Alguns professores de Literatura, de redação ou de oficinas literárias indicam Graciliano Ramos como paradigma de escrita concisa e fluente. Os alunos mais ávidos em pertencerem aos célebres grupos de bons escritores lêem a obra completa procurando elementos de densidade psicológica, de coesão, de coerência, de pontualidade e escassez de palavras para, de algum modo, ensaiá-los em seus próprios textos.
Geralmente festejado por “Vidas Secas” e, em seguida, por “São Bernardo”, o romancista possui uma bibliografia rica e diversificada que passeia pela literatura infantil e pelas memórias. Diferentemente do contista Dalton Trevisan, canonizado pela concisão, pelo uso morigerado de palavras, pela alta carga poética e pelo estilo maduro e quase imutável, Graciliano Ramos cria narradores consistentes.
Embora as comparações entre “Vidas Secas” e “São Bernardo” se espalhem exaustivamente em algumas leituras, a linguagem empregada no primeiro destoa do segundo pela maneira – que além de concisa é – seca, direta, objetiva e estupidamente natural. Enquanto a vida de Fabiano e a da família são esmiuçadas nos limites do sofrimento da sobrevivência, as ações de Paulo Honório desenrolam-se em um caso de amor que, repleto de peculiaridades e controvérsias, segue o modelo comumente utilizado nos grandes romances recorrendo-se aos entreveros psicológicos que tanto engrandecem “São Bernardo”.
Pela leitura desses dois trabalhos, solicitados em alguns exames vestibulares, estabelecem-se diferenças na linguagem fluida e apurada. Essa mesma linguagem já não pode ser encontrada em “Infância”.
A seca, aturdida e intragável composição sintática de “Infância” contrastam com o enredo focado em um protagonista aparentemente simplório que não enfrenta nem problemas insolúveis nem grandes questionamentos intelectuais, espirituais ou existenciais. Os leitores (experientes ou profissionais, na acepção que lhes emprega o crítico literário Wilson Martins) perceberão na linguagem truncada um importante elemento constitutivo da narrativa na medida em que grandes empecilhos se manifestam não mais para o personagem-menino que vivencia o comércio do pai, as conversas dos clientes, as experiências ou devaneios amorosos, mas para o narrador que rememora e reescreve dolorosamente sua imagem e suas impressões juvenis.
Décadas antes, Simões Lopes Neto valera-se de um narrador-personagem densamente caracterizado pelo vocabulário do interior gaúcho assim como, posteriormente, Osman Lins apresentaria sua maestria na concepção de trama indiscutivelmente angustiante, decorrência do rechaço e da regurgitação de sentimentos díspares e incongruentes.
A grandiosidade de Graciliano Ramos é evidente, porém se modela um equívoco ao tentar uniformizar sua linguagem como unidade de obra. Machado de Assis – segundo Antônio Candido, o maior escritor brasileiro de todos os tempos – geralmente se destaca pelo estilo maduro e singular que atingiu, contudo não se pode deixar de observar que idêntica linguagem aplicada ao romance e à crônica realça as qualidades do primeiro e cansa a leitura da segunda.
Daí que a fluência do velho Graça se manifesta na profundidade de uma mensagem baseada numa linguagem aparentemente simples, superficial, coloquial.
A maneira com que o narrador repassa suas impressões e emite suas opiniões desencadeia uma série de efeitos que facilitarão ou prejudicarão a recepção de um ou outro livro o que, na prática, pode demonstrar que, em questão de crítica e de público, “Vidas Secas” e “São Bernardo” ainda parecem as obras mais elogiadas do escritor alagoano que, segundo consta, imprimia uma vertente literária da linguagem mesmo quando redigia suas centenas de trabalhados burocráticos no serviço público.
Um dos nomes mais lembrados do regionalismo pós-semana de arte moderna, Graciliano Ramos desfila no mesmo patamar de grandes figuras do porte de José Lins do Rego, Raquel de Queirós ou Jorge Amado, entretanto supera a todos ao concentrar suas atenções na composição sintática, provavelmente esperando que os efeitos esboçados se manifestem não apenas pelo sofrimento econômico, social, político, econômico e religioso descrito, mas principalmente pela força da linguagem – despida de adjetivos em alguns casos – na concepção imagética e no natural desenlace orgânico repulsivo do leitor.
*Publicado originalmente no Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 13 de novembro de 2009.
Vicentônio Regis do Nascimento Silva (www.vicentonio.blogspot.com) é tradutor e crítico literário.
Um comentário:
Excelente artigo
luisa Ramos, de prudente
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