesta na profundidade de uma mensagem baseada numa linguagem aparentemente simples, superficial, coloquial.
A maneira com que o narrador repassa suas impressões e emite suas opiniões desencadeia uma série de efeitos que facilitarão ou prejudicarão a recepção de um ou outro livro o que, na prática, pode demonstrar que, em questão de crítica e de público, “Vidas Secas” e “São Bernardo” ainda parecem as obras mais elogiadas do escritor alagoano que, segundo consta, imprimia uma vertente literária da linguagem mesmo quando redigia suas centenas de trabalhados burocráticos no serviço público.
Um dos nomes mais lembrados do regionalismo pós-semana de arte moderna, Graciliano Ramos desfila no mesmo patamar de grandes figuras do porte de José Lins do Rego, Raquel de Queirós ou Jorge Amado, entretanto supera a todos ao concentrar suas atenções na composição sintática, provavelmente esperando que os efeitos esboçados se manifestem não apenas pelo sofrimento econômico, social, político, econômico e religioso descrito, mas principalmente pela força da linguagem – despida de adjetivos em alguns casos – na concepção imagética e no natural desenlace orgânico repulsivo do leitor.
*Publicado originalmente no Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 13 de novembro de 2009.
Vicentônio Regis do Nascimento Silva (www.vicentonio.blogspot.com) é tradutor e crítico literário.
DANÇA DE SALÃO
Quando se casaram, o marido sabia que perderia a liberdade. Sempre que escolhesse uma camisa, uma cor fora dos padrões ou observasse algum quadro de publicidade seria cutucado: - Por que essa camisa horrível? Que cor mais “cheguei”! Por acaso você parou para olhar algum rabo de saia?
Saía das encrencas do jeito que podia. Sorria amarelo, desconversava, fingia não ouvir, inventava uma explicação epistemologicamente aceitável para qualquer pessoa que desconhecesse o significado de epistemologia.
Desde o noivado, abandonara o futebol de quinta-feira, esquecera o teatro de sexta-feira, riscara da agenda as churrascarias e as danceterias do sábado, as pescas do domingo.
- Mas nem pescar eu posso? Perguntava furioso.
- Pescar? Que conversa de pescar é essa? Já viu peixe nesse rio? Nem peixe, nem caranguejo, nem jacaré, nem sereia, nem piranha. Fique em casa. Você ganha mais.
Com o tempo, alguns desejos reprimidos foram esquecidos, outros ascendiam aos devaneios, mas rapidamente se descartavam. Um, apenas um, parecia consumi-lo: a dança.
As meninas dançando na escola, os espetáculos musicais da igreja, os filmes invariavelmente assistidos na madrugada ou alugados convidavam-no a sapatear, valsar, forrozar, tangar. À noite, ensaiava alguns passos dentro do banheiro enquanto a mulher ressonava simetricamente. Se pelo menos ela topasse uma aula semanal ou quinzenal... O que custava dançar um pouco?
- Não, não tem dança. Que conversa de dança é essa? Ele nem precisava perguntar. A resposta refluía em sua cabeça.
Passando no cruzamento da Avenida Colombo com a Morangueira, viu uma menina de saias esdrúxulas segurando um cartaz colorido: “Dança de salão. Preços acessíveis. Aulas noturnas. Telefone”. Antes que o verde gradual acendesse, tomou caneta e anotou o telefone da escola de dança nas costas do talão de cheque.
No trabalho, discou. Mão tremendo. Disfarçou a voz, interessou-se pelos horários, preços e formas de pagamento. Como se descobrisse seus devaneios, a telefonista informou da disponibilidade de dançarinas para alunos singulares. Jamais alunos sozinhos, mas alunos singulares, a diretora experiente sussurraria.
Anotou no talão de cheques: aula às vinte horas da terça-feira. Uma desculpa qualquer para a mulher. Entre quinta e terça-feira, angustiou-se. O tempo... O tempo...
Na terça-feira, depois do trabalho, tomou banho, vestiu roupa velha e remendada, jantou, sentou-se no sofá. Quando a mulher entrou no banheiro, disparou:
- Vou abastecer o carro! Melhor abastecer agora do que amanhã, em cima da hora.
Pegou a carteira, as chaves e partiu. Cinco quadras adiante parou, tirou uma sacola do porta-malas dentro da qual camisa, calça, meias e sapatos novos colidiam.
Pediu desculpas pelo atraso, teve sorte de pegar uma dançarina simpática. Preparava-se para enlaçá-la e iniciar os passos quando, percebendo rumores fortes e o distanciamento abrupto dos outros alunos, vislumbrou uma sombra:
- Como você vai abastecer o carro sem cheque, Ezequiel?
*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 12 de novembro de 2009.
Saía das encrencas do jeito que podia. Sorria amarelo, desconversava, fingia não ouvir, inventava uma explicação epistemologicamente aceitável para qualquer pessoa que desconhecesse o significado de epistemologia.
Desde o noivado, abandonara o futebol de quinta-feira, esquecera o teatro de sexta-feira, riscara da agenda as churrascarias e as danceterias do sábado, as pescas do domingo.
- Mas nem pescar eu posso? Perguntava furioso.
- Pescar? Que conversa de pescar é essa? Já viu peixe nesse rio? Nem peixe, nem caranguejo, nem jacaré, nem sereia, nem piranha. Fique em casa. Você ganha mais.
Com o tempo, alguns desejos reprimidos foram esquecidos, outros ascendiam aos devaneios, mas rapidamente se descartavam. Um, apenas um, parecia consumi-lo: a dança.
As meninas dançando na escola, os espetáculos musicais da igreja, os filmes invariavelmente assistidos na madrugada ou alugados convidavam-no a sapatear, valsar, forrozar, tangar. À noite, ensaiava alguns passos dentro do banheiro enquanto a mulher ressonava simetricamente. Se pelo menos ela topasse uma aula semanal ou quinzenal... O que custava dançar um pouco?
- Não, não tem dança. Que conversa de dança é essa? Ele nem precisava perguntar. A resposta refluía em sua cabeça.
Passando no cruzamento da Avenida Colombo com a Morangueira, viu uma menina de saias esdrúxulas segurando um cartaz colorido: “Dança de salão. Preços acessíveis. Aulas noturnas. Telefone”. Antes que o verde gradual acendesse, tomou caneta e anotou o telefone da escola de dança nas costas do talão de cheque.
No trabalho, discou. Mão tremendo. Disfarçou a voz, interessou-se pelos horários, preços e formas de pagamento. Como se descobrisse seus devaneios, a telefonista informou da disponibilidade de dançarinas para alunos singulares. Jamais alunos sozinhos, mas alunos singulares, a diretora experiente sussurraria.
Anotou no talão de cheques: aula às vinte horas da terça-feira. Uma desculpa qualquer para a mulher. Entre quinta e terça-feira, angustiou-se. O tempo... O tempo...
Na terça-feira, depois do trabalho, tomou banho, vestiu roupa velha e remendada, jantou, sentou-se no sofá. Quando a mulher entrou no banheiro, disparou:
- Vou abastecer o carro! Melhor abastecer agora do que amanhã, em cima da hora.
Pegou a carteira, as chaves e partiu. Cinco quadras adiante parou, tirou uma sacola do porta-malas dentro da qual camisa, calça, meias e sapatos novos colidiam.
Pediu desculpas pelo atraso, teve sorte de pegar uma dançarina simpática. Preparava-se para enlaçá-la e iniciar os passos quando, percebendo rumores fortes e o distanciamento abrupto dos outros alunos, vislumbrou uma sombra:
- Como você vai abastecer o carro sem cheque, Ezequiel?
*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 12 de novembro de 2009.
sexta-feira, 6 de novembro de 2009
Assis Brasil: entre Literatura e História
A voz calma, o semblante tranquilo e o discurso didático escondem a intensidade da força criativa de Luiz Antônio de Assis Brasil, uma pancada de livros editados, de artigos publicados, de cursos ministrados, coordenador da oficina literária da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS).
Iniciada em meados de 1970, sua carreira literária pode ser dividida em dois períodos, sendo o primeiro compreendido entre a estréia – “Um quarto de légua em quadro” (1976) – e “Concerto Campestre” (1997). Com este livro, encerra uma tradição de frases longas, parágrafos intermináveis e capítulos compridos, provavelmente inspirada em Eça de Queirós, de quem é admirador confesso.
A publicação de “O pintor de retratos” (2001), “A margem imóvel do rio” (2003) e “Música perdida” (2006) refletem as tentativas de economia frasal, de essencialidade e de pontualidade, características da nova fase.
Tomando emprestado seu raciocínio, o bom texto seria aquele do qual “se tiramos uma palavra, a frase fica sem sentido. Se excluímos uma frase, o parágrafo perde a razão de existir. Se eliminamos um parágrafo, o capítulo se desestrutura. E, finalmente, se extraímos um capítulo, o romance se lança no ininteligível”.
Em “Concerto Campestre”, acontecem conflitos violentos entre passado e presente, rural e urbano, antigo e moderno, barbárie e civilização. Tendo o Rio Grande do Sul como ambiente predominante em suas obras, o enredo se passa numa estância cujo proprietário cria um conjunto musical denominado Lira Santa Cecília, abrigando maestro e músicos em sua propriedade rural.
O fio central da trama se concentra nas relações amorosas do maestro com Clara Vitória, filha do estancieiro. Gravidez descoberta, a Lira se dissolve e Clara Vitória é isolada numa casa no pântano. Serenados os ânimos, as tentativas de reconstrução do passado se dão pela convocação dos antigos músicos para recomposição da Lira. Apesar de retomadas, as atividades e as apresentações caem no esquecimento e se isolam socialmente. O ápice do isolamento manifesta-se quando, ensandecido, o fazendeiro arrasta escravas para danças patológicas.
