quinta-feira, 24 de setembro de 2009

UM FUNDO DE GARRAFAS

Ao mais brilhante oftalmologista do estado de São Paulo, Eduardo Andreghetti

A fila grande me desencorajou a esperá-la de modo que, assim que encontrou algumas colegas, despedi-me informando-lhe que a esperaria na praça em frente da Diretoria de Ensino.

Peguei a cadeira de praia no porta-malas, estiquei-a na mesa mais distante dos jogadores inveterados de dominó e de baralho, puxei um livro de Moacyr Scliar e, embaixo da perna direita, prendi um do Rubem Alves.

Quando chegava ao fim da quinta ou sexta crônica, um homem de óculos fundos de garrafa – semelhantes aos meus – sentou no banco ao lado do qual havia pendurado minhas pernas e perguntou desde quando gostava de ler. Achei a intervenção inconveniente – jamais se deve parar um leitor nas proximidades do clímax narrativo. Provavelmente desde os treze anos, embora sem método nem sistema.

- Sou mineiro, disse-me mansamente. Todas as tardes venho jogar dominó com aquele pessoal ali. Apontou para um grupo de quatro senhores que gritavam, berravam e trocavam acusações de roubos, furtos, assaltos e trapaças no manuseio das peças.

Voltei minha concentração ao livro quando, menos de três linhas, interrompeu-me novamente:

- Eu estudei em Minas. Só até o quinto ano do ginásio. Aprendi muita coisa. A ler, a escrever. Não sou como aqueles que falam que sabem ler e escrever, mas que só sabem assinar o nome.

Inquieto, pensei em levá-lo à mesa dos amigos.

- Nunca conheci ninguém que ficasse assim, lendo. Lendo numa praça? Ninguém faz isso no mundo.

Corrigi-o. Não era incomum encontrar pessoas tomando chá, café ou cerveja nos restaurantes de Porto Alegre, Buenos Aires ou Montevidéu e, em vez de se sentarem com amigos para tocar música ou assistirem a algum jogo esportivo na televisão, abrirem livros.

- É mesmo?

Fez cara de espanto como se desenterrasse alguma lembrança.

- Só conheci um menino que fazia isso. Lia em qualquer lugar. Estudou comigo em Minas e a professora disse que não tinha futuro. A professora cansava de gritar, de bater com o caderno na cabeça dele, de dizer que era burro, que precisava aprender a escrever. Escrevia tudo errado.

Recobrou o fôlego:

- Depois que colocou óculos – apontou para os óculos deles e depois para os meus – melhorou um pouco. Ficou mais rápido para copiar, mas continuava escrevendo errado. A professora dizia que aquele “fundo de garrafa” jamais seria nada. Se não aprendera a escrever até ali, nunca mais aprenderia.

O desconhecido continuava o encadeamento de suas recordações:

- Naquele tempo as coisas eram muito caras. Lembro que meu vendeu um terreno para comprar uma televisão preto e branco. O pai desse meu colega vendeu um cavalo de raça para pagar a consulta no oculista e comprar os óculos fundos de garrafa. Hoje, qualquer um tem óculos fundos de garrafa.

Finalmente percebeu minha impaciência. Levantou-se:

- Nunca mais ouvi falar nesse meu colega. Não sei se arrumou algum emprego, o que fez da vida. Ele tinha até nome de fruta.

- Emílio Abacate? Perguntei.

- Não.

- Francisco Jabuticaba? Carlos Abacaxi? Cristiano Tomate? Valfredo Banana? Clovis Laranja? Valter Mangaba? Luis Lima Limão? Tereso Pimentão? Fernando Jiló? Adriano Gavião? Osvaldo Aranha? Ronaldo Ganso Azul?

Balançou negativamente a cabeça. Marchava para os amigos quando, já entretido em minha leitura, retornou, baixou meu livro:

- Rosa. O nome do meu colega era Rosa. João Guimarães Rosa.

*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 24 de setembro de 2009.

sábado, 19 de setembro de 2009

MARITACAS E IPÊS

Quando chegou aos noventa anos, o crítico literário Antônio Candido abriu as portas de sua residência paulistana ao Dr. Gilberto Figueiredo Martins, vinculado ao Programa de Doutorado em Literatura da Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus de Assis (SP).

