Quando se casaram, o marido sabia que perderia a liberdade. Sempre que escolhesse uma camisa, uma cor fora dos padrões ou observasse algum quadro de publicidade seria cutucado: - Por que essa camisa horrível? Que cor mais “cheguei”! Por acaso você parou para olhar algum rabo de saia?
Saía das encrencas do jeito que podia. Sorria amarelo, desconversava, fingia não ouvir, inventava uma explicação epistemologicamente aceitável para qualquer pessoa que desconhecesse o significado de epistemologia.
Desde o noivado, abandonara o futebol de quinta-feira, esquecera o teatro de sexta-feira, riscara da agenda as churrascarias e as danceterias do sábado, as pescas do domingo.
- Mas nem pescar eu posso? Perguntava furioso.
- Pescar? Que conversa de pescar é essa? Já viu peixe nesse rio? Nem peixe, nem caranguejo, nem jacaré, nem sereia, nem piranha. Fique em casa. Você ganha mais.
Com o tempo, alguns desejos reprimidos foram esquecidos, outros ascendiam aos devaneios, mas rapidamente se descartavam. Um, apenas um, parecia consumi-lo: a dança.
As meninas dançando na escola, os espetáculos musicais da igreja, os filmes invariavelmente assistidos na madrugada ou alugados convidavam-no a sapatear, valsar, forrozar, tangar. À noite, ensaiava alguns passos dentro do banheiro enquanto a mulher ressonava simetricamente. Se pelo menos ela topasse uma aula semanal ou quinzenal... O que custava dançar um pouco?
- Não, não tem dança. Que conversa de dança é essa? Ele nem precisava perguntar. A resposta refluía em sua cabeça.
Passando no cruzamento da Avenida Colombo com a Morangueira, viu uma menina de saias esdrúxulas segurando um cartaz colorido: “Dança de salão. Preços acessíveis. Aulas noturnas. Telefone”. Antes que o verde gradual acendesse, tomou caneta e anotou o telefone da escola de dança nas costas do talão de cheque.
No trabalho, discou. Mão tremendo. Disfarçou a voz, interessou-se pelos horários, preços e formas de pagamento. Como se descobrisse seus devaneios, a telefonista informou da disponibilidade de dançarinas para alunos singulares. Jamais alunos sozinhos, mas alunos singulares, a diretora experiente sussurraria.
Anotou no talão de cheques: aula às vinte horas da terça-feira. Uma desculpa qualquer para a mulher. Entre quinta e terça-feira, angustiou-se. O tempo... O tempo...
Na terça-feira, depois do trabalho, tomou banho, vestiu roupa velha e remendada, jantou, sentou-se no sofá. Quando a mulher entrou no banheiro, disparou:
- Vou abastecer o carro! Melhor abastecer agora do que amanhã, em cima da hora.
Pegou a carteira, as chaves e partiu. Cinco quadras adiante parou, tirou uma sacola do porta-malas dentro da qual camisa, calça, meias e sapatos novos colidiam.
Pediu desculpas pelo atraso, teve sorte de pegar uma dançarina simpática. Preparava-se para enlaçá-la e iniciar os passos quando, percebendo rumores fortes e o distanciamento abrupto dos outros alunos, vislumbrou uma sombra:
- Como você vai abastecer o carro sem cheque, Ezequiel?
*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 12 de novembro de 2009.
Um comentário:
Depois dessa, vai até perder o gosto pela dança. rsrs
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