sexta-feira, 26 de agosto de 2011

IRMÃOS VITALE

Sempre que viajava à capital e passava mais de três dias, meu primo Nelson Regis de Sousa fazia questão de me levar ao prédio da loja dos Irmãos Vitale que, se a memória não me trai e as lembranças ainda suspiram, localiza-se nas proximidades da Praça da Sé. A estrutura do prédio é antiga, elevador com porta de grades, abrindo-se e fechando-se como sanfonas, escada em forma de caracol. Tinha a impressão de que voltava no tempo quando entrava naquele prédio e sentia-me preparado a, sacando meu revólver imaginário da São Paulo da década de quarenta, descarregar o tambor de oito (ou seis?) tiros em buscas investigativas, na mais sublime trama de cinema.

Nelson e eu vencemos os degraus, cruzamos com um homem de gravata, chegamos ao lugar desejado repleto de instrumentos, pentagramas, estantes, discos e livros sobre música. Olhamos os violões, os violinos, as guitarras de todas as espécies, os bandolins, os banjos, os cavaquinhos e viemos deslizando entre outros instrumentos de sopro, de percussão e barulhos em geral. Parece-me que Nelson – grande apreciador de boa música – iniciara cursos de música: tentara o violão e o teclado. Assim como eu, nunca conseguira grandes êxitos. Alguns nascem para fazer música entoando instrumentos e compondo. Nelson, eu e boa parte dos que me lêem nascemos para apreciar.

Continuamos perambulando, Nelson mostrando-me alguns instrumentos lindíssimos e conversando a respeito da capacidade de se construir algo tão delicado, tão minucioso, tão pontual. Instrumentos de onde saíam melodias que encantaram – ou continuavam encantando – gerações. De repente, ataque de silêncio. Um homem – barbudo, cabeludo, chinelos havaianas gastos, camisa rasgada e calção provavelmente nunca lavado – abandonou discretamente o interior da loja. Diante de meus olhos interrogativos, o funcionário disse-me que vinha sempre. Então liguei os fatos às imagens: tocava ao piano.

Nelson seguia me mostrando os instrumentos musicais. Admirava coleções raras de discos de artistas nacionais e internacionais cujos nomes sabia de cor, comentava da leveza de alguns quadros de cantores dos anos quarenta, salientava o aconchego do ambiente... Entretanto, nada disso me interessava mais e, na primeira oportunidade, sugeri que fôssemos ao segundo ponto de nosso roteiro.

Quando chegamos em casa por volta das oito e meia, meu primo ligou o rádio da cozinha e introduziu o disco de Kid Morangueira. Entre as músicas inteligentes e interessantes do sambista, meus pensamentos flanaram e descobri a razão de minha admiração pela loja dos Irmãos Vitale abruptamente transformar-se em algo maçante: o homem barbudo.

Lembrei-me do famigerado poema de Camões que ressalta as virtudes do amor dando-lhe os poderes de transformar o som dos objetos de bronze. Quais diferenças de sons entre os objetos recheados de amor e os objetos compostos unicamente de bronze? Precisamos pensar nas agregações simbólicas pelas quais passam os objetos. Uma roupa tem valor sentimental porque o pai deu de presente de aniversário de quinze anos à filha. Um par de sapatos velhos, uma cadeira sem assento, uma máquina de costura manual ou um som três em um abarcam espaço da casa se têm valor simbólico, se representam alguma coisa para a pessoa que guardou o objeto.

Conversava com uma senhora de mais de oitenta e cinco anos. Perguntei-lhe o que tinha de mais valioso. Trouxe-me pequena cesta de costura e, de dentro da cesta, retirou uma tesourinha (enferrujada e sem corte), um estojo de agulhas (também já desgastadas), alguns pedaços de seda, de pano mais grosso, de fitas, de botões de dois ou três tamanhos, de elásticos.

Talvez adivinhando a pergunta que faria – aquelas coisas velhas eram suas preciosidades? – ela se adiantou:

- Com essas ferramentinhas, referia-se ao material guardado dentro da cesta, minha mãe costurou meus primeiros dez vestidos de casamento. Trabalhava de dia e costurava à noite. Pegava o resto de panos da fábrica.