Os noventa anos de Antônio Candido coincidiam com os cinqüenta de fundação da UNESP – Assis na qual, em 1958, o então professor de sociologia da Universidade de São Paulo rompia com os preceitos de Durkheim, Weber, Marx e Comte para se inteirar de fatos, teorias, análises e criações literárias às quais se dedicava sistematicamente desde a juventude. Uma frase sua me chamou a atenção: a diferença entre os que ensinam Literatura e os que a amam. Para ensinar Literatura são necessários procedimentos formais: faculdade, método e diploma. Para amar a Literatura apenas a leitura.

Enquanto os espectadores aplaudiam o término da entrevista, lembrei-me de um fragmento de Rubem Alves em que o ensaísta diferencia metaforicamente professor e educador, caracterizando o primeiro pelo desempenho regular do ofício e destacando o segundo pelo exercício pleno do amor na prática educativa, em qualquer lugar e a qualquer tempo.

O discurso de ambos os intelectuais apenas demonstram que somos capazes de desempenhar uma profissão e nos dedicarmos a outras atividades. Podemos trabalhar na educação sem abdicar do futebol no fim de semana, atuar na construção civil ou na agricultura sem deixar de se maravilhar com jogos de carta ou empregar-se no comércio sem abrir mão das noites de pintura, de música, de teatro.

Provavelmente prescrito nas entrelinhas das falas e palavras de Antônio Candido e de Rubem Alves, o grande problema não está em exercer uma profissão e se dedicar a atividades paralelas, mas em cumprir um dever sem vontade, sem tesão, sem vida. O professor de Literatura que sobrevive do magistério e detesta ler tem grandes chances de afastar futuros leitores dos livros.

O engenheiro revoltado que constrói pontes, edifícios ou estradas, porém gostaria de ensaiar música em alguma mesa de bar, arriscará a vida de pessoas que lerão Cyro dos Anjos ou dormirão quando os alicerces de edifícios construídos por ele se romperem bruscamente.

Outro dia chegava a casa de minha namorada quando, olhando para o chão repleto de folhas, olhei para cima e vislumbrei seis maritacas caminhando nos galhos de um ipê. Elas arrancavam as folhas, soltavam-nas e voltavam a arrancar outras.

Então lembrei de Antônio Candido e de Rubem Alves. As maritacas são Amantes da Literatura e Educadoras: mesmo tendo a chance de conseguir alimento fácil e abrigo confortável, jamais se esquecem de desempenhar admiravelmente o pequeno e indispensável papel que lhes é destinado: preparar as árvores para a primavera.

*Publicado originalmente no Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 18 de setembro de 2009.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

VIAGEM DE AVIÃO

Desde os tempos de VARIG e VASP desejava voar. O sonho de atravessar as nuvens, riscar o céu e percorrer estados e países em poucas horas era tão grande que, mesmo sem vontade de seguir a carreira militar, inscreveu-se no concurso da aeronáutica. O concurso serviu para mostrar que realmente possuía capacidade física, psíquica e intelectual para seguir qualquer carreira, menos a militar.

- Aqui não aceitamos ninguém com menos de um metro e oitenta, disse seriamente o tenente-coronel, lastimando metro e sessenta de um dos melhores candidatos que já passaram na força.

Meio inconformado, mas sem se abalar, voltou para casa e decidiu estudar todos os assuntos que tratassem de aviões e de vôo. Ouvindo a indicação de um leitor voraz, leu com interesse – e até decorar – o “Desafio orquestral”, poema sublime de Antônio Lázaro de Almeida Prado. Depois, o mesmo leitor disse que poderia aprender mais consultado enciclopédias e verbetes em livros especializados.

A consulta às enciclopédias se deu tranquilamente. Já os livros especializados desanimaram-no na medida em que apresentavam termos técnicos.

Meio desconsolado, procurou novamente o leitor voraz que lhe indicou um romance do escritor gaúcho Alcy Cheuiche sobre a vida de Santos Dumont: “Nos céus de Paris”. A biografia romanceada do pai da aviação mundial emocionou-lhe de tal forma que, lançada a edição de bolso, comprou cinco exemplares: dois para deixar de reserva, um para andar dentro da bolsa do trabalho, um na casa da namorada e o último na casa da mãe, a quem visitava quinzenalmente nos fins de semana.

O salário baixo de professor de estado e os altos custos da especulação imobiliária impediam-no de viajar de avião. As passagens, mesmo para localidades próximas, dificilmente eram vendidas a menos de oito salários mínimos de modo que, na abertura da aviação brasileira para novas empresas aéreas, comemorou com amigos, vizinhos, parentes e colegas: preços baixos e facilitados em até vinte e quatro meses no cartão de crédito, no boleto ou no cheque.