Numa análise da alegoria, a morte do coronel e a iniciativa (mesmo tardia) do maestro de resgatar Clara Vitória do pântano representam o rompimento entre o arcaico e o moderno, marcado pela sobreposição da civilização (música, instrumentos musicais, organização hierárquica, aquiescência, reconsideração e reparação da transgressão da conduta) sobre a barbárie (sentida no ambiente do campo, na figura autoritária e machista do patriarca, respeitada e obedecida por todos). A imagem da vitória feminina sobre o machismo e a distensão do preconceito racial simbolizam a ascensão do diálogo.
“O pintor de retratos” narra as aventuras de Sandro Lanari, pintor imigrante em busca de fama que resiste à modernidade representada pela fotografia. A insistência em praticar uma atividade que perde prestígio e a recusa em aceitar uma nova profissão de captura de imagens compõem o jogo dialético no espírito de Lanari para quem a arte se restringiria à pintura. De prestigiado pintor passa a requisitado fotógrafo nos tempos de guerra.
Provavelmente a parte mais lancinante se concentre na descrição da carnificina da loucura bélica. Obrigado a fotografar a degola de um prisioneiro, o conflito entre o moderno (fotografia) e o arcaico (pintura) se transfere ao questionamento da intolerância, da compaixão e do altruísmo.
A elegância do fragmento de “O pintor de retratos”, abaixo reproduzido, alça o romancista gaúcho ao patamar de escritores de estilo marcante, fluido e límpido na medida em que imortaliza uma cena de sutil e singular intensidade dramática:
“Traziam mais um para ser morto. Era um homem forte, apolíneo. Seus músculos rasgavam as costuras. Mandaram que se abaixasse. Como relutasse, sujeitaram-no, colocando-o de joelhos.
Latorre se preparava.
- Não! – Sandro destapou-se, levantou o braço, gritou. – Não!
Latorre suspendeu o movimento. Hirto de terror, o prisioneiro fixava a câmara.
Deu-se uma aberta de sol. Sandro tirou o obturador, fechou-o. E num único gesto, Adão Latorre degolou o prisioneiro.
A última imagem, aquela que o desgraçado levaria para a eternidade dos séculos, foi a de Sandro Lanari, o braço erguido, na atitude de quem deseja impedir algo”.
A linguagem escorreita de Assis Brasil não apenas rende homenagens à Literatura, preocupando-se com seus elementos peculiares, mas também conversa com a música, a história, a filosofia, as ciências políticas, a sociologia, a psicologia, fazendo com que sua obra se transforme igualmente em poderoso instrumento pedagógico de incentivo à intertextualidade ou, como pretendem alguns estudiosos, à multidisciplinaridade. Assis Brasil? Leitura imprescindível!
*Publicado originalmente na Série Especial Dez Escritores Contemporâneos do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 6 de novembro de 2009.
Iniciada em meados de 1970, sua carreira literária pode ser dividida em dois períodos, sendo o primeiro compreendido entre a estréia – “Um quarto de légua em quadro” (1976) – e “Concerto Campestre” (1997). Com este livro, encerra uma tradição de frases longas, parágrafos intermináveis e capítulos compridos, provavelmente inspirada em Eça de Queirós, de quem é admirador confesso.
A publicação de “O pintor de retratos” (2001), “A margem imóvel do rio” (2003) e “Música perdida” (2006) refletem as tentativas de economia frasal, de essencialidade e de pontualidade, características da nova fase.
Tomando emprestado seu raciocínio, o bom texto seria aquele do qual “se tiramos uma palavra, a frase fica sem sentido. Se excluímos uma frase, o parágrafo perde a razão de existir. Se eliminamos um parágrafo, o capítulo se desestrutura. E, finalmente, se extraímos um capítulo, o romance se lança no ininteligível”.
Em “Concerto Campestre”, acontecem conflitos violentos entre passado e presente, rural e urbano, antigo e moderno, barbárie e civilização. Tendo o Rio Grande do Sul como ambiente predominante em suas obras, o enredo se passa numa estância cujo proprietário cria um conjunto musical denominado Lira Santa Cecília, abrigando maestro e músicos em sua propriedade rural.
O fio central da trama se concentra nas relações amorosas do maestro com Clara Vitória, filha do estancieiro. Gravidez descoberta, a Lira se dissolve e Clara Vitória é isolada numa casa no pântano. Serenados os ânimos, as tentativas de reconstrução do passado se dão pela convocação dos antigos músicos para recomposição da Lira. Apesar de retomadas, as atividades e as apresentações caem no esquecimento e se isolam socialmente. O ápice do isolamento manifesta-se quando, ensandecido, o fazendeiro arrasta escravas para danças patológicas.
Numa análise da alegoria, a morte do coronel e a iniciativa (mesmo tardia) do maestro de resgatar Clara Vitória do pântano representam o rompimento entre o arcaico e o moderno, marcado pela sobreposição da civilização (música, instrumentos musicais, organização hierárquica, aquiescência, reconsideração e reparação da transgressão da conduta) sobre a barbárie (sentida no ambiente do campo, na figura autoritária e machista do patriarca, respeitada e obedecida por todos). A imagem da vitória feminina sobre o machismo e a distensão do preconceito racial simbolizam a ascensão do diálogo.
“O pintor de retratos” narra as aventuras de Sandro Lanari, pintor imigrante em busca de fama que resiste à modernidade representada pela fotografia. A insistência em praticar uma atividade que perde prestígio e a recusa em aceitar uma nova profissão de captura de imagens compõem o jogo dialético no espírito de Lanari para quem a arte se restringiria à pintura. De prestigiado pintor passa a requisitado fotógrafo nos tempos de guerra.
Provavelmente a parte mais lancinante se concentre na descrição da carnificina da loucura bélica. Obrigado a fotografar a degola de um prisioneiro, o conflito entre o moderno (fotografia) e o arcaico (pintura) se transfere ao questionamento da intolerância, da compaixão e do altruísmo.
A elegância do fragmento de “O pintor de retratos”, abaixo reproduzido, alça o romancista gaúcho ao patamar de escritores de estilo marcante, fluido e límpido na medida em que imortaliza uma cena de sutil e singular intensidade dramática:
“Traziam mais um para ser morto. Era um homem forte, apolíneo. Seus músculos rasgavam as costuras. Mandaram que se abaixasse. Como relutasse, sujeitaram-no, colocando-o de joelhos.
Latorre se preparava.
- Não! – Sandro destapou-se, levantou o braço, gritou. – Não!
Latorre suspendeu o movimento. Hirto de terror, o prisioneiro fixava a câmara.
Deu-se uma aberta de sol. Sandro tirou o obturador, fechou-o. E num único gesto, Adão Latorre degolou o prisioneiro.
A última imagem, aquela que o desgraçado levaria para a eternidade dos séculos, foi a de Sandro Lanari, o braço erguido, na atitude de quem deseja impedir algo”.
A linguagem escorreita de Assis Brasil não apenas rende homenagens à Literatura, preocupando-se com seus elementos peculiares, mas também conversa com a música, a história, a filosofia, as ciências políticas, a sociologia, a psicologia, fazendo com que sua obra se transforme igualmente em poderoso instrumento pedagógico de incentivo à intertextualidade ou, como pretendem alguns estudiosos, à multidisciplinaridade. Assis Brasil? Leitura imprescindível!
*Publicado originalmente na Série Especial Dez Escritores Contemporâneos do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 6 de novembro de 2009.
quinta-feira, 5 de novembro de 2009
PEDAGOGIA DO ESPANCAMENTO
Quando concluiu o ensino médio, pediu ao pai um quadro-negro e, quatro meses alfabetizando crianças pela manhã e adultos à noite, percebeu que realmente tinha vocação para a docência de modo que se encerrava no quarto durante as tardes, os fins de semana e os feriados para memorizar as fórmulas de química, de física e de matemática, os conceitos de história, de geografia e de Literatura, as complexidades de filosofia e de sociologia, a inutilidade da biologia e dos movimentos políticos contemporâneos.
Embora o primeiro lugar na classificação geral tenha ficado distante de seus objetivos e de suas possibilidades cognitivas, concluiu o curso de pedagogia e o mestrado em educação com êxito sendo contratada por uma escola de classe média.
Ao fim da primeira semana de trabalho (sorrisos, cumprimentos, anedotas, café com bolachinhas salgadas, mães se apresentando e exaltando as qualidades dos filhos), o diretor chamou-a à sala onde já estavam uma coordenadora, um consultor de negócios e o proprietário da escola. Fechou a porta à chave.
O diretor pensou em abrir a janela. Porém, o dono da escola o desautorizou. Um assunto importante não poderia correr o risco de sair pelos ares, atravessar os muros e pousar nos ouvidos da concorrência.
- Quando a procuramos, os decanos da faculdade de educação nos garantiram que a senhora possuía requisitos e qualificações mais do que necessárias.
O dono ajeitou-se na cadeira, afrouxou a gravata, desabotoou o colarinho e manteve a posição das pernas. O diretor continuou:
- Sem rodeios: trabalhamos no vermelho há três anos e meio. Ou mudamos nosso método, ou fechamos as portas. Já enviamos professores para cursos de pós-graduação, ampliamos o estacionamento e a piscina, reformamos a quadra de esportes, colocamos condicionadores de ar em todas as salas e também nos banheiros, distribuímos bolsas de estudos anuais para os melhores alunos... Enfim, fizemos o possível. Não tem mais jeito. A senhora é nossa única chance.
