Rumava ao trabalho
numa cidade trezentos e oitenta quilômetros de casa quando, estacionando num
posto para completar o tanque, comprei jornais numa banca improvisada. Sentei-me
ao restaurante, pedi suco de laranja. As notícias se repetiam e, algumas vezes,
incrementavam o rol informando mediocridades sobre jogadores de futebol,
modelos, atores, músicos, amantes de ricaços, viúvas de milionários e brigas em
torno de mulheres que, nas entrelinhas, se candidatavam às mais fúteis do
século.
O título em letras
garrafais de uma matéria na página política despertou-me a atenção: “Câmara de
Vereadores vota projetos importantes”. Obviamente três quartos do mundo e eu
desconfiamos dos políticos profissionais e, especialmente, dos vereadores com quem,
nas cidades pequenas, facilmente esbarramos nas ruas, na agência bancária, na
fila dos correios ou do hospital. À falta de assuntos mais interessantes,
deslizei os olhos e, nas primeiras linhas, me surpreendi.
A jornalista
destacava a aprovação de projetos de grande impacto no orçamento do próximo
ano, entre eles, aumento de vinte e cinco por cento aos servidores públicos
municipais (sendo quarenta e dois por cento no caso de professores e
funcionários da saúde) além de estabelecimento de plano de carreira com direito
a afastamento remunerado para cursar mestrados e doutorados, isenção de IPTU
para todos os imóveis – grandes, pequenos, médios, comerciais, industriais ou
residenciais, nos bairros pobres ou ricos – diminuição de secretarias e dos
salários dos secretários e, pasmei, quase engolido o copo de suco de laranja,
corte total das remunerações dos vereadores. Ou seja, cidadão que desejasse
ocupar vaga no legislativo municipal assumiria a bomba desde já consciente que
não levaria um só centavo dos cofres públicos. Li a notícia mais três vezes,
solicitei ao caixa que lesse o parágrafo bem escrito e, já sentado em meu
carro, mal compreendia como a cidade de poucos mais de trinta mil habitantes,
enterrada no sertão paulista entre nada e coisa nenhuma, despontava com tal
brilhantismo na esfera pública nacional e – por que não afirmar com muito
orgulho? – internacional. Aqueles vereadores – planejavam racional e
estrategicamente a aplicação de recursos – tinham ajustado que, dali em diante,
nenhum centavo pagaria publicidade: jornais, revistas, agências de publicidade,
internet e rádios à míngua.
Guardei
cuidadosamente o exemplar na intenção de assombrar meus alunos na aula noturna
e, sem mais perder tempo, voltei à estrada. Já no hotel, sentei-me à mesa, li
novamente a matéria e, com caneta vermelha, ressaltava os pontos que virariam
temas de nossos debates na turma de gestão pública, integrada tanto por jovens
egressos dos cursos de administração pública, contabilidade pública e direito
público quanto de profissionais tarimbados de prefeituras, câmaras de
vereadores, fundações, autarquias e demais órgãos que integravam os governos da
região.
A movimentação do
legislativo da pequena cidade serviria de exemplo de boa gestão e, para evitar
que a leitura ficasse solta no ar, vesti-me, atravessei a rua e tirei cópias do
texto de maneira que, durante a aula, os alunos acompanhassem as reflexões e,
ao fim dela, levassem as brilhantes idéias para suas cidades de origem. O dono
da papelaria – onde aguardava as fotocópias – entusiasmou-se com a notícia
prometendo conversar com o amigo radialista que, defendendo a idéia em seu
programa, fora tachado de louco pelos sanguessugas do dinheiro do povo.
À noite, entrei muito
contente na sala da aula, escrevi algumas palavras no quadro-negro, estimulei
debates, distribuí a matéria, lida rapidamente, seguida de grande alvoroço. Já
tínhamos correntes que defendiam ou se posicionavam favoravelmente ao
nepotismo, lei da ficha limpa, eficiência de serviços, aplicação transparente
de recursos públicos, participação popular, meios de fiscalização cidadã
quando, esbaforido, aluno da cidade em que ocorrera a revolução dos vereadores,
por sinal, funcionário do legislativo, instado a se manifestar, disse-nos que
“aquelas crianças” eram realmente geniais.
- Crianças? Perguntei.
- Sim, professor.
Crianças. O jornal não estampou aqui, mas essas são as decisões aprovadas pela
Câmara de Vereadores Mirim, agrega crianças de oito a doze anos.
*Publicado
originalmente na coluna Ficções,
Caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente –
SP) de 30 de novembro de 2012.
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