sexta-feira, 25 de março de 2011

O AMANTE DE LADY CHATTERLEY

Uma convicção reinava entre os freqüentadores do Café da Glória: os fins de tarde não seriam fins de tarde se um homem que perdera a visão antes dos cinqüenta anos, não chegasse segurando sua bengala, se sentasse à terceira mesa do lado esquerdo e pedisse um queijo quente com um tipo de café. Segundo alguns freqüentadores e muitos curiosos, o homem sem visão ingerira todos os tipos de líquido disponíveis no estabelecimento de modo que, ao desejarem uma sugestão quase profissional, que levasse em conta aroma, safra, textura e eflúvios, recorriam ao cliente mais ilustre que, sem cerimônias, esbanjava seu conhecimento.



Um amigo, freqüentador do Café da Glória e pelas mãos de quem fui introduzido ao hábito de apreciar o fim do dia ingerindo cafeína, notou uma espécie de solidão, de saudade, de tristeza saindo dos suspiros do homem sem visão.



Em um primeiro momento, imaginei que meu amigo ensaiasse uma maneira de criar uma galhofa, mas aos poucos observei também que o homem sem visão, depois que se sentava à mesa, mantinha-se cabisbaixo um bom tempo. Perguntei a garçonete se ele tinha algum problema. Displicente, respondeu-me que trabalhava ali há três anos e meio e, sem exceção, suspirava nos fins de tarde.



Meu amigo e eu tomamos coragem, nos aproximamos, puxamos conversa e, ainda receosos, indagamos do motivo da tristeza.



- Vocês acham que sou triste? Virou a cabeça para meu lado, como se pudesse me enxergar.



O homem sem visão apurou os ouvidos, silenciou alguns segundos. Desejava saber se a pessoa cinco mesas atrás era uma mulher idosa usando um vestido apertado ou um homem gordo. Tratava-se de uma mulher usando um vestido apertado. Por um instante, sinalizei ao meu amigo, sentado à minha frente, lembrando de Al Pacino em “Perfume de mulher”.



- Você está sinalizando que estou louco?



Contei-lhe do filme. Ainda enxergava quando estourara nas bilheterias. Sentia-se mais ou menos na mesma condição do Coronel reformado, protagonista da trama. Desejos reprimidos, angústias à flor da pele, amores extintos.



- O cara do filme, bebeu o resto do café, viaja para Nova Iorque, janta em um bom restaurante, dirige um carro invejável e faz amor com uma mulher formidável. Depois, quer morrer. Entretanto, a vida lhe dá mais uma chance.



O suspiro sobressaiu. Um homem melancólico.



- O senhor quer fazer amor com uma mulher formidável? Disparou meu amigo, baixando o tom de voz para avivar a audição e estreitar uma tentativa de intimidade.



- Não precisava fazer amor, apenas conversar com ela. Oito ou nove anos atrás, quando tive esse problema na vista, tinha uma namoradinha. Vocês sabem, não sabem? Sempre amei minha mulher – e a amo até hoje – mas tinha uma namoradinha. Nunca mais falei com ela. Se eu pudesse falar com ela, apenas umas palavras. Umas palavras já ensaiadas. Umas palavras apenas... Umas palavras apenas para dizer que não a esqueci. Entendem?



- O senhor sabe onde ela mora? Meu amigo, interessado.



- Tenho o telefone. Se ela ainda estivesse no mesmo telefone, umas palavras. Umas palavras apenas. Umas palavras e nada mais. Eu posso pagar pelo telefonema.



Fomos à calçada. Que mal ajudar um cego? Conversaria, levaria um fora ou seria ignorado. Falou o número. Pedimos para falar com a mulher. A filha havia atendido e chamava a mãe aos berros. Em pouco tempo, pegou o telefone. Meu amigo pediu que esperasse um momento. Contou do problema da visão, do sufoco de guardar o segredo, da solidão, da saudade.



Disse-lhe que não a via, mas sentia o perfume, o gosto dos lábios, a maciez dos ombros... Cheguei a pensar que era uma das coisas mais bregas do mundo: clichês recitados por um cego. Quando terminou, cantou “She”, de Charles Aznavour. Inglês, péssimo; sentimento, inigualável. Partiu, bengala suspensa no ar, como se pudesse ver o caminho. Como se pudesse correr atrás da felicidade.



Lembrei de Fernando Pessoa. Cartas de amor seriam cartas de amor se não fossem ridículas? Quando atravessou a rua, uma dúvida: será que realmente eu, olhos coloridos, via mais do que ele?



*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 25 de março de 2011.

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