O diretor detalhou os problemas financeiros graves.
- Se resolver um problema, um único problema, estará de bom tamanho, assegurou o diretor. Os demais aquiesceram.
Apontou com o polegar para a direita:
- Aquele problema.
A escola ao lado levara quase sessenta por cento dos discentes. Passou meses revirando livros, visitando teorias, lendo relatos de casos. Conversou com professores da faculdade que, sem saber o que fazer, encorajavam-na a continuar estudando para encontrar uma solução.
Vislumbrava a carta de demissão do primeiro emprego que mal durara um ano. Quando se preparava para anunciar o fracasso ao diretor, o silêncio incômodo da escola vizinha despertou-lhe atenção. A qualquer hora do dia jamais ouvia ninguém pulando, gritando ou berrando. Como aconteciam as aulas de educação física?
Pulou o muro dos fundos da escola adversária e na primeira sala descobriu o segredo da eficiência.
Semana seguinte, o diretor a convidou para uma reunião na sala em que já a esperavam a coordenadora, o consultor financeiro e o dono da escola.
- Então, professora? Conseguiu resolver nosso problema? Perguntou apreensivo o diretor.
- Certamente. Descobri que os pais não querem apenas uma escola tradicional com práticas educativas modernas. Querem educação eficaz, imediata e satisfatória. Para alcançarmos essa educação, seguiremos as sugestões desse pequeno prospecto que escrevi.
- E de que trata esse prospecto? Curioso, o consultor.
- De um método infalível: Pedagogia do Espancamento.
*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 5 de novembro de 2009.
Embora o primeiro lugar na classificação geral tenha ficado distante de seus objetivos e de suas possibilidades cognitivas, concluiu o curso de pedagogia e o mestrado em educação com êxito sendo contratada por uma escola de classe média.
Ao fim da primeira semana de trabalho (sorrisos, cumprimentos, anedotas, café com bolachinhas salgadas, mães se apresentando e exaltando as qualidades dos filhos), o diretor chamou-a à sala onde já estavam uma coordenadora, um consultor de negócios e o proprietário da escola. Fechou a porta à chave.
O diretor pensou em abrir a janela. Porém, o dono da escola o desautorizou. Um assunto importante não poderia correr o risco de sair pelos ares, atravessar os muros e pousar nos ouvidos da concorrência.
- Quando a procuramos, os decanos da faculdade de educação nos garantiram que a senhora possuía requisitos e qualificações mais do que necessárias.
O dono ajeitou-se na cadeira, afrouxou a gravata, desabotoou o colarinho e manteve a posição das pernas. O diretor continuou:
- Sem rodeios: trabalhamos no vermelho há três anos e meio. Ou mudamos nosso método, ou fechamos as portas. Já enviamos professores para cursos de pós-graduação, ampliamos o estacionamento e a piscina, reformamos a quadra de esportes, colocamos condicionadores de ar em todas as salas e também nos banheiros, distribuímos bolsas de estudos anuais para os melhores alunos... Enfim, fizemos o possível. Não tem mais jeito. A senhora é nossa única chance.
O diretor detalhou os problemas financeiros graves.
- Se resolver um problema, um único problema, estará de bom tamanho, assegurou o diretor. Os demais aquiesceram.
Apontou com o polegar para a direita:
- Aquele problema.
A escola ao lado levara quase sessenta por cento dos discentes. Passou meses revirando livros, visitando teorias, lendo relatos de casos. Conversou com professores da faculdade que, sem saber o que fazer, encorajavam-na a continuar estudando para encontrar uma solução.
Vislumbrava a carta de demissão do primeiro emprego que mal durara um ano. Quando se preparava para anunciar o fracasso ao diretor, o silêncio incômodo da escola vizinha despertou-lhe atenção. A qualquer hora do dia jamais ouvia ninguém pulando, gritando ou berrando. Como aconteciam as aulas de educação física?
Pulou o muro dos fundos da escola adversária e na primeira sala descobriu o segredo da eficiência.
Semana seguinte, o diretor a convidou para uma reunião na sala em que já a esperavam a coordenadora, o consultor financeiro e o dono da escola.
- Então, professora? Conseguiu resolver nosso problema? Perguntou apreensivo o diretor.
- Certamente. Descobri que os pais não querem apenas uma escola tradicional com práticas educativas modernas. Querem educação eficaz, imediata e satisfatória. Para alcançarmos essa educação, seguiremos as sugestões desse pequeno prospecto que escrevi.
- E de que trata esse prospecto? Curioso, o consultor.
- De um método infalível: Pedagogia do Espancamento.
*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 5 de novembro de 2009.
sábado, 31 de outubro de 2009
JOSUÉ GUIMARÃES: MESTRE DA LITERATURA FANTÁSTICA
O esforço de Jorge Luis Borges, Adolfo Bioy Casares e Silvina Ocampo de selecionar contos para compor a “Antologia de la Literatura fantástica”, em meados de 1960, foi bem recebido, porém se perdeu no tempo e no espaço.
Da eclética antologia constam nomes consagrados como Casares, Borges, Ocampo, Lewis Carroll, Julio Cortázar, James Joyce, Franz Kafka, Maupassant, Poe, Rabelais, Sinclair, H. G. Wells, entre outros grandes escritores. Parece-me que os organizadores limitaram-se a escolher predominantemente obras da Literatura de língua espanhola, inglesa e francesa, esquecendo-se das de língua portuguesa.
Republicada regularmente, essa antologia (cujo exemplar que detenho atinge a vigésima primeira edição, 2008) insistiu em se manter alheia ao desenvolvimento da Literatura fantástica brasileira. Por essa razão, a obra continuou incompleta por excluir o maior nome do gênero entre nós e, indubitavelmente, um dos mais importantes no mundo: Josué Guimarães.
Com carreira tardia, assim como Saramago iniciada após os quarenta anos, Josué Guimarães consagrou-se escritor quando publicara “Enquanto a noite não chega” em 1978. Alguns poetas se eternizam apenas por parte de sua obra ou por um poema. Josué Guimarães já percorreu considerável trajetória literária, porém, se pudéssemos apontar uma obra fundamental, a novela que narra o cotidiano de Dom Eleutério e dona Conceição numa cidade decadente da qual, com exceção do coveiro, são seus únicos moradores seria escolhida com destaques e louvores.
Discute-se o caminho da morte desde o princípio pelo deserto urbano e pelas ruínas arquitetônicas, pelo desgaste de utensílios (como a falta de barbeador de Dom Eleutério) ou pelo fim da comida (economizada ao extremo por Dona Conceição que sabe que os alimentos não serão repostos), pela fantasia da rememoração mesclada aos acontecimentos contemporâneos, numa evidente ausência de discernimento entre devaneio salutar e delírio nostálgico e patológico.
A mistura entre tempos, lugares, pessoas e episódios permeia todo o enredo que discute secundariamente posicionamentos sobre guerras, escolhas e família, pondo em relevo a condição humana senil na perspectiva do abandono e da efemeridade, dos costumes e das recordações, ressaltando a importância da solidariedade e da compaixão como moedas de sobrevivência.
Um espaço como esse seria curto para tratar das questões intrínsecas e explícitas de um grande livro – embora considerado uma novela que dificilmente ultrapassa as noventa páginas – e de mostrar a genialidade brasileira no Rio Grande do Sul, contudo é mais do que suficiente para mandar um recado a Borges: se as causas perdidas só podem interessar a um cavalheiro, podemos escolher as armas do duelo?
*Publicado originalmente na Série Especial Dez Escritores Contemporâneos do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 30 de outubro de 2009.
Da eclética antologia constam nomes consagrados como Casares, Borges, Ocampo, Lewis Carroll, Julio Cortázar, James Joyce, Franz Kafka, Maupassant, Poe, Rabelais, Sinclair, H. G. Wells, entre outros grandes escritores. Parece-me que os organizadores limitaram-se a escolher predominantemente obras da Literatura de língua espanhola, inglesa e francesa, esquecendo-se das de língua portuguesa.
Republicada regularmente, essa antologia (cujo exemplar que detenho atinge a vigésima primeira edição, 2008) insistiu em se manter alheia ao desenvolvimento da Literatura fantástica brasileira. Por essa razão, a obra continuou incompleta por excluir o maior nome do gênero entre nós e, indubitavelmente, um dos mais importantes no mundo: Josué Guimarães.
Com carreira tardia, assim como Saramago iniciada após os quarenta anos, Josué Guimarães consagrou-se escritor quando publicara “Enquanto a noite não chega” em 1978. Alguns poetas se eternizam apenas por parte de sua obra ou por um poema. Josué Guimarães já percorreu considerável trajetória literária, porém, se pudéssemos apontar uma obra fundamental, a novela que narra o cotidiano de Dom Eleutério e dona Conceição numa cidade decadente da qual, com exceção do coveiro, são seus únicos moradores seria escolhida com destaques e louvores.
Discute-se o caminho da morte desde o princípio pelo deserto urbano e pelas ruínas arquitetônicas, pelo desgaste de utensílios (como a falta de barbeador de Dom Eleutério) ou pelo fim da comida (economizada ao extremo por Dona Conceição que sabe que os alimentos não serão repostos), pela fantasia da rememoração mesclada aos acontecimentos contemporâneos, numa evidente ausência de discernimento entre devaneio salutar e delírio nostálgico e patológico.