A namorada sabia que ainda não chegara sua vez de voar. Por essa razão, conscientemente deu-lhe o dinheiro que juntava numa poupança para o casamento. Sabia que a viagem aérea simbolizava tanto para ele quanto o casamento para ela.

Depois de pagar o último boleto, entrou em casa sorridente, fez uma pequena lista: roupas, remédios, livros para distração (entre eles, obviamente o de Alcy Cheuiche), uma revista de palavras cruzadas, um jogo de dominó e de cartas, lembranças que traria para a namorada, a mãe, o pai e um amigo que sempre o ajudara.

O amigo quis recusar a inclusão do nome na lista de presentes. De Assis a Presidente Prudente tempo de nem mesmo ler integralmente a matéria de alguma revista ou de um jornal. Para não magoar o amigo, preferiu calar-se.

O avião sairia às sete e quarenta e cinco, pousaria em Presidente Prudente às oito horas. Ele tomaria um ônibus até o centro, compraria as lembranças, tomaria um sorvete, telefonaria para os amigos para dizer que chegara bem, retornaria ao aeroporto e às onze e vinte subiria ao mesmo avião que o trouxera e que pousaria em Assis às onze e trinta e cinco onde namorada, mãe, pai e amigo o esperariam.

Esperariam se durante a viagem não tivesse se sentado entre dois oficiais do exército que percebendo a emoção e, ao mesmo tempo, o nervosismo do passageiro, falassem de ventos contrários, de turbulências, de arranques climáticos e, numa atitude de maldade e de gozação, abrissem o pequeno tubo de ar sobre a cabeça e apontassem um furo que despedaçaria a aeronave e mataria a todos.

Mais do que angustiado, começou a rezar em voz alta, segurou na mão do oficial da esquerda, gritou, chorou e quando a aeromoça aproximou-se para saber o que acontecia, gritou:

- Pare esse troço que quero descer agora!

Mal estacionaram o carro na frente de casa, pai, mãe e namorada receberam a notícia de que deveriam buscá-lo em Presidente Prudente.

Sentado à porta do estacionamento, disparou assim avistou os três:

- Nunca mais ando de avião! Nunca mais!


*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 17 de setembro de 2009.

domingo, 13 de setembro de 2009

RÁDIO KARISMA FM DE MARACAÍ: FINALMENTE COMUNITÁRIA?

No último dia 20 de agosto, organizações não governamentais reuniram-se nas dependências da “Arte e Riso” em Maracaí para discutir a recomendação do Ministério Público Federal destinada à rádio “comunitária” Karisma FM de Maracaí. A pauta baseava-se em dois pontos: implementação do Conselho Comunitário exigido em lei e disponibilização de horários para entidades e cidadãos interessados em participar da programação.

Embora detentora do título de “comunitária”, a Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária (ABRAÇO) divulgou nota pública demonstrando o que acontece na rádio “comunitária” Karisma FM de Maracaí: “a ABRAÇO solicitará as autoridades competentes a imediata democratização da Rádio Comunitária Karisma, que pela prática anti-democrática e parcial de suas ações não pode ser denominada de Comunitária, apesar de possuir permissão para este serviço”.

Certamente o apoio da ABRAÇO, a iniciativa da União Maracaiense de Associações Comunitárias, a cobrança da imprensa regional e nacional e a ação (demorada, mas razoavelmente eficaz) da Procuradoria da República em Assis contribuíram para iniciar a democratização da rádio “comunitária” Karisma FM de Maracaí que se mostrava “anti-democrática e parcial”.

Compôs-se um Conselho Comunitário na reunião. Os cinco membros compartilham dos princípios da participação comunitária, da transparência, da honestidade e da probidade administrativa cabendo ao Conselho (e obviamente aos conselheiros) esclarecer o destino do dinheiro público e privado que entrou nos cofres da rádio “comunitária” Karisma FM desde sua fundação, reavaliar balancetes, verificar e disponibilizar para conferência pública notas fiscais, recibos, empenhos, contratos e quaisquer outras espécies de compromissos. Em caso de eventuais irregularidades, também caberá aos membros do Conselho Comunitário enviar denúncias aos órgãos competentes como Ministério Público Federal, Polícia Federal, Receita Federal e Receita Estadual, instituições previdenciárias e trabalhistas. Afinal, ONDE FOI E ONDE VAI PARAR TODO O DINHEIRO ARRECADADO PELA RÁDIO “COMUNITÁRIA” KARISMA FM DE MARACAÍ?