Compreendi o brilhantismo de Camões: assim como uma loja de instrumentos nada vale sem espírito de música, uma cesta de costura com materiais enferrujados e inutilizáveis nada vale sem gratidão.


*Publicado originalmente na coluna Ficções, Caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 26 de agosto de 2011.

LIVROS UTILIZADOS NO "TOLEDO DEBATE", REALIZADO NA TOLEDO DE PRESIDENTE PRUDENTE (SP) - TEMA DO DEBATE: FELICIDADE

FELICIDADE


Dezenas de pensadores trataram da Felicidade nos últimos dois ou três mil anos, mas, para delimitar a abordagem, percorreremos as concepções de alguns autores que dividimos em BIBLIOGRAFIA ESSENCIAL, BIBLIOGRAFIA ILUSTRATIVA e BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR.


A BIBLIOGRAFIA ESSENCIAL enumera os livros – ou partes de obras teóricas – que serão abordados durante a exposição. A BIBLIOGRAFIA ILUSTRATIVA (composta de romances, de novela e de crônica) auxilia o leitor na compreensão das teorias discutidas. Se, depois de analisar a Bibliografia Essencial e a Bibliografia Ilustrativa, existir interesse no aprofundamento do tema, basta recorrer à BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR. Os interessados podem ler os livros disponíveis nas três listas, podem ler apenas alguns títulos ou, como sugere Daniel Pennac, podem exercer o direito de não ler.



BIBLIOGRAFIA ESSENCIAL

TÍTULO
AUTOR
EDITORA
PÁGINAS (sugestão de leitura)
Carta sobre a Felicidade
Epicuro
UNESP
Livro integral (51 p.)
Sobre a Felicidade
Pierre Teilhard de Chardin
Verus
Livro integral (71 páginas)
Aula
Roland Barthes
Cultrix (14ª edição, 2009)
p. 7-45
No que acredito
Bertrand Russell
L&PM
p. 83-101 (capítulo: “Ciência e felicidade”)
Ensaios céticos
Bertrand Russell
L&PM
p. 94-102 (capítulo: “Ideais de felicidade oriental e ocidental”)
Caminhos para a liberdade
Bertrand Russell
Martins Fontes
p. 157-176 (capítulo: “O mundo tal como deveria ser feito”)





BIBLIOGRAFIA ILUSTRATIVA

TÍTULO
AUTOR
EDITORA
PÁGINAS (sugestão de leitura)
As mentiras que os homens contam
Luis Fernando Veríssimo
Objetiva
p. 77-80 (capítulo: “O sítio do Ferreirinha)
Um conto de natal
Charles Dickens
L&PM
Livro integral
Música Perdida
Luiz Antônio de Assis Brasil
L&PM
Livro integral
O pintor de retratos
Luiz Antônio de Assis Brasil
L&PM
Livro integral





BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR

TÍTULO
AUTOR
EDITORA
As seis doenças do espírito contemporâneo
Constantin Noica
Best bolso
Amor líquido – sobre a fragilidade dos laços humanos
Zygmunt Bauman
Zahar
Por que não sou cristão
Bertrand Russell
L&PM
Variações sobre o prazer
Rubem Alves
Planeta do Brasil


sábado, 20 de agosto de 2011

MOTÉIS E ESCOLAS



Desde os tempos de Heráclito, Parmênides, Sócrates, Platão e Aristóteles as discussões em torno da relação professor e aluno ensejam debates, especialmente quando esses debates vão parar na imprensa, passando-se prévia ou concomitantemente em tribunais. Desde os tempos dos filósofos pré-socráticos, socráticos e pós-socráticos, as relações entre professores e alunos causam frisson no estabelecimento de limites entre certo e errado, apropriado e inadequado, ético e imoral.

De uns tempos para cá, a imprensa tem noticiado com freqüência e estardalhaço as imagens de professoras e alunos flagrados em motéis, carros ou escolas promovendo ações amorosas socialmente reprováveis. As notícias dão conta da ação policial em coibir os atos das professoras que, em tese, usando de sua condição de superioridade, do poder de persuasão e de instrumentos de coerção, seqüestram adolescentes de quinze, dezesseis ou dezessete anos para satisfazer angústias pouco espirituais.