A mistura entre tempos, lugares, pessoas e episódios permeia todo o enredo que discute secundariamente posicionamentos sobre guerras, escolhas e família, pondo em relevo a condição humana senil na perspectiva do abandono e da efemeridade, dos costumes e das recordações, ressaltando a importância da solidariedade e da compaixão como moedas de sobrevivência.
Um espaço como esse seria curto para tratar das questões intrínsecas e explícitas de um grande livro – embora considerado uma novela que dificilmente ultrapassa as noventa páginas – e de mostrar a genialidade brasileira no Rio Grande do Sul, contudo é mais do que suficiente para mandar um recado a Borges: se as causas perdidas só podem interessar a um cavalheiro, podemos escolher as armas do duelo?
*Publicado originalmente na Série Especial Dez Escritores Contemporâneos do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 30 de outubro de 2009.
quinta-feira, 29 de outubro de 2009
ALUNO MODELO
Orgulhosa e falante, a mãe terminou de despejar café nas xícaras do casal que a visitava:
- Meu filho! Vem aqui.
Mostraria aos primos – na verdade, ela, a prima, e ele, marido da prima – que o filho, aluno modelo do primeiro semestre letivo de famosa escola particular, estudava a valer. Interrompera os estudos na terceira série do então curso primário, a mãe queria o filho desfilando de anel grande e vistoso de doutor (poderia ser de médico, de engenheiro ou de entendido da computação, menos de advogado).
- Ele é uma beleza, afirmava, sorrindo orgulhosamente. Vai primo, pode fazer qualquer pergunta que ele responde. Responde na lata. Nem precisa estudar antes.
O marido da prima constrangeu-se pela insistência da mulher que acabava de conhecer, porém por cortesia, perguntou de quais matérias mais gostava. Preferia geografia e Literatura. Embora simpatizasse com física, escrevera alguns poemas na adolescência e lia regularmente romances e crônicas. Viajara a alguns estados e aos países vizinhos de modo que, por conhecimento menos teórico do que prático, iniciou a sabatina:
- Qual a capital do Brasil?
- Brasília, respondeu de pronto o moleque.
- Paraíba?
- João Pessoa.
- Acre?
- Rio Branco.
- Maranhão?
- São Luis.
O marido da prima se empolgava, pensou em questões sobre eras geológicas e camadas terrestres, marítimas e aéreas, mas aprofundou-se nas capitais dos países latino-americanos.
- Qual a capital da Argentina? Disparou, sorridente.
- Caracas.
- Uruguai?
- Surinama.
- Chile?
- Ouro Preto.
A mãe abraçava-o, empurrando-lhe duas coxinhas goela abaixo a título de prêmio pelas respostas rascantes. O menino poderia estar nervoso a ponto de trocar nomes de capitais e confundir uma cidade brasileira com a capital chilena. Mudou para Literatura. Perguntas simples, respostas simples.
- Quem escreveu “A luneta mágica”?
- Machado de Assis.
- “Grande Sertão: veredas”?
- José Lins do Rego.
- “Eu e outras poesias”?
- Guilhermino Cesar.
- “Concerto Campestre” e “O pintor de retratos”?
- Castro Alves.
Voltou a premiá-lo com duas coxinhas e o liberou para brincar na rua, mas antes de atravessar a cozinha, o marido da prima quis indagar novamente.
- Em sua opinião, quem é o maior poeta da Literatura brasileira? Entende? Da Literatura brasileira!
Aquiesceu afirmativamente. Aluno modelo do primeiro semestre letivo de uma das mais tradicionais escolas particulares. Responderia facilmente. Voltando o corpo para dentro de casa:
- Fernando Pessoa.
- Eu não disse que ele era um gênio? Um gênio precoce.
Ao fim do café o marido da prima fez questão de tomar nota do nome e do endereço da escola. Esquivar-se-ia das proximidades do educandário para evitar o contágio de inteligência tão grande.
*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis –SP) de 29 de outubro de 2009.
- Meu filho! Vem aqui.
Mostraria aos primos – na verdade, ela, a prima, e ele, marido da prima – que o filho, aluno modelo do primeiro semestre letivo de famosa escola particular, estudava a valer. Interrompera os estudos na terceira série do então curso primário, a mãe queria o filho desfilando de anel grande e vistoso de doutor (poderia ser de médico, de engenheiro ou de entendido da computação, menos de advogado).
- Ele é uma beleza, afirmava, sorrindo orgulhosamente. Vai primo, pode fazer qualquer pergunta que ele responde. Responde na lata. Nem precisa estudar antes.
O marido da prima constrangeu-se pela insistência da mulher que acabava de conhecer, porém por cortesia, perguntou de quais matérias mais gostava. Preferia geografia e Literatura. Embora simpatizasse com física, escrevera alguns poemas na adolescência e lia regularmente romances e crônicas. Viajara a alguns estados e aos países vizinhos de modo que, por conhecimento menos teórico do que prático, iniciou a sabatina:
- Qual a capital do Brasil?
- Brasília, respondeu de pronto o moleque.
- Paraíba?
- João Pessoa.
- Acre?
- Rio Branco.
- Maranhão?
- São Luis.
O marido da prima se empolgava, pensou em questões sobre eras geológicas e camadas terrestres, marítimas e aéreas, mas aprofundou-se nas capitais dos países latino-americanos.
- Qual a capital da Argentina? Disparou, sorridente.
- Caracas.
- Uruguai?
- Surinama.
- Chile?
- Ouro Preto.
A mãe abraçava-o, empurrando-lhe duas coxinhas goela abaixo a título de prêmio pelas respostas rascantes. O menino poderia estar nervoso a ponto de trocar nomes de capitais e confundir uma cidade brasileira com a capital chilena. Mudou para Literatura. Perguntas simples, respostas simples.
- Quem escreveu “A luneta mágica”?
- Machado de Assis.
- “Grande Sertão: veredas”?
- José Lins do Rego.
- “Eu e outras poesias”?
- Guilhermino Cesar.
- “Concerto Campestre” e “O pintor de retratos”?
- Castro Alves.
Voltou a premiá-lo com duas coxinhas e o liberou para brincar na rua, mas antes de atravessar a cozinha, o marido da prima quis indagar novamente.
- Em sua opinião, quem é o maior poeta da Literatura brasileira? Entende? Da Literatura brasileira!
Aquiesceu afirmativamente. Aluno modelo do primeiro semestre letivo de uma das mais tradicionais escolas particulares. Responderia facilmente. Voltando o corpo para dentro de casa:
- Fernando Pessoa.
- Eu não disse que ele era um gênio? Um gênio precoce.
Ao fim do café o marido da prima fez questão de tomar nota do nome e do endereço da escola. Esquivar-se-ia das proximidades do educandário para evitar o contágio de inteligência tão grande.
*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis –SP) de 29 de outubro de 2009.
sábado, 24 de outubro de 2009
Valesca de Assis: habilidades múltiplas
O passeio entre dois gêneros literários ou entre suas nuances nem sempre se dá de maneira satisfatória. Seja pela limitação despercebida do escritor ainda imaturo, seja pelas tentativas frustrantes e sem resultados claros, adultos e jovens ou romances e crônicas parecem fronteiras mais do que suficientes para repensar as técnicas narrativas e descobrir caminhos que levam ao mesmo destino. Nesse ponto – em que as técnicas são repensadas antes de aplicadas – destaca-se o trabalho da escritora gaúcha Valesca de Assis.
Educadora, filósofa, autora premiada e ministrante de oficinas literárias no Rio Grande do Sul, Valesca de Assis desperta a atenção por duas características que, embora interdependentes, se complementam na busca dos efeitos que aparentemente pretendem alcançar. Se o ensaísta e escritor mexicano Carlos Fuentes define a Literatura como o exercício idiossincrático da imaginação e da linguagem, Valesca de Assis sabe desempenhar maduramente os artifícios de que dispõe para transformar a linguagem em degrau de uma escada consistentemente construída.
A verificação dessa afirmação ocorre em duas de suas obras. A premiada “Harmonia das esferas”, romance destinado ao público adulto, mas que não contém nenhum empecilho aos leitores de todas as idades, narra a história de um casal, passada na Porto Alegre dos anos de chumbo da ditadura. Quem ultrapassa as dez primeiras páginas e se adapta à linguagem trabalhada para causar, nos moldes semelhantes em alguns trechos de Clarice Lispector, uma angústia pela relação conturbada dos protagonistas, se atém aos amantes que, em momentos de loucura, são capazes de se valer de artifícios pouco ortodoxos para encerrar o passado e retirar suas faíscas do centro da memória.
Numa leitura superficial, o uso de explosivos para mandar pelos ares e pelas águas uma ilha do Guaíba parece inverídico, mas, em um segundo momento, as iniciativas e práticas militares durante o regime de exceção beiravam o sem sentido, que certamente surpreenderia Kafka.
A linguagem de efeitos psicológicos e nem sempre fluida de “Harmonia das esferas” cede lugar a uma narrativa linear, corrente e empolgante em “Vão pensar que estamos fugindo!”, destinado ao público infanto-juvenil e publicado no ano passado por ocasião das comemorações dos duzentos anos da chegada da família real ao Brasil.
De situações hilárias e de fatos que prendem a atenção do leitor numa viagem pelos subúrbios da história brasileira, “Vão pensar que estamos fugindo!” vale como material pedagógico imprescindível para lançar na sala de aula, de maneira pedagogicamente eficaz, as discussões frugais e humanas que permearam a vida da nobreza que se instalava em nosso país. Dessa maneira, os longos discursos de exaltação das figuras públicas abrem espaço para as análises das vidas privadas.