IRREGULARIDADES PENAIS



Chegará o momento da apuração de eventuais responsabilidades civis, penais, tributárias, trabalhistas, previdenciárias. Conforme dezenas de documentos protocolados nas denúncias ao Ministério Público Federal em Assis, a rádio “comunitária” Karisma FM de Maracaí precisa passar por uma ampla reforma para ser realmente comunitária.

O ex-locutor José Iram denunciou a comercialização de horários na rádio “comunitária”. Vender horário em rádio comunitária é crime! Quem vende os horários e para onde vai todo esse dinheiro?


IRREGULARIDADES TRIBUTÁRIAS



Depois dos procedimentos administrativos (requisitados pelo Ministério Público Federal) e penais, a responsabilização tributária de estabelecimentos comerciais que patrocinaram os programas da rádio “comunitária” Karisma FM. Esses estabelecimentos poderão se explicar à Receita Federal e eventualmente à Receita Estadual. Obviamente essas empresas arquivam recibos, contratos, notas fiscais ou documentos fiscais similares para comprovarem que espécies de relacionamentos nutriam com a rádio.

A Receita Federal poderá conferir a lista de programas patrocinados por empresas maracaienses e regionais nos últimos seis anos. O estabelecimento infrator poderá receber uma multa que, segundo alguns especialistas, começam no valor de R$ 25.000,00.


A VERDADE QUE NÃO É CONTADA



O filósofo Michel Foucault nos ensina que a verdade só existe quando montamos o quebra-cabeça. Se falta um peça, o quebra-cabeça está incompleto e, consequentemente, não há verdade.

Ao contrário do que se tem espalhado, não tem ninguém interessado em fechar a rádio “comunitária” Karisma FM de Maracaí. O interesse das organizações não governamentais é fazer com que a rádio Karisma FM de Maracaí se torne realmente comunitária. Por isso, a rádio fez a reunião em 20 de agosto. Se não fizesse a reunião nem elegesse o Conselho Comunitário (por critérios amplamente discutíveis) poderia ser fechada porque estava fora da lei. Será que a partir de agora a rádio “comunitária” agirá finalmente dentro da lei?

Seguindo um movimento nacional contra os absurdos praticados por rádios que se dizem comunitárias, mas que na verdade não são, entidades, organizações não governamentais, associações de moradores e de classes têm denunciado na Justiça as irregularidades cometidas pelas supostas rádios “comunitárias”.


LUGAR DE BANDIDO É NA CADEIA!



A Justiça é o único caminho a ser seguido por qualquer cidadão. São três os tipos que não seguem a Justiça: o imbecil, o psicopata e o bandido.

O imbecil se acha superior e imagina que pode fazer qualquer coisa, mesmo que suas ações contrariem a lei. O psicopata sofre de problemas psiquiátricos e precisa de tratamento para minimizar suas manias de grandeza. Já o bandido, que é um cidadão normal, mas que ignora a lei, tem apenas uma solução: cadeia.

Recorremos à Justiça por acreditar nela, mas assim como verdades incompletas têm sido espalhadas, ameaças veladas têm sido distribuídas aos líderes e ativistas comunitários de modo que, no momento adequado, denunciaremos os que se julgam acima das leis e que acham que podem resolver “pessoalmente”, no “soco”, no “braço”, no “tiro”. Para essas espécies de pessoas só existem três alternativas:

1 – No caso do imbecil, um tratamento psicológico;

2- No caso do psicopata, uma ampla intervenção psiquiátrica;

3 – No caso do bandido, a imediata denúncia na polícia civil ou federal (dependendo da competência). Lugar de bandido é na cadeia! Contra bandidos que eventualmente queiram se exibir em público, a legislação penal permite a defesa imediata e na mesma proporção.

Enumerando as ameaças que são espalhadas, vamos listar os nomes dos imbecis, psicopatas ou bandidos para, em caso de tentativa de lesão corporal ou de assassinato, fornecermos à polícia e à população os nomes dos responsáveis que, pelo que se tem ouvido, não são poucos.

Concluo perguntando novamente: para onde foi e para onde vai todo o dinheiro arrecadado pela rádio “comunitária” Karisma FM de Maracaí?

*Publicado originalmente na Folha do Vale (Tarumã – SP) de 12 de setembro de 2009.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

NAMORADA

Depois que a casa silenciava e a vizinhança descansava na penumbra, esperava o namorado voltar da faculdade e pular a janela. Quando não faziam amor, discutiam aos sussurros sobre música, Literatura, filmes. Planejavam viagens para Petrópolis, Serra de Itatiaia, Joinville e Vitória. Esquematizavam modelos de roupas para festas de início de julho, meados de setembro e pouco antes do natal.

