Para TODAS as minhas
filhas
Voltávamos de Tarumã
quando minha mãe disparou:
- Será que eu vou
fazer falta?
Nos últimos dois
anos, especialmente depois do falecimento de Vó Isaura, meu pai conversa sobre
o fim da vida, demonstrando preocupações com o tempo e, com isso,
incentivando-me à conclusão de projetos pessoais, destacando os culturais e os
acadêmicos. Quase sempre argumenta que, em alguns anos, a mobilidade diminuirá
e as limitações aflorarão.
Quando tratam da
brevidade da vida, cada um a seu modo, Cícero e Sêneca ressaltam que precisamos
aprender a distinguir qualidade de quantidade de modo que, no pouco tempo,
busquemos sempre a qualidade. Segundo esses pensadores, mais interessante viver
cinco anos bem vividos do que cem anos infernais.
Indo pelo mesmo
caminho, o eterno Rubem Alves, apoiando-se em Roland Barthes, lembra-nos que,
na vida, muito mais do que o saber, precisamos apreciar o sabor. Não basta
falar inglês – que é o saber – se você não pode usar o idioma para atividades
prazerosas, ouvir ou cantar música, assistir a filmes ou peças de teatro ou se
perder em Charles Dickens, Oscar Wilde, Virginia Woolf, Robert Louis Stevenson,
Edgar Allan Poe ou Arthur Conan Doyle, conhecer Nova York, Londres ou Dublin.
Música, teatro, cinema, literatura e viagens são o sabor da vida.
Depois da pergunta de
minha mãe, passei a refletir sobre o tempo. Quanto tempo temos? O que ficará no
coração? O que se guardará na memória?
O coração – volto a
Rubem Alves – guarda o que amamos. O tempo que temos na vida é o suficiente
para descobrir o que e quem somos e, depois, apostar as energias em projetos. E
a memória – tão estudada por intelectuais da filosofia, da literatura, da
história e da psicanálise – inevitável e aleatoriamente, sem termos comando
sobre ela, guardará o que desejar, selecionando cenas, montando filmes – curtos
ou longos – do que vivemos ou desejamos ou deixamos de viver, resgatando sons e
imagens, procurando odores e olores.
Se, ao fim desta
jornada, eu puder mandar em minha memória, quero que ela se encha de coisas que
DERAM sabor à minha vida:
- Regis, Vó Laura, Vó
Isaura e eu espremidos no banco de trás e a senhora, painho e Jovian dividindo
o banco da frente de nosso Chevete 1982, placas CC 5757, voltando de Lucena/PB
ou de Alagoa Grande/PB ou indo para Recife ou Barreiros/PE;
- Número Um escapando
para a rua ou dando cambalhota ao reconhecer o carro dobrando a esquina;
- Vó Laura passando a
tarde crochetando, indo para a casa de Iaiá, de Marinalva ou de Fátima;
- Vó Isaura
plantando, arrancando matos, cuidando de galo, galinhas e perus no quintal da
casa da Rua Monte Castelo;
- Jovian, Regis e eu
brincando na Rua São Paulo de “Pai da Rua”, de “Garrafão” ou de “Peão”, jogando
futebol, correndo desesperadamente atrás da bola de vôlei antes que Fátima,
irritada pelo incômodo, a rasgasse em cinco partes, gritarias por causa de
bicicleta, conversas inúteis, risos provocados, fim da tarde, compra do pão na
Padaria Novo Mundo;
- Vó Isaura tentando
consertar a televisão em preto e branco para que pudéssemos assistir ao jornal
e à novela;
- As reuniões do
grêmio na Escola Estadual Maria Honorina Santiago, com painho coordenando
nossos objetivos e respaldando nossos sonhos e projetos de atividade política
estudantil;
- Jovian e eu correndo
dos bezerros que escaparam no caminho da Levada, quando substituímos o trajeto
do hospital Ceslau Gadelha, voltando da Escola Normal;
- Vó Laura e Vó
Isaura reclamando de reumatismo e de falta de apetite, mas nunca se recusando a
bater perna ou a montar um prato de almoço atrás do qual praticamente
desapareciam;
- Vó Laura nadando na
praia;
- Vó Isaura com medo
de entrar no mar e esperando o gás da Coca-Cola sair para evitar ficar
“bêbada”;
- Painho acordando às
cinco horas da manhã para, no terraço, com os pés pendurados no suporte da
mesa, datilografar os estatutos dos grêmios e, mais tarde, da USES (União
Santa-ritense de Estudantes Secundaristas);
- Painho e Montgomery
embrulhando a máquina de datilografia que, apenas no aniversário ou no dia dos
pais, painho saberia que era um presente para ele;
- Painho entrando em
casa com um som – hoje já desaparecido – em que cabiam sete cd’s e trazendo, de
presente de dia das mães, uma coletânea de Agnaldo Timóteo e Ângela Maria;
- Painho indo pegar
emprestada a Kombi de Bernardino para que ele, eu, Regis, Jovian, Vó Laura, Vó
Isaura, Alan, Junior e Tia Fátima passássemos o ano novo com a senhora no
Hospital Santa Paula. Painho dirigindo a Kombi, Vó Laura e Vó Isaura sentadas
ao lado dele, Tia Fátima acomodada num banco de madeira, segurando um barbante
que fechava a porta sem trava, Regis, Jovian, Alan, Junior e eu rolando de um
lado ao outro naquele veículo de entrega de mercadorias do mercadinho;
- Dine, Neves e a
senhora tentando abrir a porta da casa de praia de Teka;
- A senhora indo
comprar frango na feirinha para o almoço de domingo;
- A gente comprando o
material escolar;
- A senhora
reclamando comigo por meus gritos e berros no seu consultório;
- As idas ao Teatro
Santa Rosa;
- Jovian desocupando
meu velho baú e, imitando o que tinha visto no teatro, retirando de dentro dele
aviões de papel lançados em todas as direções, pulando de um lado a outro,
fazendo caretas e sorrisos.
