Equivoca-se quem
pensa que a vida de motoboy é uma mamata. Acorda-se cedo, dorme-se tarde,
come-se mal, torra-se no calor, tirita no frio, sem tempo de curtir os amigos,
a família e os jogos de futebol, sem previdência social, sem férias, sem décimo
terceiro salário, sem feriados, dias mais alegres financeiramente, outros menos
extasiantes, contudo, um consenso: quem vira motoboy possui mil e uma
aventuras!
A mais recente delas
aconteceu aqui mesmo, em Presidente Prudente, quando o rapaz de dezenove anos,
trabalhando há dois dias numa dessas agências, recebeu a incumbência de entregar
a passageira – acabara de chegar de Campo Grande e levava incômoda bolsa de
viagem – à saída para Martinópolis. Convenhamos que o trajeto – entre a
rodoviária e a saída da cidade – nem é tão comprido. O motociclista,
equilibrando-se como dava e limitando-se a quarenta quilômetros por hora, parou
à calçada da cliente pouco menos de dez minutos depois. Domingo à tarde, cidade
morta, trânsito livre.
Embolsaria os seis
reais da corrida – e, dando sorte, mais dois ou três pelo desvelo em
transportar cuidadosamente e sem reclamar a bolsa de viagem – quando a mulher,
destrancando o portão e puxando a bagagem, informou que o dinheiro o esperava
dentro de casa. Antes de entrar, um banho. Ele, não ela.
O rapaz arregalou os
olhos, imaginou tratar-se de piada. Diante da exigência, incrédulo e necessitado
do emprego, atravessou exatos vinte e sete quarteirões até chegar em casa,
ligar o chuveiro, ensaboar-se, colocar xampu, mais uma chuveirada, enxugar-se,
pentear o cabelo e, aproveitando que já estava em casa, trocar cueca, meias,
sapatos e camisa.
Retomou os vinte e
sete quarteirões, dedo no interfone. A passageira olhou-o pela câmera, abriu a
porta, destrancou o portão, convidava-o a entrar na casa a fim de pegar os seis
reais da corrida quando perguntou se tinha mentido: realmente tomara banho? Ele
confirmou a higienização, camisa limpa, cabelo ainda molhado. Alegando a
péssima qualidade do xampu e o enjôo causado pelo produto, exigiu novo banho
sem xampu.
- Sou cliente antiga!
Quando voltar, nem precisa tocar o interfone. Entre direto, sente-se e me
aguarde. Sarei do banho em seguida.
Claramente qualquer
pessoa dotada de discernimento mediano a mandaria ao quinto dos infernos, montaria
na moto e aproveitaria o domingo ou aguardaria o chamado de novo cliente. Ele
optou por refazer o trajeto de vinte e sete quarteirões, esfregar bem a cabeça,
enxugá-la e, ainda por cima, pegar o secador da irmã.
De volta à rua, carro
com três rapazes visivelmente embriagados avançou o sinal vermelho, rolou na
curva sinuosa, subiu abruptamente na calçada, desapareceu em zigue-zague.
Lembrou-se das recomendações do chefe: todo cuidado é pouco! Carro maluco,
motorista embriagado? Mantenha distância.
Parou no posto de
combustíveis, vinte reais de gasolina. Óleo da moto, água nas rodas. Retomou o
trajeto e, mais uma vez, parou na frente da casa da cliente que, sem cerimônia,
deixara o portão destrancado. Avançou cuidadosamente, abriu a porta da sala: dois
jogos de sofá, um lustre aparentemente caro, um mini-bar com vinho, uísque,
conhaque, taças pequenas, médias e grandes, balde e apanhador de gelo. Sentou-se
no mais confortável, esticou as pernas na mesinha de centro, pegou o jornal
ainda fechado, correu direto à página de esportes, posou de rico.
Agora, pensou
satisfeito, entendia a exigência de dois banhos e a ordem de retirar o cheiro
do xampu. Um ambiente daqueles não comportava imundos. Já nem se preocupava com
o tempo gasto. Se estava limpo, que mal tomar uma taça de vinho depois de pegar
seus seis reais? Ou ela exigiria que lavasse as mãos com sabonete francês, água
mineral norueguesa e, por fim, álcool em gel do Marrocos? Secaria as mãos em
toalhas irlandesas?
O telefone tocou. Retirou
o aparelho do bolso: o chefe. Perguntou onde estava e, antes que explicasse o
motivo da demora, cinco policiais arrombaram a porta, armas em punho. Você acha
que os policiais engoliram a história dos banhos?
*Publicado
originalmente na coluna Ficções,
caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 21 de setembro de
2012.
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