sexta-feira, 30 de setembro de 2011

LIVROS, AVENTURAS E ADOLESCÊNCIA



U
m menino, um pai, uma biblioteca, uma avó compreensiva e cúmplice, uma mãe que reclama e castiga, a fantasia entrando bruscamente na realidade para demonstrar que ela, a realidade, é tão ou mais mágica do que a fantasia. Esses são os ingredientes que Afonso Cruz brilhantemente reúne em “Os livros que devoraram meu pai”, obra-prima da Literatura Juvenil que aparece no Brasil já recheada de prêmios.

Quando Elias Bonfim nasceu, seu pai já tinha sumido. Ninguém sabia de seu paradeiro. A avó adiantava que Vivaldo, pai de Elias, cansara das tarefas burocráticas de recolhimento de impostos. A intenção de encurtar o tempo no trabalho entediante transformou-se na prática de levar livros escondidos para serem lidos durante o expediente. Um desses livros, “A ilha do Dr. Moreau”, estava aberto sobre os documentos analisados por Vivaldo quando o chefe, aproximando-se de sua mesa, percebeu que o funcionário havia desaparecido. Aos mais íntimos, a certeza de que Vivaldo lançara-se ao enredo de “A ilha do Dr. Moreau”, espécie de cientista maluco que realizava experiências com animais, a fim de viver as aventuras do romance.

Quando completa doze anos de idade e adentra a adolescência, período em que as convicções infantis chocam-se aos desejos e às liberdades dos adultos, Elias, filho de Vivaldo, recebe um presente diferente da avó: a chave do sótão, cômodo repleto de livros onde o pai dele – e filho dela – trancava-se por horas.

O confinamento de Vivaldo explicava-se pela necessidade de viajar nos enredos, perdurando em aventuras, angústias ou simplicidades e voltando à vida de burocrata. Elias depara-se com a biblioteca empoeirada e, ao mesmo tempo, bem organizada. Além da linguagem ágil sustentada pela quase objetividade da narrativa e pela exclusão de divagações desnecessárias, a maestria do foco narrativo deslocado para a terceira pessoa facilita a mensagem pedagógica do início do capítulo 5: “Folheei o exemplar de ‘A ilha do Dr. Moreau’, mas pousei-o logo, sem sequer ter lido um parágrafo. Estava tão nervoso que decidi adiar. Não seria por esse livro de Wells que iniciaria minhas leituras. Percebi que deveria começar devagar, por outros volumes, em vez daquele livro fatal que devorara meu pai. E, durante o primeiro semestre do ano letivo, fui lendo livro atrás de livro, aprendendo a perder-me nessas leituras. Foram meses de grande excitação, com alguns problemas em casa. Chegava sistematicamente atrasado para o jantar, e isso fazia minha mãe se zangar comigo.” (p.21)

Pelo menos dois ensinamentos são observados no fragmento. O primeiro tem cunho pedagógico na medida em que o personagem principal, constatando a dificuldade de enfrentar imediatamente o livro que devorara o pai, opta pelo aperfeiçoamento, pela aquisição de maturidade intelectual e pela consolidação da musculatura literária através da visita a outros títulos. Em suma, planta discretamente a idéia de se aperfeiçoar para seguir caminhos mais densos sem transformar uma sugestão de amigos – proporcionada pelo envolvimento entre o narrador que constrói a imagem do protagonista destemido, mas obediente e o leitor – em uma ordem de professor.

O segundo ensinamento predomina nos inconvenientes de chegar atrasado ao jantar e nos castigos maternos. A indicação de choques no menino que vai se transformando em homem reside não apenas em confrontos diretos nos comportamentos maléficos detectados na maioria dos jovens, mas no questionamento da legitimidade das ordens maternas no confronto direto de comportamento benéfico: afinal, os pais não querem que os filhos estudem, tenham boas notas e tomem bons rumos na vida? Possível alcançar boas notas sem intensa dedicação?

Elias Bonfim devora regularmente os livros do sótão. Os enredos pelos quais se expõe ou os personagens com quem troca idéias ou busca informações sobre o destino do pai constituem artifícios importantes na consolidação da aventura tão diferente das outras: mantendo um diálogo intertextual, os personagens imortalizados nas grandes obras literárias o levarão ao aperfeiçoamento da perícia de detetive amador.