Como vivemos numa sociedade machista, patriarcal e corporativista, apontaria mecanicamente o dedo e denunciaria publicamente o professor que convenceu a aluna. Ele, o professor, mofaria na cadeia, acusado de crimes reais e inimagináveis, cumprindo prisão eterna. Porém, colocar atrás das grades uma professora que foi ao motel com rapaz de dezesseis anos? Que culpa tem a professora se esse mesmo rapaz informa reiterada e inequivocamente que se deslocou ao luxurioso ambiente por livre e espontânea vontade?

Em “Sexo para principiantes”, Cesar Lobo e Carlos Eduardo Novaes esboçam uma trajetória do sexo iniciando suas anotações nos tempos mais remotos e chegando à contemporaneidade sem esquecer dos gregos aos quais, em páginas específicas, atribuem o hábito de relacionamento carnal entre mestres e discípulos. O relacionamento entre professor e aluno na época de Sócrates – para ser mais claro, relacionamento homossexual – não feria a ética.

O advento do cristianismo relativiza os conceitos de ética, de moral, de certo ou de apropriado e, além de lançar o homossexualismo na fogueira das ignomínias, reprova as licenciosidades. Se Sócrates estivesse vivo, constaria da lista de pedófilos.

O fato destacado na imprensa – e voltemos ao fato – consiste em ações planejadas ou voluntárias de professoras que civilizadamente convidam os alunos mais jovens, atletas, bons batimentos cardíacos, fôlego de touro, destreza de raposa e perseverança de elefante para passeio voluptuoso.

Se essas professoras tivessem tomado tais iniciativas cerca de noventa anos atrás, o romancista José Lins do Rego jamais teria escrito “Menino de engenho”, considerada por alguns obra estritamente inspirada em seu rico universo ficcional. Verdade integral ou ficção pura, uma das cenas do enredo descreve as relações do menino com uma vaca. Ah, se algumas dessas professoras americanas, belgas e francesas que se desmancham em gentilezas e convites tivessem aparecido na fazenda do avô do adolescente José Lins...

Lembro de professoras a quem meus olhos e pensamentos se concentravam muito mais nos corpos bem talhados e nos vestidos provocantes do que em suas matérias. Nunca tive o azar (ou a sorte?) de ser molestado por elas. Se eventualmente descoberto um convite para motel ou banco de carro, um alvoroço se daria na cidade, em minha casa, entre outros professores e alunos. Um invejoso arrumaria página de jornal para dar testemunho da desconfiança das intenções da professorinha e externar protestos ao ato ultrajante.

Meus amigos, curiosos e interessados, me procurariam às pencas para detalhes da sedução. Limitar-me-ia a dizer das impressões do perfume de mulher madura, argumentando que a educação rígida sempre me forçou a obediência às mais velhas de modo que, seguindo o preceito universal de dar de comer a quem tem fome, a professorinha atendeu aos desmandos do espírito, escolhendo-me para objeto de desatinos. Adolescente cavalheiro, que mais poderia se não cumprir tarefa tão conspícua?

Entre reflexões e devaneios, constato que José Lins e eu nunca estivemos nem no lugar certo, nem momento adequado, nem com as professoras apropriadas.

*Publicado originalmente na coluna Ficções, Caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 19 de agosto de 2011.

sábado, 13 de agosto de 2011

CAIXEIRO-VIAJANTE

Acho que só ouvi falar de caixeiro-viajante em algum livro que li, já adolescente, e em que buscava entretenimento enquanto aguardava na fila do banco ou na sala de espera do consultório odontológico.