Pela condução da linguagem e pela destreza no exercício do foco narrativo, Valesca de Assis deve se instalar na bibliografia dos que pretendem uma leitura divertida, mas não fútil, das relações amorosas e das angústias particulares dos personagens públicos.
*Publicado originalmente na Série Especial Dez Escritores Contemporâneos do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 23 de outubro de 2009.
Educadora, filósofa, autora premiada e ministrante de oficinas literárias no Rio Grande do Sul, Valesca de Assis desperta a atenção por duas características que, embora interdependentes, se complementam na busca dos efeitos que aparentemente pretendem alcançar. Se o ensaísta e escritor mexicano Carlos Fuentes define a Literatura como o exercício idiossincrático da imaginação e da linguagem, Valesca de Assis sabe desempenhar maduramente os artifícios de que dispõe para transformar a linguagem em degrau de uma escada consistentemente construída.
A verificação dessa afirmação ocorre em duas de suas obras. A premiada “Harmonia das esferas”, romance destinado ao público adulto, mas que não contém nenhum empecilho aos leitores de todas as idades, narra a história de um casal, passada na Porto Alegre dos anos de chumbo da ditadura. Quem ultrapassa as dez primeiras páginas e se adapta à linguagem trabalhada para causar, nos moldes semelhantes em alguns trechos de Clarice Lispector, uma angústia pela relação conturbada dos protagonistas, se atém aos amantes que, em momentos de loucura, são capazes de se valer de artifícios pouco ortodoxos para encerrar o passado e retirar suas faíscas do centro da memória.
Numa leitura superficial, o uso de explosivos para mandar pelos ares e pelas águas uma ilha do Guaíba parece inverídico, mas, em um segundo momento, as iniciativas e práticas militares durante o regime de exceção beiravam o sem sentido, que certamente surpreenderia Kafka.
A linguagem de efeitos psicológicos e nem sempre fluida de “Harmonia das esferas” cede lugar a uma narrativa linear, corrente e empolgante em “Vão pensar que estamos fugindo!”, destinado ao público infanto-juvenil e publicado no ano passado por ocasião das comemorações dos duzentos anos da chegada da família real ao Brasil.
De situações hilárias e de fatos que prendem a atenção do leitor numa viagem pelos subúrbios da história brasileira, “Vão pensar que estamos fugindo!” vale como material pedagógico imprescindível para lançar na sala de aula, de maneira pedagogicamente eficaz, as discussões frugais e humanas que permearam a vida da nobreza que se instalava em nosso país. Dessa maneira, os longos discursos de exaltação das figuras públicas abrem espaço para as análises das vidas privadas.
Pela condução da linguagem e pela destreza no exercício do foco narrativo, Valesca de Assis deve se instalar na bibliografia dos que pretendem uma leitura divertida, mas não fútil, das relações amorosas e das angústias particulares dos personagens públicos.
*Publicado originalmente na Série Especial Dez Escritores Contemporâneos do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 23 de outubro de 2009.
quinta-feira, 22 de outubro de 2009
CAMINITO
Para Mira
Por insistência do marido, aceitou o convite para passar sete dias em San Telmo e percorrer novamente as ruas históricas da capital de Carlos Gardel, de Cortázar, de Borges, de Ernesto Sábato e de Roberto Arlt. Subiria e desceria pelas quase duas dezenas de livrarias da Calle Florida ou escolheria um café pouco barulhento para se perder em algum romance.
A viagem começara mal: tomara um banho de lama quando um táxi afundara o pneu em um buraco na frente de sua casa, o vôo atrasara quatro horas e meia e, dentro do avião, um comissário criou problemas com as autorizações dos netos.
Como se não bastasse, o avião entrara em Porto Alegre para solucionar um problema mecânico e o trajeto, deveria se encerrar às quatro e quinze da tarde argentina, terminou por volta das treze horas do dia seguinte. O marido gemia de dores estomacais.
- Bem que falei para não virmos, dizia para si mesma, enquanto procurava remédio mais forte na mala desarrumada sobre a cama e tentava o número dos netos, deixados dois andares abaixo.
Quando os dedos deslizavam no teclado do telefone, três socos fortes e seguidos ecoaram da porta. O gerente reclamava da bagunça dos netos cujo apartamento estava desfigurado: a janela interna e o espelho do banheiro quebrados, os colchões jogados ao chão, duas cadeiras de pernas destruídas, suporte, fios, aparelho de DVD e de TV destroçados.
Ordenou que arrumassem a bagunça e, em seguida, refizessem as malas. Voltariam a Presidente Prudente naquele mesmo dia ou no dia seguinte, mesmo que tivesse que pagar multa pesada. Desceu à recepção, desculpou-se com o gerente e pediu que providenciasse as passagens. Ficasse tranqüilo. Pagaria integralmente as diárias.
Saiu em busca de um restaurante, três quarteirões abaixo. Desde a véspera ingerira apenas café, água e suco.
Assim que entrou, o pai transpassou a memória: lembrava dele, anos atrás, sentado numa mesa de canto. A mãe, ela e as três irmãs visitavam Buenos Aires pela primeira vez e, encantadas, ouviam-no atenciosamente falar de Borges.
- O maior escritor do mundo, falava o velho, bebendo elegantemente café sem açúcar.
Um café sem açúcar numa xícara pequena e um copo de água gelada fizeram-na recordar das preocupações paternas: sumiço da irmã com um argentino de olhos verdes, demora de outra irmã que saíra em busca de um livro, mãe e irmã que saíram cedo para o zoológico e, na volta, detiveram-se no comércio e esqueceram as horas. Puerto Madero e as advertências contra os aproveitadores. Lembraria do pai cantando Caminito se, no momento em que seus pensamentos se perdiam nos labirintos da memória, um cantor não encetasse e os clientes não o acompanhassem: “Desde que se fue/ Triste vivo yo/ Caminito amigo/ Yo también me voy”.
Vislumbrou em volta, os olhos umedeceram, os sentimentos se confundiram, os apuros dos netos misturavam-se às travessuras das irmãs. Ao lado esquerdo do palco improvisado, um homem - terno creme, gravata vinho e lenço vermelho destacando-se no bolso do paletó – cantava empolgadamente. Um homem visto apenas por olhos de felicidade. Um homem escutado apenas por ouvidos poéticos. “Desde que se fue/ Nunca más volvió/ Seguiré sus pasos/ Caminito, adiós”.
À entrada do hotel o gerente informou das passagens para o fim da noite. Um micro-ônibus os levaria ao aeroporto.
Fitou as passagens pulsantes, sorriu discretamente, agradeceu o esforço. Subiria ao andar dos netos. Desfizessem as malas. “Desde que se fue/ Nunca más volvió/ Seguiré sus pasos/ Caminito, adiós”.
*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 22 de outubro de 2009.
Por insistência do marido, aceitou o convite para passar sete dias em San Telmo e percorrer novamente as ruas históricas da capital de Carlos Gardel, de Cortázar, de Borges, de Ernesto Sábato e de Roberto Arlt. Subiria e desceria pelas quase duas dezenas de livrarias da Calle Florida ou escolheria um café pouco barulhento para se perder em algum romance.
A viagem começara mal: tomara um banho de lama quando um táxi afundara o pneu em um buraco na frente de sua casa, o vôo atrasara quatro horas e meia e, dentro do avião, um comissário criou problemas com as autorizações dos netos.
Como se não bastasse, o avião entrara em Porto Alegre para solucionar um problema mecânico e o trajeto, deveria se encerrar às quatro e quinze da tarde argentina, terminou por volta das treze horas do dia seguinte. O marido gemia de dores estomacais.
- Bem que falei para não virmos, dizia para si mesma, enquanto procurava remédio mais forte na mala desarrumada sobre a cama e tentava o número dos netos, deixados dois andares abaixo.
Quando os dedos deslizavam no teclado do telefone, três socos fortes e seguidos ecoaram da porta. O gerente reclamava da bagunça dos netos cujo apartamento estava desfigurado: a janela interna e o espelho do banheiro quebrados, os colchões jogados ao chão, duas cadeiras de pernas destruídas, suporte, fios, aparelho de DVD e de TV destroçados.
Ordenou que arrumassem a bagunça e, em seguida, refizessem as malas. Voltariam a Presidente Prudente naquele mesmo dia ou no dia seguinte, mesmo que tivesse que pagar multa pesada. Desceu à recepção, desculpou-se com o gerente e pediu que providenciasse as passagens. Ficasse tranqüilo. Pagaria integralmente as diárias.
Saiu em busca de um restaurante, três quarteirões abaixo. Desde a véspera ingerira apenas café, água e suco.
Assim que entrou, o pai transpassou a memória: lembrava dele, anos atrás, sentado numa mesa de canto. A mãe, ela e as três irmãs visitavam Buenos Aires pela primeira vez e, encantadas, ouviam-no atenciosamente falar de Borges.
- O maior escritor do mundo, falava o velho, bebendo elegantemente café sem açúcar.
Um café sem açúcar numa xícara pequena e um copo de água gelada fizeram-na recordar das preocupações paternas: sumiço da irmã com um argentino de olhos verdes, demora de outra irmã que saíra em busca de um livro, mãe e irmã que saíram cedo para o zoológico e, na volta, detiveram-se no comércio e esqueceram as horas. Puerto Madero e as advertências contra os aproveitadores. Lembraria do pai cantando Caminito se, no momento em que seus pensamentos se perdiam nos labirintos da memória, um cantor não encetasse e os clientes não o acompanhassem: “Desde que se fue/ Triste vivo yo/ Caminito amigo/ Yo también me voy”.