Ao leitor interessado – considerando que a obra atinge eficaz e inteligentemente tanto adultos quanto jovens – a incumbência de montar o quebra-cabeças e auxiliar o protagonista no caminho da vida que, ao mesmo tempo, é o trajeto literário. Sem dúvida, o livro juvenil mais interessante dos últimos anos!


***



Os livros que devoraram meu pai
Afonso Cruz – Leya – 112 p. – R$ 29,90

sábado, 24 de setembro de 2011

METROSSEXUAL


Sabendo que o professor de fisioterapia cuidava das unhas, da pele, do cabelo, das sobrancelhas, evitava comidas gordurosas, investia em frutas, legumes e verduras, freqüentava a academia cinco vezes por semana e aproveitava os fins de tarde para massagens relaxantes nos arredores do Mercado Municipal de Porto Alegre, passaram a chamá-lo metrossexual. Metrossexual resume-se ao homem vaidoso. Além da masculinidade e da virilidade – nem sempre masculinidade e virilidade caminham no mesmo trajeto – o indivíduo se preocupa com a aparência, a imagem, a elegância, o charme.

Os dois professores do curso de farmácia provavelmente não se ativeram ao detalhe de que nem todos os estudantes são leitores de jornais ou revistas ou mantêm-se bem informados de modo que, enquanto caminhavam para suas respectivas salas de aula, atacavam o fisioterapeuta: - Metrossexual!

Algumas alunas ainda circulavam pelo corredor. Flagraram os professores de farmácia alcunhando o colega de metrossexual e, numa sacada rápida, deduziram o significado: metro são cem centímetros.

O professor de fisioterapia entrou numa sala de risos abafados, olhares desviados, alunas ruborizadas. Alguns tópicos no quadro-negro digital. Pegou a caderneta na bolsa, fez a chamada, saiu para atender ao colega, solicitando informações a respeito do feriado da semana seguinte. Bastou entrar para que as alunas, burburinho constante, se concentrassem entre os joelhos e o umbigo.

As alunas de outras salas de fisioterapia, seguidas gradualmente das de letras, farmácia, pedagogia, serviço social e educação física transitavam vagarosamente pelo corredor, vistas convergindo para ponto indefinido entre o cinto e as coxas. O docente iniciou explanação sobre as posturas de correção de coluna. Já adentrava o segundo ponto do roteiro. A porta estalou abruptamente e sua coordenadora, acompanhada da diretora e da responsável pelo núcleo de pesquisas, informou da necessidade de reforçar, naquele momento, as regras da ABNT.

- Mas, questionou o fisioterapeuta, essas regras não são ensinadas na disciplina de metodologia?

A diretora confirmou, a coordenadora consultou o relógio do telefone móvel e a responsável pelo núcleo de pesquisas enumerou justificativas regularmente voltando-se ao professor e, imitando os movimentos das quarenta e sete alunas, da diretora e da coordenadora, forçando as vistas na região do abdômen.

Cansado da explicação interminável, puxou a cadeira, sentou-se e, antes de cruzar as pernas, ouviu forte lamúria.

- Por que não senta como homem? Indagou uma aluna da segunda fila.

- Sentar-me como homem? Questionou o professor, abrindo as pernas, inclinando-se sobre elas, cotovelos nas coxas.

As quarenta e sete alunas, a coordenadora (mal casada cujo marido a estimulava freneticamente a assumir atividades na faculdade para livrar-se dela), a diretora (caíra de pára-quedas na instituição e facilitava descontos nas mensalidades dos alunos que topassem noite acadêmica em sua casa depois da meia-noite) e a responsável pelo núcleo de pesquisas (nunca tinha feito uma só pesquisa) concentraram-se novamente no docente, andando de um lado ao outro, fechando o zíper que insistia em abrir.

O burburinho tomou novamente conta da sala, a responsável pelo núcleo de pesquisas esclarecia a importância dos centímetros das margens quando, eufórica, a diretora – que parecia mais o retrato perfeito do desenho “A noiva cadáver” – descaradamente perguntou ao professor se os centímetros importavam em trabalhos científicos.

- Claro, asseverou o docente. Cada centímetro é importantíssimo dentro de um espaço limitado, restrito, pequeno, apertado.

As alunas gritaram, a coordenadora ruborizou, a responsável pelo núcleo de pesquisas perdeu o fio da meada do discurso, mas a diretora – a falta de descontos nas mensalidades para as horas extras dos alunos em sua casa estimulava o mau-humor – rasgou:

- O senhor consegue colocar tudo em espaço tão apertado? Sem deixar nada de fora?