Dona Isa tem duas filhas e alguns netos, mora no único prédio vertical de apartamentos de Paraguaçu Paulista, viaja Brasil e exterior, toma conta da casa sozinha, apresenta-se sempre sorridente, elegante e bem amada, eventualmente convida minha namorada para tomar chá ao fim da tarde e apreciar a coloração especial que o pôr-do-sol aplica à cidade. Numa dessas conversas de chá e pôr-do-sol, confidenciou a Adriana que gostara especialmente da crônica “Aprendizagens” de meu livro lançado no ano passado. Perguntei por que simpatizara com a crônica, uma espécie de homenagem ao meu pai. Adriana então me disse que o pai da amiga era caixeiro-viajante, passava boa parte do tempo fora e voltava para casa uma vez por mês.

Quando o pai voltava, ela, as irmãs e a mãe vestiam as melhores roupas, ensaiavam os mais destacados trejeitos de felicidade e passeavam pelas sorveterias e restaurantes.

Quem ama Literatura sempre procura não apenas lê-la, mas principalmente refletir sobre seus meandros, mecanismos, feitiços de encantamento. Lembro que um dos conceitos afirmava que a Literatura tinha a finalidade de humanizar o homem: o poder da Literatura seria capaz de fazer com que o leitor transformasse seu comportamento, sendo menos irracional e frio e mais amoroso e compreensivo. Pensei que essa era uma questão meramente teórica até que li uma orelha de um livro de Rubem Alves em que ele explicava o que era comunhão.

Usando da comparação ao sagrado ato de sangue e corpo de Cristo que correm nas veias e no estômago de quem bebe vinho e come pão, Rubem Alves demonstra que um livro também pode se transmutar em um ato de comunhão na medida em que o escritor entra em sintonia com o leitor. Quando as palavras do escritor se alojam na memória ou nos sentimentos do leitor, despertando alteração ou fascinação, naquele momento mágico, escritor e leitor são um mesmo corpo e um mesmo espírito.

Outro texto do grande Rubem Alves veio à tona. “Os Flamboyants” relata o encontro do cronista com um amigo em um Parque de Campinas. Saíra cedo de casa para uma caminhada e flagrara o companheiro passeando com uma câmera nas mãos. Indagado por que caminhava com a máquina fotográfica, respondeu que tinha lido seu texto publicado semanas atrás em um jornal local em que convidava o leitor a aproveitar melhor os minutos. O mote da provocação: “Se você soubesse que morreria daqui a um ano, mudaria de vida?”

Boa parte dos que estão lendo este texto hoje – e eu me incluo entre esses leitores – abandonaria as atividades supérfluas para se dedicar a ações indiscutivelmente importantes e prazerosas. O amigo de Rubem Alves refletira sobre isso. Se tivesse apenas mais um ano de vida, se empenharia em fazer a esposa feliz. Por que caminhava com a câmera fotográfica? Porque faria trezentas fotografias de flamboyants, escolheria as melhores, comporia um álbum e o daria de presente à esposa. A esposa adorava flamboyants e ele decidiu que se tivesse apenas um ano de vida, dedicaria esse ano restante – ou todo o resto de sua vida – a fazê-la feliz. As coisas que devem ser feitas, nos ensina o filósofo, devem ser feitas hoje. As coisas que devem ser ditas, devem ser ditas agora.

A crônica – encontrada facilmente na internet – termina de maneira fulminante: “As flores dos flamboyants, dentro de poucos dias, terão caído. Assim é a vida. É preciso viver enquanto a chama do amor está queimando...”

Quando dona Isa – a quem nunca vi e com quem jamais falei nem mesmo ao telefone – absorve o sentimento de gratidão expresso em minha crônica e relembra do pai, de sua história, de sua vida, de sua felicidade, naquele exato momento mágico, naquele instante de mudanças e confusões de sentimentos e de recordações, dona Isa e eu somos um mesmo corpo, um mesmo espírito, um mesmo sentimento de gratidão eterna aos nossos pais. Quando nos irmanamos em corpo, espírito e sentimento, configuramos o que Rubem Alves brilhantemente dá o nome de Comunhão.

*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 12 de agosto de 2011.

MEU AMIGO DO CÂNCER

Para Felipe (em memória)


Terça-feira chuvosa e fria depois da véspera quente e abafada. Telefono para minha namorada. A funcionária que trabalha com ela informa-me que saiu ao velório. Quase uma hora depois, voz embargada: - Meu amiguinho do câncer faleceu. O enterro tinha acabado de acontecer.