Os encontros propiciaram intimidade. A intimidade gerou rotina. A rotina produziu tranqüilidade. A tranqüilidade desaguou na acomodação. A acomodação a esqueceu de avisar ao namorado que passaria a noite com a avó, internada numa clínica para exames de rotina.

À saída, o pai a beijou, agradeceu pela disposição e pediu que cuidasse da mãe, enfermeira na mesma clínica de internação da avó. Enquanto acenava para a filha e para a esposa, esboçou desgosto ao perceber os vizinhos desembarcarem instrumentos para os ensaios de rock, realizados nas noites de quarta-feira. Além de não ter opções na televisão, se irritaria com os acordes desconexos dos que se diziam músicos. Músicos mesmo eram Amado Batista, Sergio Reis, Tonico e Tinoco, Vela Branca e Defunto, Macarrão e Extrato de Tomate e, da nova guarda, Leão e Leopardo, Roupa Velha e Remendo, Tuberculose e Lambedor, Irmãos Cabelão, Noiva Virgem e Garanhão, Claudia e Claudiana.

Antes do fim do telejornal, a guitarra estrondou a parede da sala e estrepitou no quarto. Foi até a praça, engoliu um sorvete, uma Coca-Cola e um cachorro-quente. Voltou desesperançado, tomou um banho frio. Contando palitos e moedas velhas, os olhos fechando de sono. O quarto da filha. Ajeitou a cama, fechou a porta e o barulho praticamente desapareceu.

Ligaria o ventilador, porém se lembrou da conta de energia elétrica que consumira um terço do orçamento: microondas, lâmpadas acessas desnecessariamente, chuveiro elétrico, ferro de passar, bateria de celular, secador de cabelos, máquina de lavar-roupas, sistema de segurança, televisão, rádio, dois computadores...

Passava um pouco das onze horas quando escancarou a janela. Deitou-se comodamente. O vento fresco exigia cobertor que lhe impedisse gripe. Fechava os olhos involuntariamente quando ouviu um fôlego, entrecortado, duas mãos no parapeito e um pulo dentro do quarto.

As imagens de um ladrão armado passaram-lhe na cabeça e as vozes do bom senso o orientaram a esperar o momento adequado para enfrentá-lo. Bem possível que o ladrão tivesse três revólveres: dois para o trabalho diuturno e um reserva.

Poderia trancar-se em seu quarto e de lá chamar a polícia, mas foi surpreendido por um discurso insólito:

- Oi, amor. Cheguei mais cedo hoje. Pensei que nunca acabaria aquele raio de prova de processo tributário. Pros infernos, tributaristas. Todos eles. Advogados, contadores, economistas, financistas, agiotas... Para que preciso aprender processo tributário, trabalhista ou civil? Vou ser penalista! Vou colocar bandido na cadeia!

O pai reconheceu a voz. Explicado por que se despedia cedo nos fins de semana; a filha nada reclamava e se recolhia. E a mãe pensando na filha recatada! O sangue fervia-lhe quando ele retomou o discurso:

- Onde estão minhas cuecas? Abriu a tampa do baú: - Perfeitas. Passadas do jeito que gosto. Vou tomar um banho e depois... Ligou o chuveiro.

O pai passeou pelo quarto tentando descobrir esconderijos de eventuais pertences do namorado da filha. Abriu o baú e encontrou cuecas, meias, uma calça jeans, duas bermudas e três camisetas. Compreendia por que a filha passava mais tempo do que o necessário em alguns banhos. Sentou-se novamente na cama, abriu um chocolate (a filha deixava chocolates na mesa de cabeceira) e viu quando o rapaz, vestindo cueca verde-azulada, continuou:

- Pensei que a gente poderia viajar no fim de semana para Maringá. Festival de teatro por uma semana. Podemos assistir duas peças e depois caminhar, ir ao cinema, fazer amor. Estou louco para ir. Acho que você também vai querer. A única coisa que precisamos saber é se seu pai vai deixar...

Num suave e irônico tom, o pai indagou:

- O que você acha que vou dizer?

