Ao mais brilhante oftalmologista do estado de São Paulo, Eduardo Andreghetti
A fila grande me desencorajou a esperá-la de modo que, assim que encontrou algumas colegas, despedi-me informando-lhe que a esperaria na praça em frente da Diretoria de Ensino.
Peguei a cadeira de praia no porta-malas, estiquei-a na mesa mais distante dos jogadores inveterados de dominó e de baralho, puxei um livro de Moacyr Scliar e, embaixo da perna direita, prendi um do Rubem Alves.
Quando chegava ao fim da quinta ou sexta crônica, um homem de óculos fundos de garrafa – semelhantes aos meus – sentou no banco ao lado do qual havia pendurado minhas pernas e perguntou desde quando gostava de ler. Achei a intervenção inconveniente – jamais se deve parar um leitor nas proximidades do clímax narrativo. Provavelmente desde os treze anos, embora sem método nem sistema.
- Sou mineiro, disse-me mansamente. Todas as tardes venho jogar dominó com aquele pessoal ali. Apontou para um grupo de quatro senhores que gritavam, berravam e trocavam acusações de roubos, furtos, assaltos e trapaças no manuseio das peças.
Voltei minha concentração ao livro quando, menos de três linhas, interrompeu-me novamente:
- Eu estudei em Minas. Só até o quinto ano do ginásio. Aprendi muita coisa. A ler, a escrever. Não sou como aqueles que falam que sabem ler e escrever, mas que só sabem assinar o nome.
Inquieto, pensei em levá-lo à mesa dos amigos.
- Nunca conheci ninguém que ficasse assim, lendo. Lendo numa praça? Ninguém faz isso no mundo.
Corrigi-o. Não era incomum encontrar pessoas tomando chá, café ou cerveja nos restaurantes de Porto Alegre, Buenos Aires ou Montevidéu e, em vez de se sentarem com amigos para tocar música ou assistirem a algum jogo esportivo na televisão, abrirem livros.
- É mesmo?
Fez cara de espanto como se desenterrasse alguma lembrança.
- Só conheci um menino que fazia isso. Lia em qualquer lugar. Estudou comigo em Minas e a professora disse que não tinha futuro. A professora cansava de gritar, de bater com o caderno na cabeça dele, de dizer que era burro, que precisava aprender a escrever. Escrevia tudo errado.
Recobrou o fôlego:
- Depois que colocou óculos – apontou para os óculos deles e depois para os meus – melhorou um pouco. Ficou mais rápido para copiar, mas continuava escrevendo errado. A professora dizia que aquele “fundo de garrafa” jamais seria nada. Se não aprendera a escrever até ali, nunca mais aprenderia.
O desconhecido continuava o encadeamento de suas recordações:
- Naquele tempo as coisas eram muito caras. Lembro que meu vendeu um terreno para comprar uma televisão preto e branco. O pai desse meu colega vendeu um cavalo de raça para pagar a consulta no oculista e comprar os óculos fundos de garrafa. Hoje, qualquer um tem óculos fundos de garrafa.
Finalmente percebeu minha impaciência. Levantou-se:
- Nunca mais ouvi falar nesse meu colega. Não sei se arrumou algum emprego, o que fez da vida. Ele tinha até nome de fruta.
- Emílio Abacate? Perguntei.
- Não.
- Francisco Jabuticaba? Carlos Abacaxi? Cristiano Tomate? Valfredo Banana? Clovis Laranja? Valter Mangaba? Luis Lima Limão? Tereso Pimentão? Fernando Jiló? Adriano Gavião? Osvaldo Aranha? Ronaldo Ganso Azul?
Balançou negativamente a cabeça. Marchava para os amigos quando, já entretido em minha leitura, retornou, baixou meu livro:
- Rosa. O nome do meu colega era Rosa. João Guimarães Rosa.
*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 24 de setembro de 2009.
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