Recordei-me de outro telefonema, meses atrás, antes de iniciar suas aulas. Indagara-me se iria a Assis na manhã seguinte. Ainda tinha conta na livraria? Antes de qualquer resposta, começou a chorar. Contou-me do encontro com a amiga que não via há alguns anos. Conversaram, sorriram, recordaram-se de fatos marcantes. Talvez o fato mais marcante – não do passado, mas da atualidade: o filho da amiga. Numa idade em que muitos meninos aprontam traquinagens, incomodam os pais, azucrinam os adultos e usufruem da bondade inigualável dos avós, o filho da amiga descobrira câncer. Lutava contra a doença que o impedia de jogar bola, de pular cerca, de roubar goiabas, de dirigir bicicleta, de entrar em brigas de escolas...

Compreendi seu choro, entretanto não entendi por que desejava saber se iria à livraria.

- Queria comprar um livro para ele. Já que não pode sair de casa e gosta de ler, acho que poderíamos dar um livro de presente.

Por volta das dez e meia da manhã seguinte entrei na livraria para pegar uma encomenda e perguntei a Maria Helena se poderia me indicar algumas obras infantis, provavelmente para uma criança entre nove e onze anos. Ágil, interessante e fluente. Que prendesse a atenção do leitor-mirim. Maria Helena disse-me que o “Diário de um banana” estava com boa saída. Peguei os dois primeiros dos quatro livros. Entreguei-os a minha namorada para que, na primeira oportunidade, presenteasse o amiguinho. Assim que terminasse de lê-los, poderia solicitar os dois remanescentes.

Semanas depois, disse-me que o menino já lera os dois volumes e, com grande alegria – sempre me alegro quando alguém foi fisgado pela Literatura, recorri à livraria para pegar os títulos que encerravam a coleção.

Por uma dessas singulares justificativas que apenas a Literatura pode nos oferecer, lembrei-me de uma história de Moacyr Scliar. Mathias descobrira leucemia em estágio avançado. Os pais gostariam de levá-lo ao parque de diversões para que se divertisse na casa dos monstros. Mas, levá-lo ao parque poderia comprometer definitivamente sua saúde. Daí um amigo, pegando dinheiro emprestado do pai de Mathias, compra o material necessário para construir um castelo dos horrores. Consegue um carro de supermercado, coloca Mathias dentro dele e dispara pelos corredores da casa. De um quarto sai a mãe ensangüentada de extrato de tomate, o pai é um “enforcado” no banheiro, uma das irmãs cospe fogo na cozinha... Mathias grita, berra, se apavora, se diverte, se delicia. Ao fim da brincadeira, os pais choram de felicidade. Dali a meses Mathias morre. O narrador conclui: ele, o narrador, nunca mais foi ao parque de diversões.

Como disse ao início, o amiguinho de minha namorada faleceu numa terça-feira chuvosa. Na segunda-feira, tinha feito um calor intenso. Talvez Deus, sabendo que precisava de mais diversão nos céus, procurasse alguém versado em Literatura. Olhou para o amiguinho de minha namorada: - Vem cá!

Estranhei a chuva intensa na terça-feira, porém descobri com facilidade o motivo: Deus ainda não criou encanamentos necessários para escoamento de modo que, toda vez que o amiguinho da minha namorada, certamente empurrado por Mathias, desliza pelas piscinas, cai pelos escorregadores do parque aquático ou salta dos trampolins, a água explode pelas nuvens e nos banha.

Um dia me disseram que as chuvas eram lágrimas dos que sentiam saudades dos filhos, dos pais, dos netos... As chuvas são as águas que vazam das piscinas onde o amiguinho de minha namorada e Mathias brincam, estimulados pelo olhar benevolente de Moacyr Scliar.

*Publicado originalmente no jornal Cidade 10 (Maracaí – SP) de 12 de agosto de 2011.

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

FAZEMOS SUA DECLARAÇÃO!