Vislumbrou em volta, os olhos umedeceram, os sentimentos se confundiram, os apuros dos netos misturavam-se às travessuras das irmãs. Ao lado esquerdo do palco improvisado, um homem - terno creme, gravata vinho e lenço vermelho destacando-se no bolso do paletó – cantava empolgadamente. Um homem visto apenas por olhos de felicidade. Um homem escutado apenas por ouvidos poéticos. “Desde que se fue/ Nunca más volvió/ Seguiré sus pasos/ Caminito, adiós”.
À entrada do hotel o gerente informou das passagens para o fim da noite. Um micro-ônibus os levaria ao aeroporto.
Fitou as passagens pulsantes, sorriu discretamente, agradeceu o esforço. Subiria ao andar dos netos. Desfizessem as malas. “Desde que se fue/ Nunca más volvió/ Seguiré sus pasos/ Caminito, adiós”.
*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 22 de outubro de 2009.
sábado, 17 de outubro de 2009
FUNCIONÁRIO PÚBLICO: BOLA DE PING-PONG?
Um projeto aprovado pela Câmara de Vereadores e transformado posteriormente em lei durante o primeiro ano de mandato do então prefeito Roberto de Almeida reduziu a carga horária de uma equipe de funcionários da prefeitura. Em vez de trabalharem oito horas com intervalo para almoço, trabalhariam seis horas diretas.
Ganhou o funcionário que viu crescer a qualidade de vida. Ganharam os munícipes com a ampliação do horário de atendimento dos postos de saúde, estendido até às 19h. Ganhou a prefeitura que, numa iniciativa inovadora e acompanhando a evolução da História dos trabalhadores, proporcionou agilidade no serviço e melhor atendimento à população.
Em meados deste ano, a prefeita de Maracaí achou que os funcionários que trabalham seis horas deveriam voltar às oito horas diárias. Para isso, mandou um projeto de lei para a Câmara sem conversar com todos os vereadores nem ouvir adequadamente o Sindicato dos Funcionários e Servidores Públicos Municipais de Maracaí.
A falta de comunicação desencadeou embaraços. Os servidores diretamente afetados pela proposta de mudança de jornada de trabalho reuniram-se e discutiram as propostas heterodoxas apresentadas pela prefeitura. Apoiado pelo Sindicato dos Funcionários e Servidores Públicos Municipais de Maracaí, o grupo compareceria em peso à sessão que discutiria o assunto.
Na sessão de seis de outubro, acuados, alguns vereadores lastimavam-se da tribuna pela situação em que foram metidos. Vociferam contra um inimigo invisível e sem nome. Sentiram-se incomodados por terem de enfrentar a opinião pública, os funcionários e os cidadãos conscientes que lotaram as dependências do edifício da Câmara.
O projeto da prefeita foi derrotado. Porém, por motivos burocráticos, voltará a ser apresentado em outra ocasião.
Durante a sessão distribuí uma cópia de “Sindicalismo de araque”. No artigo, publicado na imprensa de Assis em junho deste ano, alertava contra sindicalistas que se dizem a favor do trabalhador, mas que viram as costas quando são chamados a defender os direitos alcançados pelo trabalhador.
Os sindicalistas e deputados federais Vicentinho (PT), Paulinho da Força (PDT) e Medeiros (PR) recentemente discursaram a favor da redução da jornada de trabalho semanal durante audiência pública na Câmara dos Deputados em Brasília. Sindicalista de verdade é sindicalista sempre. Sindicalista de verdade está sempre em defesa do trabalhador.
O deputado federal Vicentinho (PT-SP) defendeu os trabalhadores e a diminuição da jornada semanal de trabalho em seu discurso na Câmara dos Deputados. Pergunte ao vereador de seu partido, em quem você votou, se ele foi contra ou a favor do trabalhador municipal.
Quem estava a favor dos trabalhadores da prefeitura de Maracaí? Zambito e seus companheiros do Sindicato de Cândido Mota, eram alguns deles. José Antônio da Silva e José Aparecido dos Santos, popular Zeca, que integram a diretoria do Sindicato dos Municipais de Maracaí, também apoiaram os trabalhadores. Entre os vereadores, cinco votaram a favor dos trabalhadores: Cleonice David (PSDC), Edvaldo Rodrigues (PP), Eduardo Correa Sotana (PSDB), Agnaldo Oliveira Cruz (PSDB) e Aparecido Cardoso (PSDB).
O funcionário público municipal de Maracaí não é uma bola de ping-pong. Demorou muito para conquistar direitos que se consagram no mundo inteiro e não pode ser forçado a aumentar a carga de trabalho por meio de uma lei que, eventualmente aprovada, pode até ser legal, mas será totalmente ilegítima.
Lembro que em uma ocasião alguém mencionou a contratação de consultoria pela prefeitura. A prefeitura está certa. Quando não se tem capacidade ou não se tem conhecimento completo de um assunto, o melhor – tanto para administradores públicos quanto para a população – é contratar legalmente boas consultorias.
Sugeriria que a prefeitura de Maracaí contratasse uma consultoria em administração pública, especializada em seres humanos. Uma consultoria competente pode ensinar ou aprimorar as relações de administradores, administrados e funcionários. Uma consultoria em administração pública especializada em seres humanos pode ensinar que a autoridade é uma necessidade, mas que eventuais práticas autoritárias são equívocos.
Enquanto a consultoria não vem, indicaria “O ócio criativo”, do sociólogo italiano Domenico de Masi, aos interessados nos temas de trabalho, democracia, liberdade e qualidade de vida. Quem sabe se lendo esse livro alguém não aprenderia um pouco de história, sociologia e economia e observaria que o trabalho desumano do século XIX e de metade do século XX desapareceu em favor do trabalho de qualidade, realizado em poucas horas, essencial para acelerar e consolidar a geração de emprego, riqueza e renda?
*Publicado originalmente na Folha do Vale (Tarumã – SP) de 17 de outubro de 2009.
Ganhou o funcionário que viu crescer a qualidade de vida. Ganharam os munícipes com a ampliação do horário de atendimento dos postos de saúde, estendido até às 19h. Ganhou a prefeitura que, numa iniciativa inovadora e acompanhando a evolução da História dos trabalhadores, proporcionou agilidade no serviço e melhor atendimento à população.
Em meados deste ano, a prefeita de Maracaí achou que os funcionários que trabalham seis horas deveriam voltar às oito horas diárias. Para isso, mandou um projeto de lei para a Câmara sem conversar com todos os vereadores nem ouvir adequadamente o Sindicato dos Funcionários e Servidores Públicos Municipais de Maracaí.
A falta de comunicação desencadeou embaraços. Os servidores diretamente afetados pela proposta de mudança de jornada de trabalho reuniram-se e discutiram as propostas heterodoxas apresentadas pela prefeitura. Apoiado pelo Sindicato dos Funcionários e Servidores Públicos Municipais de Maracaí, o grupo compareceria em peso à sessão que discutiria o assunto.
Na sessão de seis de outubro, acuados, alguns vereadores lastimavam-se da tribuna pela situação em que foram metidos. Vociferam contra um inimigo invisível e sem nome. Sentiram-se incomodados por terem de enfrentar a opinião pública, os funcionários e os cidadãos conscientes que lotaram as dependências do edifício da Câmara.
O projeto da prefeita foi derrotado. Porém, por motivos burocráticos, voltará a ser apresentado em outra ocasião.
Durante a sessão distribuí uma cópia de “Sindicalismo de araque”. No artigo, publicado na imprensa de Assis em junho deste ano, alertava contra sindicalistas que se dizem a favor do trabalhador, mas que viram as costas quando são chamados a defender os direitos alcançados pelo trabalhador.
Os sindicalistas e deputados federais Vicentinho (PT), Paulinho da Força (PDT) e Medeiros (PR) recentemente discursaram a favor da redução da jornada de trabalho semanal durante audiência pública na Câmara dos Deputados em Brasília. Sindicalista de verdade é sindicalista sempre. Sindicalista de verdade está sempre em defesa do trabalhador.
O deputado federal Vicentinho (PT-SP) defendeu os trabalhadores e a diminuição da jornada semanal de trabalho em seu discurso na Câmara dos Deputados. Pergunte ao vereador de seu partido, em quem você votou, se ele foi contra ou a favor do trabalhador municipal.
Quem estava a favor dos trabalhadores da prefeitura de Maracaí? Zambito e seus companheiros do Sindicato de Cândido Mota, eram alguns deles. José Antônio da Silva e José Aparecido dos Santos, popular Zeca, que integram a diretoria do Sindicato dos Municipais de Maracaí, também apoiaram os trabalhadores. Entre os vereadores, cinco votaram a favor dos trabalhadores: Cleonice David (PSDC), Edvaldo Rodrigues (PP), Eduardo Correa Sotana (PSDB), Agnaldo Oliveira Cruz (PSDB) e Aparecido Cardoso (PSDB).
O funcionário público municipal de Maracaí não é uma bola de ping-pong. Demorou muito para conquistar direitos que se consagram no mundo inteiro e não pode ser forçado a aumentar a carga de trabalho por meio de uma lei que, eventualmente aprovada, pode até ser legal, mas será totalmente ilegítima.
Lembro que em uma ocasião alguém mencionou a contratação de consultoria pela prefeitura. A prefeitura está certa. Quando não se tem capacidade ou não se tem conhecimento completo de um assunto, o melhor – tanto para administradores públicos quanto para a população – é contratar legalmente boas consultorias.