O início de minha
adolescência coincidiu com o início da nova vida no interior de São Paulo. Outras
vidas se plasmaram diante das nossas. Se, ao fim desta jornada, eu puder mandar
em minha memória, quero que ela se encha de coisas que hoje DÃO sabor à minha
vida:
- Seus protestos
inconformados quando falei que não mais veria Emily pelo fato de ter acabado o
namoro com a mãe dela e, quase dez anos depois, confidenciar-me que a incluíra
em suas orações;
- Suas tentativas de
aproximação de Natália quando, ainda pequena, apareceu pela primeira vez em
casa, enrolada nos braços da mãe em uma manta felpuda;
- Seu choro de emoção
por presenciar o nascimento de Isaura;
- Seu choro de
desespero quando Jovian sofreu o acidente de carro em São Paulo, fugindo de
bandidos;
- Seus agradecimentos
a Regis por ter consertado seu telefone, ter aberto uma conta no facebook ou ter
postado as fotos de seus trabalhos artesanais nas redes sociais;
- Painho
debruçando-se sobre os problemas comunitários de Maracaí, discutindo questões
importantes no Sindicato dos Servidores Municipais ou na UMAC (União Maracaiense
de Associações Comunitárias), ensinando-nos diariamente o exercício da
serenidade e a prática do perdão.
Em algum ponto desse
vasto futuro, fatalmente chegará o momento de os corpos fraquejarem, os
espíritos buscarem a liberdade e a vida eterna, tão consagrada nos textos
bíblicos cujas palavras ecoam na Igreja ou no Centro Espírita Paz, se
transformar em realidade.
Saberei da ruptura da
vida terrena pela falta de conversar com a senhora e painho ao almoço ou ao
jantar, de sentir-me sozinho nas caminhadas de fim de tarde, da ausência das
inúmeras repetições da mesma história nos nossos deslocamentos entre Maracaí e
Assis, Maracaí e Tarumã ou Maracaí e Paraguaçu Paulista, dos seus choros com
saudades de Santa Rita ou de suas lamentações quando, em Santa Rita, deseja
imediatamente voltar a Maracaí, da falta do recebimento de mensagens, fotos e
vídeos pelo zap, de seu trabalho de pintura, de bordado e de outras artes até a
madrugada, de seus infinitos comentários sobre tudo e sobre todos, da senhora
colocando o almoço ou de painho separando o iogurte e o pão do seu café da
manhã, das risadas em incontáveis momentos...
Muitos momentos
surgirão nos quais, assim como aquele personagem de João Cabral de Melo Neto,
ansioso por saltar da ponte da vida, desequilibrar-me-ei diante dos problemas e
dos dissabores. Nesses momentos, por mais que as sombras queiram invadir o
campo de luz ou por mais que eu me perca nos caminhos sem chegar a destino
nenhum, lembrarei do verso de Cecília Meireles, repetindo para mim mesmo: não estou
perdido, mas desencontrado. E, tenho certeza, de que, diante da dor da
ausência, tentarei me encontrar de todas as formas para que, como refletiria
Adélia Prado, eu me recorde do passado e, diante de todas as benesses obtidas
neste plano espiritual, eu possa repetir: “e acreditei sem nenhum sofrimento.
Louvado sejas!”.
À noite, os espaços
vazios – deixados pela senhora e por painho – à mesa das refeições, ao
computador, no ateliê ou no sofá denunciarão que metade de minha vida
encerrou-se mais rapidamente do que o atrito da língua com o algodão doce e,
nesse tempo tão curto, todos os momentos se foram sem que eu pudesse retê-los.
Quando me vejo
mandando mensagens, áudios e vídeos para minhas filhas mais velhas e para as
mães das filhas mais novas, agradecendo por serem minhas filhas, apenas repito
o que a senhora faz comigo, Regis e Jovian ao nos agradecer por sermos seus
filhos.
Sou muito grato por
ter a sorte de ser seu filho assim como TODAS AS MINHAS FILHAS, mesmo não tendo
consciência disso, também devem agradecer de alguma maneira. Se, ao fim da
vida, cada filha conseguir ser 5% do que a senhora é, cada filha terá alcançado
o mesmo destino das grandes mentes que, em algum momento, descobrirão a cura do
câncer, da AIDS, do Alzheimer ou do Parkinson.
Um dia – em algum
ponto desse vasto futuro – meu cartão de ponto nesta vida se preencherá. Meu
embarque ocorrerá pontualmente no horário marcado. Ainda não sei meu destino,
mas espero que, entre uma e outra troca de ônibus, possa encontrar a senhora e
painho em alguma estação. Provavelmente ficarei em silêncio pelo impacto de
vê-los novamente, mas, se naquele momento de emoção, me for concedida a
consciência da palavra, tentarei reunir minhas forças para balbuciar: obrigado
por tudo!
Como a senhora já
frisou inúmeras vezes, quem tem sua mãe que cuide dela. Obrigado por ser minha
mãe! Ontem, hoje e sempre!