- Se consigo, gracejou. Afinal, sou doutor nisso!

A diretora baixinha, cara de “noiva cadáver” e dona de um título de mestre comprado numa faculdade de fundo de quintal, voou aos braços do professor.

*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 23 de setembro de 2011.

sábado, 17 de setembro de 2011

CORONEL GUAMPA


Vinte e cinco anos de casado, três filhas, casa grande, moto e carro ainda pagando consórcio e sem seguro, Coronel Guampa abandonou a esposa e, com ela, dívidas de estabelecimentos comerciais falidos cuja titularidade na Junta Comercial e na Receita Federal pertencia à consorte. Desde a juventude Coronel Guampa desejava tornar-se empresário da comunicação de modo que, em dezenas de tentativas fracassadas, abriu bancas de jornais sobreviventes a, no máximo, um ano de má administração. As dívidas – das bancas e nos bancos – caíam nas costas da esposa.

Jogou a vida ao alto para se enrabichar com garota de mais ou menos vinte anos. Conhecida aos quatro cantos da cidade e aos limites da região. Gozava fama de dedicada aos homens de todas as espécies, religiões, partidos políticos, grupos sociais, econômicos, intelectuais e etários. Coronel Guampa – que, na verdade, não era oficial e recebeu a alusão após alugar quitinete nos arredores do Parque do Povo para se instalar com o novo amor – figurava entre os super-gordos, mal agüentava correr e caminhava arrastando os pés, falta freqüente de ar. Por onde passavam, as três filhas ouviam os cochichos: - Lá vão os pesos pesados da cidade. Pança, Pançuda e Pancilda.

Critérios de ascensão social bem articulados e indiscutivelmente definidos, a parceira fez com que Coronel Guampa se acreditasse garanhão e, depois de iludi-lo, emprenhou. O arremedo de oficial sentiu a boca amargar, porém engoliu em seco e, com cara de felicidade, festejou a notícia no restaurante chinês. A parceira pôs as manguinhas de fora: exigiu carro para passear e se distrair, demissão do trabalho, condicionador de ar no quarto, roupas novas, sapatos caros, cartão de crédito e TV por assinatura. Não carregava o filho dele?

Receoso de compartilhar as boas novas com as filhas, Coronel Guampa marcou reunião com Pança, Pançuda e Pancilda no Pastel São Jorge, nas imediações da Praça da árvore, a fim de persuadi-las a abrirem mão do carro – que ele prometera devolver depois de seis meses – e, ao mesmo tempo, convencerem a mãe a abdicar do processo de pensão alimentícia.

- Eu não queria falar agora, mas ela está grávida. Vou precisar do carro e também que convençam a mamãe a esperar mais um pouco. O dinheiro que dou todos os meses é muito maior do que deseja pedir na Justiça.

Pança revoltou-se. Alegava que o pai deixara a mãe na miséria, cheia de dívidas, bancos telefonando o dia inteiro e cartórios exigindo o pagamento de duplicatas, cheques e promissórias protestadas. Dali a pouco, garantia a filha, o oficial de justiça levaria as poucas coisas da casa. Pancilda disse que a cidade já comentava que sua atual parceira gostava de passear com amigos estranhos justamente nos dias em que ele trabalhava, mas, irritado com a insinuação de infidelidade – ele, o grande oficial, o grande garanhão, o grande entendido – pagou a conta e saiu pisando firme.

Os meses passaram, as dívidas da ex-esposa aumentavam consideravelmente, as filhas avisavam dos passeios estranhos da parceira, mas o pai negava-se a acreditar em fofocas. Beirava a meia-noite quando Coronel Guampa recebeu a chamada: mulher à maternidade.

Entrou desesperado no hospital. As filhas – apesar dos desentendimentos seriam sempre filhas – esperavam-no na pequena lanchonete. Dali a alguns instantes, o médico saiu: um menino. Sadio, alto, pesado. As filhas de Guampa se entreolharam. As desconfianças encerraram-se no berçário. Pelo vidro, o médico apontou um garotão de quase setenta centímetros, seis quilos, extremamente cabeludo e bela tonalidade de Thaís Araújo.

Coronel Guampa – baixote de 1,52 m, enfrentava problemas de calvície desde a adolescência e tão brancamente desbotado quanto os queijos caseiros – pegou um papel e explicou-se cientificamente:

- Vocês conhecem a miscigenação de modo que não descarto a possibilidade de antepassados transmitirem genes que só agora se manifestaram...

