sexta-feira, 29 de julho de 2011

PALIATIVO

Entrou na banca da rodoviária.

- Pois é, se continuar desse jeito, a rua vai piorar. Cheia de buracos, de lama, de esgoto a céu aberto, de ratos e baratas invadindo as casas!

- Pelo menos um paliativo para a situação...

Comprou jornal de sábado, palavras cruzadas e pacote de figurinhas do primo. Quando o pai questionou o andamento da construção da casa tendo em vista o casamento que se aproximava, o rapaz, impostando a voz, mão firme no copo de suco de maracujá:

- Vou arranjar um método paliativo!

Depois do jogo de futebol das cinco e meia, os vinte amigos escolhiam entre a Churrascaria do Gaúcho e o Fogão Mineiro. Consultado:

- Acho que podemos conseguir resultado paliativo!

Um dos atletas, que adorava estudar etimologia, abriu um largo sorriso, mas se conteve para não embaraçar o companheiro de partida. Quando entraram na Churrascaria do Gaúcho, o garçom dispôs as alternativas: rodízio ou opções conjugadas?

- Que tal um paliativo?

Provavelmente a parte mais interessante de aplicação da nova palavra aconteceu no fim de semana durante a comemoração do aniversário da sogra numa chácara alugada. Ajudou a descarregar as cadeiras e as mesas, buscadas numa distribuidora de bebidas, arrumou um lugar para a churrasqueira, depositou as bebidas nos dois congeladores que trouxera e nos dois disponíveis na chácara, limpou os banheiros e, em último grau de devoção à sogra, ajustou as redes de vôlei e das traves nos campos que ficavam a cinqüenta metros das festividades.

Começaram a ocupar o grande estacionamento por volta do meio-dia e antes da uma da tarde já não se encontravam mesas disponíveis. O sogro passava entre os parentes, apertando as mãos de uns, abraçando outros, colocando as crianças no colo e fazendo malabarismos para os mais idosos. Elogiava o genro, organizara a festa. Que bom gosto, que trabalho, que dedicação à filha e, especialmente, à família. Grande casamento aquele. Todos convidados desde já.

A conversa sobre casamento – e casamentos de maneira geral – tomou conta dos amigos e parentes do sogro na piscina, nos campos de vôlei e de futebol, em torno da churrasqueira ou nas árvores frutíferas. O sogro confirmou o interesse do genro num casamento na melhor igreja da cidade, festa para mais de quinhentos convidados, alugaria alguns apartamentos nos hotéis no entorno dos lugares das comemorações para convidados especiais e alguns carros de última geração para transportar três ou quatro casais que vinham de São Paulo para prestigiar o enlace.

Tudo ia bem até que um dos convidados, de saco cheio do casamento de quinze anos, oito meses e sete dias – sabia detalhadamente do tempo em que afundara naquela prisão, referindo-se à união com a abençoada esposa – perguntou se o noivo queria casar-se por vontade própria ou por pressão dos parentes da noiva. O sogro argumentou de todas as maneiras, mas teve de chamar o futuro genro para convencer amigos e parentes de que realmente amava sua filha.

O genro chegou à roda de amigos perto da churrasqueira. Jogou duas ou três dúzias de palavras sem lógica, lembrou de alguns fatos engraçados e coletivamente conhecidos, falou do trabalho e das perspectivas de abrir um negócio próprio com dinheiro emprestado de um banco do estado. A conversa ia bem até que, sem mais rodeios, o sogro disparou:

- Meus amigos aqui – mais aqueles três primos e dois sobrinhos – estavam falando que casamento é uma coisa complicada. Há pessoas, disse sem apontar o arrependido companheiro, que se casaram e hoje sofrem de um jeito que você nem imagina. Então, minha pergunta é simples. Gostaria que você respondesse. Uma pergunta apenas para demonstrar aos meus amigos seu caráter e sua vontade de casar com minha filha e integrar essa que é uma das mais famosas famílias de Presidente Prudente, que é a minha família. Você acha que uma mulher como minha filha, estudada, trabalhadora, correta, todos os predicados morais e éticos, é ou não é um excelente partido para um casamento de verdade, duradouro, sério?

- É, disse o genro, um paliativo para qualquer homem!


*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 29 de julho de 2011.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

SEI AMAR?

Viajava para Paraguaçu Paulista na antevéspera do dia dos namorados quando o ônibus parou na Roseta, distrito da cidade. Viagens em ônibus circular não são nem mais nem menos cansativas, nem mais nem menos importantes. A diferença é o tempo. As viagens em ônibus circular geralmente são curtas, ligando uma cidade à outra, Presidente Prudente a Martinópolis, Inúbia Paulista a Adamantina, Assis a Maracaí ou Londrina a Sertanópolis.

