sábado, 22 de outubro de 2011

VEÍCULOS

- Eu não acredito nisso! A síndica soltou as sacolas do supermercado sobre o sofá da entrada do edifício, cruzou o corredor, deixou um casal sem cumprimento e entrou na garagem coletiva soltando fogo pelas orelhas. O morador do apartamento setenta e sete espalhava ração no chão. Apesar de tê-la visto caminhando em sua direção, continuou alimentando o cavalo.

Parou ao lado do animal, cruzou os braços:

- O senhor está nos causando sério problema, disse, olhando raivosamente o morador do apartamento setenta e sete que, sem interromper a atividade, depositou mais comida e verificou o nível de água na bacia.

- Em que posso ajudá-la, dona...

- Dona Maria Clara! Maria Clara! Já tinha me apresentado outra tarde quando carregava aquelas caixas de discos de vinil para seu apartamento. Fiz questão de avisar que somos um condomínio de regras claras! Gostamos de manter a ordem, de organização!

- Como a senhora sabe, mudei-me para Presidente Venceslau há pouco tempo. Gosto de ordem, de regras, de organização, de respeito ao próximo. Por essa razão, escolhi esse prédio que é...

- Que é o mais ordeiro de Presidente Venceslau, interrompeu bruscamente a síndica. Se é o mais ordeiro, o senhor deve respeitar as regras.

O morador do setenta e sete arrumava alguns jornais no banco traseiro do automóvel. Saiu do carro, fechou a porta, dirigiu-se à mulher:

- Por acaso, disse delicadamente, a senhora insinua que cometi delito, erro ou desvio de conduta?

- Se cometeu... O mais grave de todos. Este condomínio não aceita animais.

- Chama-me animal?

- Não estou me referindo ao senhor, respondeu impaciente. Obviamente falo de seu cavalo. Jamais poderia adentrar nossos limites, principalmente amarrado ao estacionamento do prédio. Se nem cachorros, gatos, porquinhos da índia ou ratos de estimação são permitidos, muito menos cavalos, carneiros, bois ou tamanduás.

O homem entrou no carro, abriu o porta-luvas, retirou uma pasta preta de zíper prateado, separou alguns papéis, achou o contrato de aluguel de três anos do imóvel.

- Basta ler a cláusula cinqüenta e três, apontou o morador do setenta e sete, muito tranquilamente repassando às mãos da síndica documento impecavelmente guardado. Cláusula cinqüenta e três: “O inquilino do apartamento setenta e sete aluga concomitantemente a garagem de seu respectivo apartamento e, da mesma maneira, por preço estabelecido na convenção do condomínio, a vaga de garagem do apartamento setenta e cinco, contígua à sua no estacionamento coletivo, desde já comprometendo-se a ocupá-la exclusivamente com meios de locomoção”.

- Pois, muito bem, retomou Maria Clara. O contrato prevê que a vaga alugada destina-se exclusivamente a meios de locomoção. Seus meios de locomoção são um carro e um moto.

- Meus meios de locomoção são um carro, uma moto e um cavalo. Leia o contrato com atenção: meios de locomoção não são apenas carro, moto, bicicleta, patins. Poderia igualmente enquadrar-se asa delta ou barco, considerando que o contrato não estabeleceu tratar-se de meio de locomoção aéreo ou marítimo. Da mesma maneira, o contrato nada determina sobre as especificações de meios de locomoção. Nada menciona se precisam de motorização ou se podem enquadrar-se na categoria tração animal.

- Mas... Maria Clara quis interromper.

- Wittgenstein defende a coisa em si e como revelação. Bourdieu ensina que as coisas são símbolos. Desse modo, o que a senhora enxerga não se trata de coisa em si, ou seja, não é um cavalo, simples quadrúpede. O que vê é a coisa como manifestação ou como símbolo: um veículo que, em segundo e distante plano, é um cavalo. Leia um pouco de filosofia. Aprenderá a ver o invisível. Talvez, daí em diante, consiga enxergar por que seu marido sai às quartas-feiras e aos sábados sempre às três e quarenta e cinco.

Maria Clara atravessou a recepção bufando, pegou as sacolas deixadas no sofá, abriu a porta do elevador, mas antes de fechá-la o zelador a questionou:

- E agora? Que atitude tomar?

- Primeira atitude? Acabar com esse negócio de filosofia.


*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 21 de outubro de 2011.

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