Desde que virara
coroinha, a mãe falava pausadamente daquele que, nove meses de gestação e dez
anos de vida, transformara-se em seu orgulho. Seguia os passos de Francisco de
Assis, santo dos animais e conhecido por ter abandonado o patrimônio familiar
para se dedicar às causas do espírito. Transbordava de felicidade quando ele transportava
os apetrechos da celebração eucarística.
O menino não
precisava seguir os passos do padre, mas se aprendesse a colocar em primeiro
lugar bondade, abnegação e amor ao próximo, tornar-se-ia um homem pacífico no
mundo de violências. Talvez por essa razão incentivasse-o a procurar a melhor
maneira de dar resposta às situações mais incomuns.
Exemplar, lavava o
próprio prato, recolhia suas roupas, arrumava o quarto, organizava os cadernos
e os livros, chegava vinte minutos antes da catequese e, quando indagado a
respeito de trecho bíblico, erguia o braço, respondendo palavra por palavra do fragmento
solicitado.
A mãe comentava com
as amigas da antiga faculdade da convicção de que, acontecesse o que
acontecesse, o filho jamais seguiria o erro e de sua boca nunca sairia palavra
que não exalasse doçura.
A formação religiosa do
primogênito encaminhava-se bem até os festejos de fim de ano quando o amigo de
carro de ar-condicionado resolveu visitar a família. Entre uma conversa e
outra, a ideia de tomar sorvete no Parque do Povo. O grupo dividir-se-ia em
dois automóveis já que, ao total, somados o amigo, a mãe e a amiga do amigo aos
dois filhos, ao marido e a ela, totalizavam sete pessoas.
Fim de tarde
tranquilo se o amigo não a tivesse angustiado com a dúvida: ele preferiria a família
sem ar condicionado ou um estranho com ar condicionado?
À saída, o menino
hipnoticamente encaminhou-se ao carro do estranho. A mãe gritou: - Para onde
você vai? Nosso carro está aqui.
- Vou no carro do
tio, sintetizou o menino, sem estacar o passo.
- Você vai abandonar
sua família? O que vai ser da gente sem você?
Ele parou. Virou-se. Depois
de alguns segundos:
- Deus proverá – e
continuou arrastando os chinelos até o carro do “tio”, estimulando o irmão mais
novo a pegar o melhor lugar.
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