Antes que a memória me traia, acrescento que o tempo não é a única diferença: as pessoas que viajam em ônibus circular são peculiares em cada trecho. O passageiro que vai de Prudente a Álvares Machado não é o mesmo que vai de Maringá a Florestópolis, nem semelhante ao que sai de Porto Alegre com destino a Gramado ou deixa Florianópolis com vontade de visitar Blumenau.

Rubem Alves, em mais de uma de suas crônicas, lembra o gosto pelo confronto facial. Entra no ônibus, no metrô, no avião, no navio e olha as faces, brincando nas tentativas de descobrir suas personalidades, seus gostos, suas histórias. Eu nunca presto atenção nas pessoas. Escolho um banco, me sento, pego um livro ou vislumbro as agregações simbólicas às paisagens naturais, permitindo-me o devaneio inexorável e confuso. Ora estou numa praia bebendo água de coco, ora estou numa sala de aula debatendo algum assunto literário, filosófico ou sociológico, ora estou viajando para algum país que tenho vontade de conhecer (e, sempre lembro a mim mesmo, não são poucos os países em que gostaria de permanecer umas longuíssimas semanas), ora estou fechado entre quatro paredes silenciosas...

Na antevéspera de dia dos namorados, minhas atenções se concentraram num casal da Roseta. O frio de mais ou menos catorze graus, cuja sensação térmica o reduzia a dez graus em função da chuva fina e constante, convidava qualquer pessoa de bom senso, sem obrigações, a se meter embaixo das cobertas, a assistir a algum programa televisivo ou filme, comer pipoca ou lasanha, beber chá, café ou chocolate quente.

Os passageiros que desembarcaram na Roseta saíam correndo em disparada para suas casas, pois ninguém esperava água e, consequentemente, ninguém levara guarda-chuva. O ônibus ainda parado esperava um homem, provavelmente setenta e cinco anos, passos lentos e movimentos comprometidos, levantar-se, mover-se e pegar as duas bolsas de viagem socadas atrás do último banco.

Quando desatrelou sua bagagem, uma mulher de poucos dentes parou à porta de saída, estacionou seu carro de mão. O homem pegou uma bolsa de viagem (verde, suja, zíperes estourados e compartimentos fechados com barbantes ou cordas), depositou no primeiro degrau. A mulher então puxou a bolsa para o segundo degrau, empenhou suas forças e a transportou para o carro de mão que, agüentando a pancada do peso, balançou de um lado a outro e ameaçou cair.

Em seguida, o homem pegou a segunda bolsa – tão mal cuidada quanto a primeira – colocou-a nas mãos da mulher que, com esforço semelhante ao anterior, ajeitou no carrinho de mão. A chuva aumentara sua força e já caía torrencialmente. A mulher ainda acomodou como pode as bagagens enquanto o homem voltava ao banco para recolher blusa de frio, guarda-chuva, chapéu e maleta velha. Desceu a escada, segurando-se ao balaústre. Em terra firme, equilibrado no chão encharcado, homem e mulher sorriram e, embaixo de chuva, deram um beijo. O ônibus partiu, retomando seu trajeto a fim de cumprir horários, de espalhar pessoas, de alavancar a vida, de criar idéias, de motivar o espírito, de realizar sonhos, de desfazer estragos, de gerar riqueza e empregos...

Quando cheguei a Paraguaçu Paulista, a imagem do casal invadiu-me os pensamentos. Esqueceria dele o quanto antes, entretanto a figura dos dois sorrindo e se beijando embaixo de uma chuva forte impregnou-me os sentidos a tal ponto de concordar parcialmente com Rubem Alves. As faces das pessoas, em muitas ocasiões, nos trazem grande felicidade. Especialmente se essa felicidade se mostra recheada de ações repletas de amor desinteressado.

*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno Tem!, Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 22 de julho de 2011.

quarta-feira, 20 de julho de 2011

CINCO ANOS SEM JOSUÉ MONTELLO

Para meu pai, o psicólogo José Antônio da Silva

Meu pai militava em organizações sociais, sindicais e estudantis, dedicando-se rotineiramente ao trabalho burocrático. Para elaborar estatutos, ofícios e requerimentos ou responder aos documentos recebidos, acordava cedo, dormia tarde e passava os fins de semana à maquina de datilografia que foi, nos primeiros arroubos de cronista, minha primeira companheira de frustrações literárias. Indagado por um aluno, respondi que, ao crescer, queria ser um sexto do que é meu pai:

- Meu pai, sozinho, vale por trinta exércitos.

A figura do homem incansável, multidisciplinar, determinado e rigoroso, que trabalhava por trinta exércitos, explodiu-me na lembrança ao pensar em Josué Montello que, em março, completa cinco anos de falecimento. Montello nasceu em São Luis (MA) em agosto de 1917 e faleceu em março de 2006 no Rio de Janeiro. Depois de Belém, a capital fluminense constituiu o refúgio do romancista que atravessaria o século XX residindo no Peru, em Portugal ou na Espanha onde desempenhou a função de professor, de pesquisador ou de burocrata do governo brasileiro.

