Os ramos da ciência enfrentam uma série de desafios para se inserir nas bibliografias acadêmicas, nas listas de concursos ou no rol de debates de intelectuais. Acusações e defesas, elogios e críticas, afetos e inimigos vão se agrupando ao mesmo tempo em que obras vão se agüentando no caminho da leitura. Os autores se esforçam para se manter na mídia. Se, na Literatura, a situação é complexa, já conseguiram imaginar as peripécias nas demais disciplinas do saber?
Por essa razão, causa-nos grande satisfação folhear “Brasil: de Getúlio a Castello”, do brasilianista Thomas Skidmore que, no relançamento pela Companhia das Letras, comemora quarenta anos de sucesso, reconhecimento e discussões. O historiador norte-americano causa frisson entre seus colegas brasileiros que, em alguns casos, acusam-no de acessos privilegiados a fontes tanto do período varguista quanto do ditatorial para desenhar um retrato econômico, social e cultural de um movimento político ainda em vigor na época.
Em uma de suas numerosas entrevistas, Skidmore respondeu, ao repórter insistente, que pouco sabia do Brasil. Escolhera o português porque as aulas de espanhol, idioma de sua preferência, começavam cedo demais e se tornavam incompatíveis com seus hábitos de acordar tarde durante as férias.
O distanciamento necessário na análise de documentos aliado ao desinteresse inicial pela história brasileira acabam trazendo um resultado proveitoso aos leitores do livro que, mesmo escrito no calor das horas das tormentas, como no caso em que estuda especificamente o regime militar, produz frutos híbridos. Sem demonizar inteiramente as forças armadas e evitando criar o ufanismo aos esquerdistas, Skidmore recorta trechos utilizando, na reconstrução dos fatos, as medidas da régua e do compasso. Régua para medir os tamanhos dos recortes e compasso para escolher milimetricamente os pontos a serem abordados.
“Brasil: de Getúlio a Castello” prende a atenção não apenas pela abordagem transmitida em linguagem fluente, mas principalmente pela tradução de Berilo Vargas e pela diagramação que promove leitura mais envolvente e menos cansativa, mesmo quando os dados sociais, econômicos e políticos são descritos densamente.
Na introdução, Skidmore relata os motivos que o levaram à deposição do então presidente João Goulart, mas a pesquisa sobre o fato – atualmente também abordado de maneira brilhante por Carlos Fico, historiador e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro – exigiria mais esforços do que supunha inicialmente. O brasilianista reviraria sistematicamente arquivos e dados que explicassem a ascensão, manutenção e declínio de Vargas (tanto nos quinze anos em que exerce ininterruptamente o poder quanto na primeira metade da década de 1950, quando retoma a presidência republicana pelo voto popular), passando pelo governo Juscelino – em que analisa os problemas da inflação e as discussões em torno dos embates do desenvolvimento e da atualização do conceito de nacionalismo – e observando os jogos de poder que facilitaram a eleição e a renúncia de Jânio Quadros.
Os tópicos sobre o período Goulart ressaltam os transtornos decorrentes da inflação – problema que atravessa décadas e impõe desconfortos aos governantes que não conseguem controlá-la, as reformas de base, entre elas a agrária, o colapso financeiro. Um possível comportamento ambíguo e pouco objetivo de Jango culminaria no questionamento sobre o evento de 31 de março de 1964: golpe (como afirmavam os esquerdistas) ou revolução (como defendiam os militares)?
A edição traz um interessante apêndice sobre a participação dos Estados Unidos na queda do presidente Goulart. Como retomaria Carlos Fico anos mais tarde, o papel dos Estados Unidos na deposição do presidente brasileiro constituiria uma ação da sociedade, do governo ou do estado norte-americano?
Em síntese, “Brasil: de Getúlio a Castello” é um clássico indispensável nas prateleiras de quem deseja compreender a história do século XX e ensaiar uma compreensão das características das ditaduras na América Latina. Uma análise primordial à base de régua e compasso.
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Thomas Skidmore – Companhia das Letras – 472 p. – R$ 56,00
*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 25 de fevereiro de 2011.
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