Sugeriria que a prefeitura de Maracaí contratasse uma consultoria em administração pública, especializada em seres humanos. Uma consultoria competente pode ensinar ou aprimorar as relações de administradores, administrados e funcionários. Uma consultoria em administração pública especializada em seres humanos pode ensinar que a autoridade é uma necessidade, mas que eventuais práticas autoritárias são equívocos.
Enquanto a consultoria não vem, indicaria “O ócio criativo”, do sociólogo italiano Domenico de Masi, aos interessados nos temas de trabalho, democracia, liberdade e qualidade de vida. Quem sabe se lendo esse livro alguém não aprenderia um pouco de história, sociologia e economia e observaria que o trabalho desumano do século XIX e de metade do século XX desapareceu em favor do trabalho de qualidade, realizado em poucas horas, essencial para acelerar e consolidar a geração de emprego, riqueza e renda?
*Publicado originalmente na Folha do Vale (Tarumã – SP) de 17 de outubro de 2009.
quinta-feira, 15 de outubro de 2009
AFLIÇÃO
Convocou o sobrinho para dar um jeito no filho.
- Fazes o que quiseres, mas vais colocá-lo nos eixos! Quero todo mundo comentando que meu filho é um garanhão! Entendeste?
Munido da generosa doação do tio, empurrou o primo para um fim de semana de pesca. O primo levara alguns amigos de modo que a noite de sexta-feira e a manhã de sábado transcorreram rapidamente.
Depois do almoço – falta do barulho de carros, motos e caminhões, das conversas femininas nos salões de beleza se preparando para a noite, da TV, do rádio, do computador, do bar de periferia esperando eternamente grande número de torcedores de futebol – confessou:
- Não agüento mais esse negócio de pesca!
- Se não agüenta, por que inventou?
A pergunta inesperada o pôs numa situação pitoresca da qual se desvencilhou brilhantemente: queria sossego, tranqüilidade, contato com a natureza. Entretanto, não pensara que o contato com a natureza fosse tão monótono.
Aproveitando a oportunidade, sugeriu que fossem para a cidade à noite e, como o destino se tornasse cúmplice, um dos amigos do primo gritou euforicamente:
- Por que não vamos visitar as Senhoras das Noites?
O ar de ignorância do primo sumiu quando, ouvindo a explicação para o termo, ruborizou diante da explicação:
- Um rendez-vous!
Perderam a tarde compartilhando impressões, criando situações, discutindo qualidades e discorrendo alternativas da arte de amar.
Telefonou discretamente para o tio:
- De hoje não passa. Garanto ao senhor. De hoje não passa.
O tio desligou o telefone. A aflição indisfarçável despertou a atenção da mulher que, depois do jantar, entregou-lhe uma xícara de chá de qualquer coisa para acalmar os nervos.
Mal deram nove horas, os sete sentaram-se ao fundo, à direta do palco. Encetaram conversas com as meninas, trataram das condições contratuais. O primo confidenciava-se aos ouvidos de uma uruguaia de sotaque despercebido. Já relaxado, poderia telefonar no dia seguinte para o tio.
Acordou por volta das dez da manhã, celular tocando, ressaca gritante, tio esbravejando: como o enrascara assim? Por que deixara na internet as fotos do filho dançando num palco trajando calcinhas e soutiens?
*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 15 de outubro de 2009.
- Fazes o que quiseres, mas vais colocá-lo nos eixos! Quero todo mundo comentando que meu filho é um garanhão! Entendeste?
Munido da generosa doação do tio, empurrou o primo para um fim de semana de pesca. O primo levara alguns amigos de modo que a noite de sexta-feira e a manhã de sábado transcorreram rapidamente.
Depois do almoço – falta do barulho de carros, motos e caminhões, das conversas femininas nos salões de beleza se preparando para a noite, da TV, do rádio, do computador, do bar de periferia esperando eternamente grande número de torcedores de futebol – confessou:
- Não agüento mais esse negócio de pesca!
- Se não agüenta, por que inventou?
A pergunta inesperada o pôs numa situação pitoresca da qual se desvencilhou brilhantemente: queria sossego, tranqüilidade, contato com a natureza. Entretanto, não pensara que o contato com a natureza fosse tão monótono.
Aproveitando a oportunidade, sugeriu que fossem para a cidade à noite e, como o destino se tornasse cúmplice, um dos amigos do primo gritou euforicamente:
- Por que não vamos visitar as Senhoras das Noites?
O ar de ignorância do primo sumiu quando, ouvindo a explicação para o termo, ruborizou diante da explicação:
- Um rendez-vous!
Perderam a tarde compartilhando impressões, criando situações, discutindo qualidades e discorrendo alternativas da arte de amar.
Telefonou discretamente para o tio:
- De hoje não passa. Garanto ao senhor. De hoje não passa.
O tio desligou o telefone. A aflição indisfarçável despertou a atenção da mulher que, depois do jantar, entregou-lhe uma xícara de chá de qualquer coisa para acalmar os nervos.
Mal deram nove horas, os sete sentaram-se ao fundo, à direta do palco. Encetaram conversas com as meninas, trataram das condições contratuais. O primo confidenciava-se aos ouvidos de uma uruguaia de sotaque despercebido. Já relaxado, poderia telefonar no dia seguinte para o tio.
Acordou por volta das dez da manhã, celular tocando, ressaca gritante, tio esbravejando: como o enrascara assim? Por que deixara na internet as fotos do filho dançando num palco trajando calcinhas e soutiens?
*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 15 de outubro de 2009.
quinta-feira, 8 de outubro de 2009
AULA DE ARROMBA
Aceitou entusiasmado o convite do reitor para assumir uma matéria recém-criada, destinada a incentivar a cooperação, a interatividade, a criatividade. A primeira chance de se consolidar numa grande instituição de ensino superior.
- É muito fácil o que tens a fazer. O reitor sentou-se na cadeira de couro, apontou o sofá da frente e, assim que o novo professor também sentou-se, continuou seu discurso solene: - A nossa instituição ocupa um lugar de destaque não apenas em nossa região, mas em todo o nosso estado. Quero que os alunos testemunhem que, embora arraigada na tradição, nossa universidade mantém os dois pés na modernidade, na... Parou o discurso, levantou-se, tomou um papel de cima da mesa: - Isso, na multidisciplinaridade, na tecnologia e que contamos com professores altamente qualificados e cheios de mecanismos para prender a atenção dos alunos, incentivando-os a cooperarem.
Ouvia a tudo, esforçando-se para controlar o desconforto causado pelo sapato apertado que machucava o dedo mínimo. Cruzava e descruzava as pernas, pensava em tirá-lo ali mesmo ou quando saísse da sala. A situação o impediu de ouvir integralmente o discurso, gravando apenas o encerramento: - Quero uma aula para entrar na história da faculdade. Uma aula de arromba!
O professor passou os três dias seguintes na frente do computador. Elaborou planilhas, procurou relatórios empresariais, descobriu trabalhos acadêmicos sobre as transformações decorrentes da poluição dos rios, criou uma bibliografia de livros publicados nos últimos seis meses na Inglaterra, na Irlanda, na Itália e na França, pesquisou programas de computador aos quais os alunos acessassem gratuitamente, traçou duas promoções para que os mais destacados durante o semestre gozassem um fim de semana em Florianópolis... – Uma aula de arromba! Uma aula de arromba! As palavras do reitor estrondavam na mente.
Pensava numa aula de arromba de verdade, mas nada de interessante fluía. Voltou ao computador, aperfeiçoou o que já fizera, acrescentando slides de fotos de países da Europa Oriental. Deitou-se angustiado e vislumbrava as reprovações de alunos, de convidados, de professores e do reitor pela aula monótona que ministraria.
Ao chegar à universidade, informado de que ocuparia o anfiteatro. Se as pernas não amoleceram e o coração não disparou, a voz quis dar no pé e o suor – mesmo no frio – invadiu-lhe abruptamente as costas. O reitor subiu ao palco, cumprimentou o público, destacando a presença do prefeito, de um deputado e de um fazendeiro rico, convidou o mais novo contratado e puxou os aplausos que se multiplicavam pelos defeitos acústicos do ambiente.
Acenou para as mais de cento e cinqüenta pessoas reunidas para assisti-lo, gaguejou um pouco e inverteu a ordem da apresentação: os slides que fechariam a aula seriam utilizados no começo. Apertou o controle remoto em direção ao aparelho. Uma, duas, três vezes. Até que alguém indicou a tomada fora do plug.
Pulou do palco, tomada a menos de vinte centímetros e, nervoso pela demora que causava, introduziu-a sem adaptar a pecinha que transformaria os 220 em 110 volts. Voltou ao palco, pegou o controle remoto e antes de ligar o aparelho:
- Preparem-se para algo inesquecível!
Apertou o botão: o slide pipocou, o fogo alastrou-se sobre o aparelho, percorreu o fio e invadiu a rede elétrica, estourou as luzes, queimou os três aparelhos de ar condicionado, contornou a instalação interna, incendiou três microfones e a mesa de som.
Alunos, professores, funcionários e convidados já tinham saído pelas janelas, portas normais e de emergência. Destruíram cadeiras improvisadas entre as poltronas, atropelaram pessoas vagarosas e, do lado de fora do edifício, olhavam boquiabertos o fogo se espalhando e o professor, palestrante da noite, saindo calmamente em direção ao reitor:
- Foi ou não foi uma aula de arromba?
*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis –SP) de 8 de outubro de 2009.