A mulher da lanchonete, vizinha do Coronel Guampa, desabafou em voz alta:

- Pior cego é o que não deseja enxergar.

*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 16 de setembro de 2011.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

PINTURA


A idéia de novos ares partiu de minha irmã que, numa típica visita de domingo, sugeriu cores mais vibrantes à fachada. Talvez, dessa maneira, o ambiente se alegrasse e, alegrando-se, contagiasse meu espírito melancólico, previsível e acomodado. Resisti à sugestão, mas decidi seguir-lhe o conselho depois de algumas semanas.

Gastei a tarde numa caminhada entre as ruas arborizadas de bairro elegante em busca de tonalidade que inspirasse paz e, ao mesmo tempo, entusiasmasse o dia. Depois de algumas horas, casa de dois andares despertou meu interesse e, sem saber corretamente que coloração era aquela, toquei a campainha.

Mulher de dentes brilhantes apareceu à porta. Expliquei minha curiosidade e, dali a instantes, voltou no encalço do patrão, óculos na ponta do nariz, jornal dobrado embaixo do braço esquerdo. Repeti-lhe minha observação acrescentando o bom gosto, a suavidade e o charme. Destravou o portão, perguntou-me se gostava de café com açúcar, demos a volta no prédio e, em cada parte, detalhava as qualidades. Embora não fosse arquiteto, ele mesmo a desenhara. Gostava do que via? Certamente, asseverei-lhe.

Quando nos sentamos à mesa do jardim, uma mulher de colar discreto apertou minha mão. Acho que roxo azulado, respondeu a esposa, pegando um dos pães disponíveis na bandeja. – Mas, retrucou o marido, pensei que seu irmão tivesse dito roxo suavemente esverdeado. Entre ressalva e divergência, a filha chegou do trabalho e apostou – nem no roxo azulado nem no roxo suavemente esverdeado – no verde desbotado acrescido de pingos cor de rosa.

 Vislumbrando o grande debate e a falta de resposta prática ao meu questionamento, mencionei levantar-me, porém o proprietário impediu-me alegando que, vindo de tão longe e considerando minha opinião simpática a respeito da elegância, o nome correto da cor da tinta seria o mínimo que poderia fazer. Gritou duas vezes para dentro e, poucos minutos, o filho saía abraçado à namorada. Segundo o rapaz, professor de Educação Artística, tratava-se de rosa misturado ao verde claro e ao azul escuro. A namorada, arquiteta de profissão e balconista da loja de roupas da família por vocação, discordou prontamente imaginando uma nuance peculiar de cinza que, nos efeitos solares, reproduzia uma visão panorâmica impressionista.

Fiz menção de levantar-me novamente... A esposa surgiu com o telefone na mão. Perguntava ao irmão o nome técnico da cor. Ouvi claramente a cunhada discordando da informação. Constrangia-me o fato de mobilizar a família, que nem conhecia, em torno de um assunto tão estúpido. Imaginava uma tática para escapar quando um rapaz bateu palmas. A filha do proprietário mandara mensagem de telefone ao amigo que já dava o parecer de creme com Bordeaux clássico. O filho do casal – professor de Educação Artística – e o amigo da filha do casal – artista plástico premiado, conforme soube posteriormente nas notas de eventos culturais – discutiram tranquilamente o assunto por uns vinte minutos até que, extenuados e procurando atividade menos árdua, combinaram de abrir uma cerveja.

Envergonhadíssimo de meu conturbado questionamento na rotina da família preparei-me mais uma vez para abandonar o debate quando, ao sair discretamente pelo portão da garagem, aberto para a empregada retirar sacolas de entulho, um homem de camisa xadrez surpreendeu-me aos gritos: - Quem disse que eu estava errado? Sacudia um prospecto de lojas de tintas. Antes que pudesse me mostrar qualquer informação, a esposa estacionou e o chamou de traidor. Como tivera coragem de pegar o primeiro papel que lhe caía nas mãos para enganar pessoas de boa-fé e, consequentemente, passá-la para trás? Entre feições desgostosas o carteiro, sabendo do motivo da briga desde que dobrara a esquina, quis igualmente opinar, porém um grito do escritório: a filha do casal encontrara a cor na internet.

Enquanto todos entraram atropelando-se – incluindo o carteiro – corri para minha casa, tranquei portas e janelas, acomodei-me na poltrona e comprometi-me a nunca mais ouvir minha irmã.

