Recebi uma mensagem eletrônica de uma leitora perguntando da necessidade de títulos grandiloqüentes para os trabalhos dos escritores. Referia-se particularmente aos artigos sobre Cyro dos Anjos e Antônio Lázaro de Almeida Prado e as concepções distintas – muitas vezes antagônicas – de seus lugares no campo literário brasileiro.
A leitora está correta. A indiferença ou objetividade é bem aceita no meio acadêmico. Porém, a objetividade e a indiferença se afastam do calor e do frenesi provocados pela paixão. Minha concepção de crítico literário, de leitor e de apaixonado me conduzem pelos caminhos da grandiloqüência. Provavelmente na esperança de jogar os germens da paixão nos trajetos de outras pessoas, como parece ter sido com a leitora em questão, a quem agradeço a mensagem e com quem compartilho outras paixões literárias, entre elas Dalton Trevisan.
Embora considerado – nos mesmos moldes de Nelson Rodrigues – um autor pornográfico e erótico, Dalton Trevisan se erige ao patamar de maior contista do século XX. Capaz de delinear os comportamentos do cotidiano urbano usando linguagem prosaica altamente poética, o escritor paranaense fez do conto a ferramenta literária capaz de transmitir desejo, excitação e angústia.
Alguns estudiosos valem-se do minimalismo para descrever sua qualidade maior. O minimalismo – que significa usar o mínimo de palavras, de frases, de parágrafos ou de capítulos – é um fator importante no estilo do contista paranaense, mas reduzir seu talento à essa explicação limitada e abandonar a segundo plano sua originalidade na reinvenção semântica e sintática são absurdos.
Quando nos debruçamos sobre a obra ou descompromissadamente passamos os olhos por algum conto, as dúvidas sobre a economia frasal são respondidas pelos eflúvios de alta densidade poética (absolutamente) difíceis de imitar. Apenas escrever telegraficamente não representa a capacidade de criação.
O segundo ponto em nossa observação se mantém nos cenários urbanos em que os personagens transitam entre o retrato diário e os desejos abafados. O abuso de uma jovem por um grupo de homens, os estupros, as delícias da infidelidade ou a aceitação dos encontros fortuitos da esposa com amantes diversos são retratos da Curitiba que representa os percalços não apenas no Brasil. Daí que, nesse item, os contos de Dalton Trevisan são verossímeis (porque encontram guarida na realidade) e universais (acontecem em qualquer lugar e em qualquer tempo).
Assinalar o conto de Dalton Trevisan como pornográfico ou erótico também se afasta da realidade. Contos pornográficos se distanciam dos subentendidos inerentes à Literatura e, na maioria das vezes, são tracejados pela repetição sem criatividade e sem o tratamento artístico da linguagem. Eróticos são os que permitem regozijo em pensamentos e excitação pragmática, conquanto não descrevam integralmente as cenas de desejos.
Grande parte dos contos de Dalton Trevisan não se enquadra nem na corrente pornográfica nem na erótica, optando pelo simples retrato de figuras cotidianas urbanas: a ninfomaníaca, o homem que sofre de priapismo, a jovem que se entrega aos desejos do velho ou a professora madura em busca da sujeição do aluno.
A manifestação do cotidiano se evidencia pela superação de conflitos. O homem traído muda-se continuamente e continuamente aceita a gravidez da esposa que leva os amantes para casa e, entre as roupas do marido expostas no varal, estende cuecas pertencentes a outros homens. Idêntica superação de conflito mostra-se na retomada do caminho da jovem abusada por um grupo ou pelos transeuntes, ignorando a condição humana, deixam um homem morrer enquanto seus objetos são roubados lentamente.
O estilo e a linguagem de Dalton Trevisan ainda são invejáveis por dois motivos que o acompanham desde sua estréia em 1948 com o famigerado “O vampiro de Curitiba”: a estabilidade e a maturidade. Decorridos mais de sessenta anos de ofício da escrita, Dalton Trevisan mantém um estilo estável que o consagrou em gerações de leitores. Enquanto verificamos pulos, controvérsias, incoerências, imperfeições e contraposições em outros escritores, Trevisan exibe-se numa maturidade inacreditável, como se antes de tudo a poesia se infiltrasse em seus enredos curtos.
Apenas por esses motivos, Dalton Trevisan é, sem sombra de dúvida e sem medo de errar, o maior contista brasileiro do século XX, ainda em plena e invejável atividade no XXI. Sua obra, também lançada em edição de bolso a preços acessíveis, pode ser encontrada nas boas livrarias. Não indico um livro específico – porque a obra estável e madura nos permite ler qualquer conto –, mas sugiro aos aspirantes a escritores e aos leitores em atividade que procurem conhecer esse grande mestre da literatura como maneira de entender a genialidade brasileira.
*Publicado originalmente na Série Dez Escritores Contemporâneos do Oeste Notícias (Presidente Prudente - SP) de 18 de dezembro de 2009.
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