sábado, 28 de novembro de 2009

TRANSPORTADORA

Quando me chamou para parceria comercial, meu amigo advertiu que a empresa eventualmente poderia apresentar resultados negativos nos primeiros meses, certamente durante um semestre. Divulgação, pedágios, conserto de avarias, horas extras, alimentação e pensões em viagens mais longas.

Desde que não tivesse prejuízo e pudesse efetuar saques mensais estava tudo perfeito para mim. A sociedade prolongou-se e nos três anos seguintes passava uma vez por mês na transportadora. Queria apenas pegar o dinheiro e ir embora, mas meu amigo insistia para que verificasse os livros contáveis, aprovasse a compra de novos caminhões, opinasse sobre os equipamentos de segurança, sugerisse modificações em trajetos, procurasse medidas legais para diminuir os impostos.

Eu prometia que me esforçaria para atender seus pedidos, fingia que os anotava num pequeno caderno que guardo na bolsa, apertava-lhe a mão e aparecia trinta ou quarenta dias depois para meu saque.

Acordei na quarta-feira aparentemente feliz porque não teria de trabalhar. Quinta-feira seria feriado, sexta-feira ponto facultativo. Faltavam-me apenas algumas centenas de reais para encher o tanque do carro, comprar alguns mantimentos e correr os quinhentos quilômetros até a praia. Se saísse de Assis por volta das dez e meia estacionaria em lugar privilegiado para o pôr-do-sol ao som de Ravel.

Se saísse...

Percebi um movimento intenso na transportadora. Admirava como meu amigo lidava com imprevistos, pressão, desencontros e cobranças. Conferia as notas de entrega, assinava cheques, copiava dados numa planilha, assinava contratos com a prefeitura, recalculava os fretes atrasados pelo rompimento de ponte e por causa da chuva.

Eu o acompanhava. Entramos no depósito, na oficina, na contabilidade, no repositório de peças. Ele na frente, ao telefone, eu atrás, mãos no bolso, esperando um intervalo para pedir meu dinheiro. De repente:

- Sabe dirigir caminhão?

Eu responderia que minha Carteira Nacional de Habilitação me permitia dirigir caminhões e ônibus. Ele emendou:

- Se sabe, sabe. Se não sabe, vai aprender agora.

Em pouco mais de cinco minutos entrava na cabine incumbido de entregar uma carga em Londrina. Sem muitas surpresas, saí de Assis meio temeroso, mas muito confiante. Talvez se apertasse o pé conseguisse voltar antes do meio-dia. Afinal, Londrina era ali. Um pulo. Entregaria a encomenda, pegaria o recibo, entregaria o recibo ao meu amigo e sócio e entraria nos limites da praia no início da noite.

Cento e dez quilômetros por hora. Precisava alcançar essa velocidade para meus planos darem certo. Assim que fiz o trevo da Unesp percebi que não conseguiria ultrapassar os noventa por hora. Na primeira subida, o caminhão diminuiu para menos de sessenta.

Observando os caminhoneiros, notei que aceleravam na descida para obter alguma vantagem na subida. Fui tomando gosto pela coisa, pegando as manhas, sentindo-me integrado ao grupo de profissionais. Aos poucos, as marchas encaixavam tranquilamente, os freios correspondiam à sensibilidade de meus toques, o veículo deslizava nas curvas.

A paisagem entrecortada por dois rios e tonalidades de verde despertou-me lembranças nem tão distantes. Recordava quando meu pai nos jogava no banco traseiro do carro – meu irmão, minhas duas avós e eu – e assumia a direção tendo, ao lado, minha mãe e meu irmão mais novo. Vez por outra nosso cachorro nos acompanhava à praia. Naquele tempo, preferia ficar em casa, dormindo. Praticamente os dias de sábado e de domingo na praia significavam sono. Sono profundo. Detestava praia. Depois de velho, os silabares marítimos despertavam-me alguma nostalgia. Nostalgia do que poderia ter sido. Cada nova paisagem me levava ao carro de nossa família, deslocando-se entre coqueiros. A lembrança tornou-se ainda mais forte quando uma rádio de Londrina entoou uma música de Roberto Carlos.

Minha viagem à praia seria ótima, pensava, olhando no retrovisor para mudar de faixa. Seria ótima se, aproveitando o embalo da descida para manter a velocidade na subida, não tivesse passado a noventa por hora nas duas lombadas de Sertanópolis. Eu sabia das lombadas, porém, extasiado com a aventura de caminhoneiro, esqueci-me delas.

Achei facilmente o endereço da Avenida Maringá, buzinei feliz, desci sorridente quando, quase esfregando as mãos e fazendo propaganda da qualidade e da rapidez da transportadora, o gerente da loja de material de construções se disse ansioso para ver os novos modelos de espelhos, pias e vasos sanitários.

*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 28 de novembro de 2009.

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