- É muito fácil o que tens a fazer. O reitor sentou-se na cadeira de couro, apontou o sofá da frente e, assim que o novo professor também sentou-se, continuou seu discurso solene: - A nossa instituição ocupa um lugar de destaque não apenas em nossa região, mas em todo o nosso estado. Quero que os alunos testemunhem que, embora arraigada na tradição, nossa universidade mantém os dois pés na modernidade, na... Parou o discurso, levantou-se, tomou um papel de cima da mesa: - Isso, na multidisciplinaridade, na tecnologia e que contamos com professores altamente qualificados e cheios de mecanismos para prender a atenção dos alunos, incentivando-os a cooperarem.
Ouvia a tudo, esforçando-se para controlar o desconforto causado pelo sapato apertado que machucava o dedo mínimo. Cruzava e descruzava as pernas, pensava em tirá-lo ali mesmo ou quando saísse da sala. A situação o impediu de ouvir integralmente o discurso, gravando apenas o encerramento: - Quero uma aula para entrar na história da faculdade. Uma aula de arromba!
O professor passou os três dias seguintes na frente do computador. Elaborou planilhas, procurou relatórios empresariais, descobriu trabalhos acadêmicos sobre as transformações decorrentes da poluição dos rios, criou uma bibliografia de livros publicados nos últimos seis meses na Inglaterra, na Irlanda, na Itália e na França, pesquisou programas de computador aos quais os alunos acessassem gratuitamente, traçou duas promoções para que os mais destacados durante o semestre gozassem um fim de semana em Florianópolis... – Uma aula de arromba! Uma aula de arromba! As palavras do reitor estrondavam na mente.
Pensava numa aula de arromba de verdade, mas nada de interessante fluía. Voltou ao computador, aperfeiçoou o que já fizera, acrescentando slides de fotos de países da Europa Oriental. Deitou-se angustiado e vislumbrava as reprovações de alunos, de convidados, de professores e do reitor pela aula monótona que ministraria.
Ao chegar à universidade, informado de que ocuparia o anfiteatro. Se as pernas não amoleceram e o coração não disparou, a voz quis dar no pé e o suor – mesmo no frio – invadiu-lhe abruptamente as costas. O reitor subiu ao palco, cumprimentou o público, destacando a presença do prefeito, de um deputado e de um fazendeiro rico, convidou o mais novo contratado e puxou os aplausos que se multiplicavam pelos defeitos acústicos do ambiente.
Acenou para as mais de cento e cinqüenta pessoas reunidas para assisti-lo, gaguejou um pouco e inverteu a ordem da apresentação: os slides que fechariam a aula seriam utilizados no começo. Apertou o controle remoto em direção ao aparelho. Uma, duas, três vezes. Até que alguém indicou a tomada fora do plug.
Pulou do palco, tomada a menos de vinte centímetros e, nervoso pela demora que causava, introduziu-a sem adaptar a pecinha que transformaria os 220 em 110 volts. Voltou ao palco, pegou o controle remoto e antes de ligar o aparelho:
- Preparem-se para algo inesquecível!
Apertou o botão: o slide pipocou, o fogo alastrou-se sobre o aparelho, percorreu o fio e invadiu a rede elétrica, estourou as luzes, queimou os três aparelhos de ar condicionado, contornou a instalação interna, incendiou três microfones e a mesa de som.
Alunos, professores, funcionários e convidados já tinham saído pelas janelas, portas normais e de emergência. Destruíram cadeiras improvisadas entre as poltronas, atropelaram pessoas vagarosas e, do lado de fora do edifício, olhavam boquiabertos o fogo se espalhando e o professor, palestrante da noite, saindo calmamente em direção ao reitor:
- Foi ou não foi uma aula de arromba?
*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis –SP) de 8 de outubro de 2009.
quinta-feira, 1 de outubro de 2009
Lampião e Maria Bonita?
Grande parte das pessoas já ouviu falar em Lampião e Maria Bonita. Ou como transgressores da lei, ou como representantes corajosos da liberdade e da denúncia contra a ilegitimidade de governos, Lampião e Maria Bonita firmaram-se no imaginário e, em alguns casos, na memória.
Se você já ouviu falar deles, o que diria se pudesse ler um enredo educativo e ilustrado para seus filhos ou para seus netos no próximo dia das crianças? O que diria de delinear no imaginário de seus pequenos leitores o vasto campo de aventuras, de sentimentos e de peripécias dessa dupla numa linguagem literária de alta qualidade? Por fim, você gostaria de empolgar os pequenos com uma narrativa caprichada em que os protagonistas são Lampião Junior e Maria Bonitinha?
Com desenhos de Marco Carillo, Januária Cristina Alves usa uma linguagem fluida, engraçada e atraente, conjugando estética e oportunidade em espaço necessário para sublinhar desenvoltamente como o menino Lampião Junior e a garota Maria Bonitinha se conheceram e, desde cedo, mantiveram amizade e paixão entrelaçadas pela disputa, pela coragem, pela ousadia e, principalmente, pelo despeito.
Em uma dessas disputas pautadas pela amizade e pela paixão, Lampião Junior e um concorrente ajustam uma competição da qual sairá vencedor quem conseguir dançar xaxado melhor e por mais tempo. A disputa engraçada atinge um efeito inesperado: sem vencedores, o resultado do empate é proclamado como alternativa de conter o ímpeto dos espectadores que, empolgados, também se preparam para entrar na dança.
Essa é apenas uma das aventuras criadas fabulosamente pela escritora que, em grande estilo e futuramente, figurará no rol dos trabalhos mais bem elaborados e verossímeis em decorrência da mistura e do equilíbrio poético que confere à sua linguagem.
Januária entranha-se no grupo dos bons escritores do qual desponta Ariano Suassuna, pois ela, assim como mestre Ariano, transcreve clichês, lugares-comuns, sotaques, frases e interjeições nordestinas sem se jogar no abismo do picaresco, do mau gosto e do equívoco.
Assim como em Ariano Suassuna, os pequenos personagens nordestinos de Januária (que também poderiam ser gaúchos, cariocas ou caipiras paulistas de sotaque, como os de nossa bela região de Assis) minimizam o eventual distanciamento social em decorrência da proximidade da realidade, atributo verificado em todos os bons autores.
Outras características poderiam – e podem – ser enumeradas no trabalho infanto-juvenil, mas acredito que apenas a capacidade de escrita amadurecida aliada à competência estética na composição de “A história de Lampião Junior e Maria Bonitinha” é mais do que suficiente para perceber que ainda existem autores/educadores que sabem que a comunicação infantil eficaz se concretiza pelo uso inteligente do diálogo, do discurso e da linguagem.
***
A História de Lampião Junior e Maria Bonitinha
Januária Cristina Alves – Editora Novo Século – 48 p. – R$ 34,90
*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 1 de outubro de 2009.
Esta e outras críticas literárias também podem ser conferidas AQUI.
Se você já ouviu falar deles, o que diria se pudesse ler um enredo educativo e ilustrado para seus filhos ou para seus netos no próximo dia das crianças? O que diria de delinear no imaginário de seus pequenos leitores o vasto campo de aventuras, de sentimentos e de peripécias dessa dupla numa linguagem literária de alta qualidade? Por fim, você gostaria de empolgar os pequenos com uma narrativa caprichada em que os protagonistas são Lampião Junior e Maria Bonitinha?
Com desenhos de Marco Carillo, Januária Cristina Alves usa uma linguagem fluida, engraçada e atraente, conjugando estética e oportunidade em espaço necessário para sublinhar desenvoltamente como o menino Lampião Junior e a garota Maria Bonitinha se conheceram e, desde cedo, mantiveram amizade e paixão entrelaçadas pela disputa, pela coragem, pela ousadia e, principalmente, pelo despeito.
Em uma dessas disputas pautadas pela amizade e pela paixão, Lampião Junior e um concorrente ajustam uma competição da qual sairá vencedor quem conseguir dançar xaxado melhor e por mais tempo. A disputa engraçada atinge um efeito inesperado: sem vencedores, o resultado do empate é proclamado como alternativa de conter o ímpeto dos espectadores que, empolgados, também se preparam para entrar na dança.
Essa é apenas uma das aventuras criadas fabulosamente pela escritora que, em grande estilo e futuramente, figurará no rol dos trabalhos mais bem elaborados e verossímeis em decorrência da mistura e do equilíbrio poético que confere à sua linguagem.
Januária entranha-se no grupo dos bons escritores do qual desponta Ariano Suassuna, pois ela, assim como mestre Ariano, transcreve clichês, lugares-comuns, sotaques, frases e interjeições nordestinas sem se jogar no abismo do picaresco, do mau gosto e do equívoco.
Assim como em Ariano Suassuna, os pequenos personagens nordestinos de Januária (que também poderiam ser gaúchos, cariocas ou caipiras paulistas de sotaque, como os de nossa bela região de Assis) minimizam o eventual distanciamento social em decorrência da proximidade da realidade, atributo verificado em todos os bons autores.
Outras características poderiam – e podem – ser enumeradas no trabalho infanto-juvenil, mas acredito que apenas a capacidade de escrita amadurecida aliada à competência estética na composição de “A história de Lampião Junior e Maria Bonitinha” é mais do que suficiente para perceber que ainda existem autores/educadores que sabem que a comunicação infantil eficaz se concretiza pelo uso inteligente do diálogo, do discurso e da linguagem.
***
A História de Lampião Junior e Maria Bonitinha
Januária Cristina Alves – Editora Novo Século – 48 p. – R$ 34,90
*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 1 de outubro de 2009.
Esta e outras críticas literárias também podem ser conferidas AQUI.
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