*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 10 de setembro de 2009.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Frases e vida

Você já pensou na influência que as frases, os jargões, os brocardos e os adágios têm em nossas vidas? Já ouviu falar que alguém dorme “à beça” ou que pensa que está na “casa da mãe Joana”? Que “a bom entendedor, meia-palavra basta”, que “a emenda saiu pior do que o soneto” ou que “a imprensa é o quarto poder”? Você nunca comprou alguma coisa porque estava “a preço de banana” ou escutou alguém dizer que “a ocasião faz o ladrão”?

“A voz do povo é a voz de Deus”, “água mole em pedra dura, tanto bate até que fura”, “ao Deus dará” e “bateu as botas” já entraram algum dia em seus ouvidos ou saíram de sua boca? Você já “caiu na gandaia” ou voltou para casa de “mãos abanando”? Detesta aquelas pessoas que “comem mortadela e arrotam peru”, dão uma de “João-sem-braço”, ficam de “conversa mole para boi dormir” ou querem empurrar-lhe produtos que “custam os olhos da cara”?

Essas e outras explicações podem ser encontradas em “A vida íntima das frases” que sai pela Novo Século em trabalho gráfico atrativo, interessante, de bom gosto. No livro, Deonísio da Silva, Doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo, professor emérito da Universidade Federal de São Carlos e escritor premiado nacional e internacionalmente, reuniu pequenos textos que se assemelham a verbetes. É mais ou menos uma enciclopédia a que recorremos para entender de maneira mais detalhada sobre um assunto.

Apesar da escrita fluente, as pesquisas enfrentam alguns problemas de ordem historiográfica e de concepção literária. O verbete “a pressa é inimiga da perfeição” informa que sua origem são os comentários de Rui Barbosa à rapidez com que o Código Civil Brasileiro foi elaborado por volta de 1900 e que o mencionado livro de leis trouxe “em sua versão final preciosas anotações do mestre”. As discussões em torno da vaidade intelectual ou de interesses políticos nas intervenções de Rui Barbosa sempre aparecerão como pano de fundo dos estudos historiográficos que se fizerem sobre ele. Estudiosos como Antônio Candido e Alfredo Bosi discordam da inteligência brilhante do jurista. Segundo alguns, sua inteligência ultrapassava os limites dos oceanos, mas não mergulhava além dos calcanhares. Além disso, não se ressalta que o jurista convidado para redigir o mencionado Código Civil foi Clóvis Bevilaqua, um dos mais brilhantes intelectuais da Geração de 1870.

A discussão historiográfica da análise de algumas frases também pode ser encontrada em “deixo a vida para entrar na História” em que, esclarecendo a frase de Getúlio Vargas antes do suicídio, afirma que durante seu governo ocorreu a “maior industrialização do Brasil”. Ocorreu?

Os dados historiográficos ainda podem passar batidos porque Deonísio da Silva é professor de Literatura que, com brilhantismo, conseguiu se desvencilhar da teoria estéril e produzir uma obra diversificada e de fôlego, mas um rompante de intolerância interpretativa nos chama a atenção em “a terra lhe seja leve” em que, pormenorizando a origem da frase, ressalta de maneira intolerante as provas da traição de Capitu, personagem de Machado de Assis.

Em primeiro lugar, deve-se destacar que a liberdade de interpretação é ampla e não está atrelada aos desejos ou às leituras de grupos ou de pessoas. Se lembrarmos das entrevistas e dos textos de Antônio Candido e de Wilson Martins, a Literatura não pode ser tratada como ciência, mas como uma teoria, enriquecida pela hermenêutica algumas vezes antagônica e beligerante. Acreditar na traição de Capitu é tão possível como apresentar indícios de sua fidelidade.

Em segundo lugar, não se pode tratar de provas de traição ou de fidelidade quando temos, na verdade, uma gama complexa de indícios que, infelizmente, não constituem provas de atitudes, de fatos ou de iniciativas e alçam certeiramente Machado de Assis ao maior escritor brasileiro de todos os tempos, segundo palavras de Antônio Candido, tão mencionado aqui.

Afora os detalhes, “A vida íntima das frases” é um daqueles livros que sempre nos fazem – profissionais e curiosos – entender um pouco da constituição lingüística e social. Se possível, devem constar da prateleira em destaque – assim como os demais livros do autor – para que os eventuais visitantes da biblioteca particular ou da sala de visitas descubram-no entre outras obras e disparem: “dize-me o que comes e eu te direi quem és”.

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A vida íntima das frases
Deonísio da Silva – Novo Século – 120 p. – R$ 34,90


*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 3 de setembro de 2009.

Essa crítica literária também pode ser conferida AQUI