Encantei-me com o traquejo lingüístico de Autran Dourado desde a leitura de “Confissões de Narciso”: comprova o rigor estilístico do romancista mineiro que, na condição de narrador, menciona reiteradamente “Os sofrimentos do jovem Werther”, de Goethe, e “De l’amour”, de Stendhal. Aprofundar-me-ia na compreensão metafórica e na percepção das alegorias se lesse Goethe e Stendhal. Goethe? Um fiasco. Stendhal, de “O vermelho e o negro”, atentado contra a vida da fluência da palavra escrita.
Continuei buscando os bons autores indicados pelos escritores que admiro. Mergulhei em Guimarães Rosa pela suposta sensibilidade atribuída por Rubem Alves e confirmada por Luiz Roberto Velloso Cairo. Procurei Clarice Lispector pela eventual magnitude que, segundo Caio Fernando Abreu, a caracterizaria. Desafiei os contos de Machado de Assis pela singularidade defendida por Josué Montello, Alfredo Bosi e Raymundo Faoro. Nem Guimarães Rosa, nem Clarice Lispector, nem o Machado de Assis contista causaram-me o frisson que seus leitores especializados testemunharam.
Na única entrevista de que se tem conhecimento, Dalton Trevisan indicava Tchekov como fonte de inspiração; o romancista Luiz Antônio de Assis Brasil sugerira a prosa econômica de Luiz Vilela. Tchekov está além de minhas forças. Já Luiz Vilela – cujo prefácio da antologia a que inicialmente tive acesso saiu da lavra de Wilson Martins – decepcionou-me no primeiro encontro, mas exibiu vigor nos “Contos eróticos”.
Dois grandes poetas que releio também recomendaram suas predileções: Fernando Pessoa e Antônio Lázaro de Almeida Prado. Pessoa falava do prazer da distração à poesia de Cesário Verde e Almeida Prado enfatizava Murilo Mendes. Ainda preciso de décadas de maturidade e reflexão para descodificar essa intensidade poética de Cesário e de Murilo tendo indiscutivelmente de delinear suas singulares qualidades.
E Manuel Bandeira? Desde a leitura de “Pasárgada” observei a grandiosidade de quem considera Carlos Drummond de Andrade o maior dos poetas brasileiros. Naquela época, ainda achava Drummond criador de uma poesia obscura e sem graça até que, aproveitando os bons preços das bem cuidadas edições de bolso, descobri “Cidadezinha qualquer”, “As namoradas mineiras”, “O lutador”, “José”, “Procura da poesia”, “Canção para álbum de moça” e “O chamado”. Após várias interpretações desses poemas, me flagrei questionando, em tom de confissão: não era que Bandeira estava aparentemente correto?
O grande momento da Literatura – que é a representação da vida – consiste na confabulação das paixões. Quando o poeta José Benjamim de Lima me empresta alguns livros, indicando fragmentos ou capítulos inteiros dos quais gostou, ou gentilmente me presenteia com uma antiga e despedaçada edição de bolso da “Ilíada” – a que chamou de “pré-histórica” na dedicatória – entramos naquilo a que o cronista Rubem Alves denomina comunhão, pois a esperança do poeta repousa no desejo de que seu sangue literário percorra minhas veias e, pela leitura de Homero, nos tornemos um só corpo e um só espírito. Quando me classifiquei no processo seletivo de história, meu ex-orientador Wilton Carlos Lima Silva deu-me um livro de Fernando Azevedo. Sua intenção resumia-se na ansiedade de que o discípulo se tornasse tão brilhante quanto o mestre. De maneira idêntica, os esforços mnemônicos e didáticos do poeta Antônio Lázaro de Almeida Prado para semear suas predileções constituem um grande e profundo caminho da erudição epistemológica.
Em um sebo de Londrina, achei um exemplar velho, carcomido e deteriorado de “Sozinha no mundo”, de Marcos Rey. Quando minha filha me viu presenteando a mãe com aquele livro que considerava sujo, perguntou-me por que não comprara um novo. Pensei que não conseguiria matar sua curiosidade, mas conseguiu entender o que simbolizava para mim: aprendeu que o suporte – as páginas, a diagramação, os desenhos, a quantidade de papel, o preço, o nome do autor – é um mero detalhe. As histórias impregnadas em nossas cabeças e em nossos corações são o alcance pleno das realizações literárias. As realizações de leitura são sucessos para alguns; fracassos, para outros. Entre sucessos e fracassos, amores e ódios, afinidades e distanciamentos? Se o enredo de “Sozinha no mundo” riscar a memória de minha namorada, seremos um só corpo e um só espírito. Caso contrário, desempenharei o papel dos escritores que admiro: semearei com a esperança de flores nascerem em jardins alheios...
*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 4 de fevereiro de 2011.
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