O farmacêutico entrou no banco na tarde de sábado para conferir os débitos e créditos dos últimos dois dias quando, passando a vista sobre o balcão, encontrou um panfletinho colorido: Fazemos sua declaração! Puxou o papel. Um grupo de profissionais montara escritório para elaborar imposto de renda a preços acessíveis. Bastava procurá-lo às sextas-feiras, pois atendia apenas às sextas-feiras, em horário comercial. Atendimento obedecendo à ordem de chegada.

Na sexta-feira de manhã apareceu no endereço munido de alguns documentos para conferir o orçamento e se espantou quando informado que o imposto de renda ficaria pronto em duas semanas cobrando-se, para tal serviço, apenas vinte por cento do valor do outro escritório.

A desconfiança transformou-se em admiração: deduziria gastos com combustíveis, remédios, clubes de serviços, pizzarias, churrascarias e viagens. O argumento: o contador anterior desconhecia profundamente as mudanças tributárias dos últimos três anos.

O farmacêutico voltou carregando três caixas pesadas. Entregou os documentos, comprovantes e declarações, conferiu algumas listas, rubricou algumas autorizações e assinou o cheque de exatos 20%.

- Próximos trinta dias em Santiago.

- Santiago?

- Santiago, capital do Chile, aquela que enfrentou terremoto tempos atrás e quase acabou com a cidade. Lembra? Passou na televisão. Tenho um filho que mora lá. Aprovado num concurso da Organização dos Estados Americanos. Acha que precisarei fazer mais alguma coisa antes de viajar?

- O senhor pode viajar tranqüilo. Nossos serviços são de primeira qualidade. Somos contadores. Contadores profissionais! Contadores de primeira linha! Cursamos uma das melhores faculdades deste Estado. Talvez o senhor nunca tenha ouvido falar dela, porque não é muito famosa, mas que é boa? Claro que é! Sem dúvida! Coloco minhas duas mãos, meus dois braços e meus dois pés no fogo! Mas, em todo caso...

- Em todo caso? Empertigou-se o farmacêutico.

- Em todo caso, interessante uma procuração nos dando poderes para resolver qualquer problema relacionado exclusivamente ao Imposto de Renda. Claro que o senhor nos dá a procuração se confiar em nosso trabalho, mas se quiser pode voltar de Santiago, recolher uma taxa ou protocolar um papel que nós mesmos poderíamos ter feito sem importuná-lo.

- Uma procuração apenas para resolver os problemas de Imposto de Renda?

- Exato, assegurou o contador. Nem mais nem menos. O que me diz?

O farmacêutico ponderou sobre uma viagem de longas horas para recolher taxas, autenticar a assinatura ou protocolar documentos na Receita Federal. Decidiu-se pela procuração, elaborada e assinada ali mesmo. Leu reiteradas vezes, conferiu palavra por palavra, frase por frase, significado por significado, observou o alcance do poder que transferia aos novos prestadores de serviços, leu mais uma vez, solucionou as dúvidas, rubricou as cinco vias. Entrou no espaço aéreo chileno de cabeça fria, ótima economia gerada pela troca de escritório. Numa só tacada, resolvera os problemas do Imposto de Renda e, com o dinheiro excedente, comprara duas passagens de ida e uma câmera fotográfica que registraria, se preciso fosse e conforme o manual do aparelho, até a voz e algumas imagens em vídeo.

Assim que desembarcou, pediu ao filho uma agência do banco, mas o filho, querendo mostrar que estava bem de vida no país que o acolhera, recusou-se inúmeras vezes até que, no oitavo dia de viagem, caminhando ao redor de um famoso teatro, encontrou um caixa internacional vinte e quatro horas em que introduziu o primeiro cartão e recebeu a informação de que tanto a conta corrente quanto a poupança apresentavam saldo zero.

Pegou o segundo cartão, repetiu a operação: saldo zero na conta corrente e na poupança. O terceiro, o quarto e o quinto cartões igualmente zerados. Desesperou-se um pouco, voltou ao apartamento do filho, telefonema internacional em horário comercial. O gerente o atendeu: retivera a procuração que permitia o trabalho de seus novos contadores.


*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 5 de agosto de 2011.