*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 9 de setembro de 2011.

sábado, 3 de setembro de 2011

FELICIDADE

Uma empresária a quem prezo perguntou se poderia me dar algumas dicas para atingir público maior de leitores. Ouvi atentamente suas sugestões – ouço atentamente as sugestões dos que me lêem – e ao fim delas disse-lhe que estilo, idéias e finalidades atendiam ao público literário. A Literatura é acessível a todos, mas nem todos são acessíveis à Literatura.

Contei-lhe que, no início, em jornais de abrangência popular ou especializados, ouvi comentários de um jornalista e de uma pediatra que liam meus textos, mas ressaltavam o uso de “palavras difíceis”. Essa constatação, proveniente de dois profissionais conceituados que não se conheciam, causou-me grande preocupação, pois usar palavras “difíceis” ou escrever “difícil” implicava na minha incapacidade de se tornar legível. Escrevia “difícil” ou porque não sabia redigir ou porque a aplicação de termos teóricos, técnicos ou especializados causava ruído na comunicação.

Graças aos comentários desses leitores e à minha conseqüente preocupação, surgiu motivo consistente que me obrigou a procurar opinião especializada. Com grande temor, descobri o telefone do Crítico Literário Wilson Martins. A voz do outro lado da linha, vinda da magnífica Curitiba, autorizou-me a enviar dez exemplares dos últimos trabalhos. Um mês e meio depois respaldou-me que, pelo menos lingüística e literariamente, encaixavam-se nos padrões. O tempo, a prática e o estudo, me assegurou mestre Wilson, me ajudariam a amadurecer um estilo.

A empresária ainda me aconselhou a tratar de assuntos de interesse mais abrangente. Já que gostava tanto de falar de Felicidade, por que não escrevia sobre isso? O problema não estava em que falar – falo sobre felicidade em boa parte de minhas crônicas – mas em como falar. Dependendo da perspectiva que empregue, o texto pode se tornar reflexão filosófica travestida de crônica assim como pode igualmente caracterizar-se ensinamento de auto-ajuda.

Nada tenho contra a auto-ajuda. As teorias de conhecimento – sejam científicas ou não – são maneiras possíveis de interpretação de vida. Entretanto, temos uma diferença entre Filosofia e auto-ajuda: Filosofia aponta os caminhos e o responsabiliza pelas atitudes na mesma proporção em que a auto-ajuda aponta o caminho, prometendo-lhe sucesso entre as mensagens subliminares.

Felicidade, amor, tristeza, morte, sucesso, alegria, amadurecimento e mais duas ou três dezenas de temas importantes que atravessaram as discussões filosóficas nos últimos cinco ou seis mil anos interessam tanto à Filosofia quanto à auto-ajuda de maneira que, sob vieses próprios, qualquer um pode escolher entre as duas teorias do conhecimento. Quando, por exemplo, tratamos de Felicidade, a primeira pergunta que alguém pode nos fazer: você é feliz?

Confesso minha limitação entre teoria e prática. Tratar de Felicidade, arregimentando os pensamentos na tradição filosófica, é muito fácil. Já no âmbito pragmático, tenho mais dificuldades para responder perguntas específicas sobre pais, mães, irmãos, esposas, maridos, filhos, demais parentes e agregados. Pensava em resposta para pergunta determinada quando me lembrei de Dedé Santana. Já ouviram falar de Dedé Santana, aquele Dedé dos Trapalhões, que surge na televisão por volta do meio-dia de domingo?

A família de Dedé vivia num circo, pulando de cidade em cidade, de estado em estado, apresentando números, convidando a população a assistir aos espetáculos. Durante longas semanas, Dedé, a família e os integrantes da trupe passaram fome até que, por uma dessas viradas do destino, conseguiram vender os ingressos para o espetáculo das oito horas da noite. Almoçaram bem, comemoraram a sorte, brindaram a vida. Às seis e meia, o pai de Dedé faleceu. Colocaram o caixão numa tenda. Na outra, a do circo, Dedé pulou, cantou, dançou e fez os espectadores rirem por mais de hora.

Se sou feliz? Provavelmente... Se sei ensinar alguém a conseguir a felicidade? Nunca! Imagino que a busca da Felicidade resulte dos confrontos e, nesse ponto, apenas Dedé pode responder como fazer os outros rirem enquanto o coração sufoca.

*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 2 de setembro de 2011.