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m menino, um pai, uma biblioteca, uma avó compreensiva e cúmplice, uma mãe que reclama e castiga, a fantasia entrando bruscamente na realidade para demonstrar que ela, a realidade, é tão ou mais mágica do que a fantasia. Esses são os ingredientes que Afonso Cruz brilhantemente reúne em “Os livros que devoraram meu pai”, obra-prima da Literatura Juvenil que aparece no Brasil já recheada de prêmios.
Quando Elias Bonfim nasceu, seu pai já tinha sumido. Ninguém sabia de seu paradeiro. A avó adiantava que Vivaldo, pai de Elias, cansara das tarefas burocráticas de recolhimento de impostos. A intenção de encurtar o tempo no trabalho entediante transformou-se na prática de levar livros escondidos para serem lidos durante o expediente. Um desses livros, “A ilha do Dr. Moreau”, estava aberto sobre os documentos analisados por Vivaldo quando o chefe, aproximando-se de sua mesa, percebeu que o funcionário havia desaparecido. Aos mais íntimos, a certeza de que Vivaldo lançara-se ao enredo de “A ilha do Dr. Moreau”, espécie de cientista maluco que realizava experiências com animais, a fim de viver as aventuras do romance.
Quando completa doze anos de idade e adentra a adolescência, período em que as convicções infantis chocam-se aos desejos e às liberdades dos adultos, Elias, filho de Vivaldo, recebe um presente diferente da avó: a chave do sótão, cômodo repleto de livros onde o pai dele – e filho dela – trancava-se por horas.
O confinamento de Vivaldo explicava-se pela necessidade de viajar nos enredos, perdurando em aventuras, angústias ou simplicidades e voltando à vida de burocrata. Elias depara-se com a biblioteca empoeirada e, ao mesmo tempo, bem organizada. Além da linguagem ágil sustentada pela quase objetividade da narrativa e pela exclusão de divagações desnecessárias, a maestria do foco narrativo deslocado para a terceira pessoa facilita a mensagem pedagógica do início do capítulo 5: “Folheei o exemplar de ‘A ilha do Dr. Moreau’, mas pousei-o logo, sem sequer ter lido um parágrafo. Estava tão nervoso que decidi adiar. Não seria por esse livro de Wells que iniciaria minhas leituras. Percebi que deveria começar devagar, por outros volumes, em vez daquele livro fatal que devorara meu pai. E, durante o primeiro semestre do ano letivo, fui lendo livro atrás de livro, aprendendo a perder-me nessas leituras. Foram meses de grande excitação, com alguns problemas em casa. Chegava sistematicamente atrasado para o jantar, e isso fazia minha mãe se zangar comigo.” (p.21)
Pelo menos dois ensinamentos são observados no fragmento. O primeiro tem cunho pedagógico na medida em que o personagem principal, constatando a dificuldade de enfrentar imediatamente o livro que devorara o pai, opta pelo aperfeiçoamento, pela aquisição de maturidade intelectual e pela consolidação da musculatura literária através da visita a outros títulos. Em suma, planta discretamente a idéia de se aperfeiçoar para seguir caminhos mais densos sem transformar uma sugestão de amigos – proporcionada pelo envolvimento entre o narrador que constrói a imagem do protagonista destemido, mas obediente e o leitor – em uma ordem de professor.
O segundo ensinamento predomina nos inconvenientes de chegar atrasado ao jantar e nos castigos maternos. A indicação de choques no menino que vai se transformando em homem reside não apenas em confrontos diretos nos comportamentos maléficos detectados na maioria dos jovens, mas no questionamento da legitimidade das ordens maternas no confronto direto de comportamento benéfico: afinal, os pais não querem que os filhos estudem, tenham boas notas e tomem bons rumos na vida? Possível alcançar boas notas sem intensa dedicação?
Elias Bonfim devora regularmente os livros do sótão. Os enredos pelos quais se expõe ou os personagens com quem troca idéias ou busca informações sobre o destino do pai constituem artifícios importantes na consolidação da aventura tão diferente das outras: mantendo um diálogo intertextual, os personagens imortalizados nas grandes obras literárias o levarão ao aperfeiçoamento da perícia de detetive amador.
Ao leitor interessado – considerando que a obra atinge eficaz e inteligentemente tanto adultos quanto jovens – a incumbência de montar o quebra-cabeças e auxiliar o protagonista no caminho da vida que, ao mesmo tempo, é o trajeto literário. Sem dúvida, o livro juvenil mais interessante dos últimos anos!
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Os livros que devoraram meu pai
Afonso Cruz – Leya – 112 p. – R$ 29,90
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