sexta-feira, 7 de outubro de 2011

TRUFAS

- Pois é, doutor. Parece-lhe brincadeira, mas arriei graças a uma coisinha de dezessete anos. Desde meus nove ou dez anos sei dos problemas de saúde, especialmente diabetes.

O homem gordo pegou o copo de água, bebeu dois goles, olhou o relógio em cima da porta, respirou fundo e retomou a confissão:

- Minha neta sempre me oferecia trufas. Sabia se tratar de chocolate e, como sabemos, diabético, preciso evitar comidas doces, controlar a pressão, fazer exercícios físicos diariamente. A pressão está mais ou menos controlada. Troquei os exercícios físicos pela falta de comidas doces. Mas, confesso, realmente não me controlei.

O médico dispensou a enfermeira que terminara de injetar líquido no soro do corpulento paciente de oitenta anos, estirado numa cama de lençóis brancos, reclinado com a ajuda de cinco travesseiros.

- Terminava laudo no meu escritório. A planta da fábrica de mostarda, maionese e congênere de Teodoro Sampaio perdeu a estrutura do lado direito. Justiça, os donos alegaram prejuízo do dinheiro investido, férias coletivas aos funcionários para evitar qualquer acidente mais grave. Verifiquei que, na realidade, os engenheiros que construíram jamais poderiam usar aqueles materiais. Economizaram o máximo para aumentar o lucro.

Alguém entrou com bandeja sobre a qual repousavam remédios e copo de suco de laranja. O homem engoliu os comprimidos, bebeu o suco de laranja, pediu um de maracujá, acomodou-se melhor e, à saída do auxiliar, retomou:

- Quase cinco horas da tarde quando minha secretária me informou da ida ao banco: deixara alguns papéis durante o expediente e, ao fim deste, voltava para pegá-los. Uma estratégia muito comum para poupar tempo dos grandes escritórios e estreitar as relações entre bancos e clientes. Pouco tempo depois, alguém bateu à minha porta. Sabia que não era minha secretária. Levantei-me: uma coisinha linda de dezessete anos – ela me disse, rápida conversa, que tinha dezessete anos – segurava uma bolsinha térmica branca, pele perfeita, cabelos pretos repartidos em dois rabos de cavalo, shortinho curto e um top preto apertadíssimo. Nem prestei atenção nos tênis ou nas meias – geralmente presto atenção nos mínimos detalhes.

O auxiliar entrou segurando o suco de maracujá, copo na bandeja ao lado do paciente.

- Sem dúvida, ela não procurava estágio, pois sequer concluíra o ensino médio, nem se interessava na construção ou na reforma de prédios, que são nossa especialidade. Gostaria de vender-me trufas. Antes de comunicar minha impossibilidade de aquisição, entrou na minha sala, aproximou-se da mesa de centro, dispôs cuidadosamente a bolsinha e, para meu espanto, abaixou-se para retirar sua mercadoria: alcançou as trufas, mais ou menos na altura das panturrilhas, sem dobrar os joelhos. Sou homem completo, mas oitenta anos não são oitenta dias. Meu coração disparou. Começava a afrouxar a gravata quando veio em minha direção, puxou-me pelo braço e iniciou o tormento. Apresentou-me os sabores: chocolate, morango, maracujá, avelã, coco, caramelo... Daí para frente nada mais ouvi. Apenas prestava atenção na maneira como ela, a cada vez que pegava um dos exemplares, abaixava-se mais ou menos à altura das panturrilhas sem dobrar os joelhos: o coração tomava velocidades irregulares. Já tinha tirado a gravata, me livrara do blazer, afrouxara os punhos e arregaçara as mangas. Comecei a sentir formigamento, mas me mantive firme, olhando a gracinha pegando as trufas e me mostrando os sabores, as qualidades, os detalhes de produção artesanal. Já estava em ponto de bala quando, sem querer, uma das trufas caiu no chão e, demonstrando sua indiscutível disposição física, inclinou-se a pegá-la sem dobrar os joelhos. Já acordei nessa cama.

A esposa, dois filhos e três netos entraram alvoroçados no quarto. Queriam detalhes do acontecido.

- Trufas! Trufas!

- Sabes que não podes comer trufas, Manuel!

Dois toques na porta. Shortinho curto, top apertadíssimo, bolsa térmica.

- Trufas, disse a esposa. Trufas são realmente muito perigosas.

*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 7 de outubro de 2011.

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