sexta-feira, 11 de março de 2011

PROVOCAÇÃO DE UMA BALZAQUIANA

Você por acaso já conheceu alguma mulher que não esteja cônscia de suas obrigações, que não defenda com unhas e dentes os pontos de vista aos quais chegou sozinha, que assuma seus erros praticados durante situações em que o sangue quente tomou conta da cabeça, que acolha as críticas dirigidas aos filhos, que se aventure sem se importar com preconceitos?



Embora se declarem modernas, liberais e independentes, essas perfeições estéticas que desfilam nas ruas, nas escolas, nos hospitais, nos clubes ou nas livrarias rejeitam o rótulo de meninas. Lembro que, outro dia, remexendo as prateleiras numa das estantes de Literatura brasileira, escutei um casal, ao meu lado, discutindo acaloradamente os problemas da relação. Entre as várias frases lançadas furiosamente pela parceira, que mudava de lugar os livros de cunho religioso, algumas se incrustaram na lembrança:



- Eu não sou uma menina! Sou uma mulher! Sou uma mulher! Você consegue entender isso? Sou uma mulher! Entendeu?



O parceiro ensaiou alguns beijos, tentativas frustradas de abraço, alinhou o cabelo atrás da orelha da mulher que continuava insistentemente mudando os livros de lugar, respiração ofegante. Se o relacionamento se desgastava ou se ela era a “outra” exigindo o companheiro por inteiro? Uma pergunta que não sei responder.



O gerente apareceu: não gostaria de água com açúcar? Ela soltou os livros e saiu fervendo. O parceiro desculpou-se e disparou pelos corredores do shopping.



- Coisas de casal, me disse, enquanto passava minha compra pelo aparelho de registrar preços.



Encostei-me ao balcão da cafeteria, optei por um Capuccino médio, um café expresso e um copo de água mineral sem gás. Pagava os pedidos quando uma voz, atrás de mim, perguntou se Dalton Trevisan, autor dos contos que adquirira, era um de meus escritores favoritos. Uma mulher de metro e sessenta de altura, olhos matreiros, cabelos lisos e pretos (como as mulheres de cabelos lisos, pretos e compridos me hipnotizam!), calças pretas, camisa branca e tênis segurava uma sacola da mesma livraria. Fiz algumas considerações sobre a genialidade de Dalton Trevisan enquanto ela pagava um Mocha e, ao perceber, já conversávamos sobre conto, crônica e poesia.



Para encerrar nossa conversa, pedi mais dois cafés pequenos. Perguntou se estava próximo do casal que discutira na livraria. Disse-lhe que a parceira – poderia ser a “outra” ou alguém com desejos maiores de propriedade e egoísmo – não se contentava com pouco: não queria ser tratada como menina, mas como mulher.



Minha interlocutora compreendia a situação. Argumentou que todas as mulheres deveriam se unir para expulsar os crápulas de suas vidas. Confidenciava o relacionamento com um homem casado que prometera, milhares de vezes, livrar-se da esposa para ficar com ela. Ele se divorciou?



- Você é uma mulher ou uma menina? Perguntei para atiçá-la.



O sorriso desapareceu, as sobrancelhas se eriçaram. Vislumbrei a repetição da cena da livraria, mas protagonizada por dois desconhecidos. Antes que soltasse a rajada de impropérios:



- Melhor um corpo de trinta anos com a leveza, o desprendimento e a entrega de uma menina de quinze do que uma mulher de trinta com o espírito rabugento de quem mal ama, não é amada ou tem medo do amor, cercando-se de clichês, de detalhes e de limitações que impedem a felicidade.



Disse-me que não aceitava provocações de um machista de terceira categoria. Jamais se renderia aos meus caprichos. Como a protagonista do escândalo, era uma mulher, jamais seria uma menina.



Vaguei por algumas lojas, comprei chocolates, passei na casa de câmbio para comprar um euro da sorte, experimentei duas gravatas e, saindo ao estacionamento, uma jovem de cabelos pretos, lisos e compridos, vestido colorido, geralmente usado em festas juninas, brincos vermelhíssimos e grandes, cabelos em dois rabos de cavalo e sandálias transparentes veio em minha direção, olhos baixos, sacolas abarrotadas. Era minha interlocutora do café.



- Corpinho de trinta com leveza de quinze?





*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 11 de março de 2011.

2 comentários:

aldenice disse...

hummmm

Alice e seus Desejos disse...

Acabei de ler sua cronica...e como a interlocutora do seu conto também gostaria de ter o corpo de trinta e a leveza da menina...