 O primeiro encontro com Josué Montello – assim como o primeiro encontro com Santo Agostinho – aconteceu casualmente entre meados e fins da década de 1990 quando, adquirindo os volumes de uma coleção, observei desinteressadamente “Cais da Sagração”. Alguns leitores namoram os livros de suas bibliotecas até levá-los aos contatos mais íntimos, mais profundos, mais prazerosos. Sentia-me convidado a enfrentar “Cais da Sagração” ao mesmo tempo em que me via apreensivo: valia a pena me arriscar em de mais de trezentas páginas de um escritor elogiado, mas pouco comentado nos cadernos culturais e nos periódicos especializados? Entre a dúvida do arrependimento e o medo do enfado, optei pela curiosidade do desafio, inicialmente denso, mas que, aos poucos, se tornou poético. A narrativa valia-se de técnicas psicológicas que fundiam passado e presente numa prática de rememoração.

A fluência dos parágrafos e o desenrolar do enredo moviam-se empurrados pelas suaves pitadas de humor, de identidade regional e de discussão sobre morte, fidelidade, violência, machismo, relações verticais e regeneração senil. Esses temas, na pena incansável e no olhar perspicaz, são tratados com tamanha maturidade a ponto de os eufemismos constituírem um dos degraus metafóricos que suavizam a submissão feminina, o desmoronamento dos sentimentos amorosos, os entraves entre religião e moral: o romancista transforma Mestre Severino, pescador maranhense, em um assassino tão irracional quanto Otelo. Vanju e Desdêmona entram nos terrenos metafísicos pela asfixia premeditada, instigada pelas visões do descontrole.

Até então conhecera apenas um escritor contemporâneo prolífico, melífluo e cosmopolita: Moacyr Scliar. O domínio da técnica narrativa em prosa manifesta-se em crônica, conto, novela, romance, ensaio, memórias, biografias (reais ou ficcionais), artigos em jornais, revistas, periódicos acadêmicos ou especializados. Seria o caso de Josué Montello?

Busquei suas crônicas. Uma antologia de Flávia Amparo selecionava suas colaborações ao Jornal do Brasil. Uma atrás da outra, retratando centenas de temas, abordando assuntos que iam da política à economia, da arte como manifestação suprema aos percalços da escrita, das preferências intelectuais aos bastidores do campo literário, das grandes viagens ou honrarias aos encontros da Academia Brasileira de Letras, Josué Montello demonstrou sua capacidade de integrar o patamar dos intelectuais que, no século XIX, eram batizados de polígrafos: preparados para debater, entreter, refletir e escrever sobre tudo.

Enfeitiçou-me novamente o estilo construído na leveza das frases e no encadeamento dos enredos. Passei a procurar suas obras. Já tinha lido “Cais da Sagração” e suas “Melhores crônicas”. Constavam de minha biblioteca “Os tambores de São Luís” e “O Juscelino Kubitschek de minhas recordações”. Optei, com a finalidade de verificar sua desenvoltura nos relatos do governo presidencialista em meados de 1950, pelo ensaio que imaginei historiográfico, mas se apresentou memorialístico e propenso à consolidação da auto-imagem.

“O Juscelino Kubitschek de minhas recordações” contempla personalidades, situações ou temas. A estratégia de capítulos de estrutura média – nem tão curtos quanto os machadianos nem tão extensos quanto os de Beckett – simboliza o objetivo contemporâneo de perseguição da linguagem apurada e acessível. As preocupações da linguagem, nos asseguraria em “Confissão de um romancista”, crônica publicada em dezembro de 1981, ultrapassam os limites do bom senso a ponto de textos jornalísticos, na iminência de saírem das gráficas, serem alterados às pressas e até livros publicados, premiados, objetos de teses ou dissertações, serem modificados reiteradamente em busca da perfeição.

O esmero da linguagem literária pressupõe o aperfeiçoamento das técnicas, dos métodos e do estilo de quem, alertado por leitores, críticos ou confrades altera trechos de enredo, reelabora construções metafóricas ou modifica integralmente a ordem das palavras em busca da sintaxe sóbria.

A procura da palavra adequada, da frase destemida ou do parágrafo ideal consome igualmente suas forças no âmbito particular uma vez que, nas memórias, nos ensaios considerados historiográficos, nas cartas ou nos diários, o estilo límpido representa uma obsessão. O leitor dialoga com um mestre da escrita, seja na concepção de um grande romance, seja no recado para buscar livros, jornais e revistas nas redondezas ou no pedido de ajustar um paletó.

Talvez a carpintaria, como nos sugere Autran Dourado, encontre em Josué Montello a personificação do profissional que usa com grande maestria as ferramentas disponíveis para retirar o excesso da madeira. Talvez Montello já dominasse imageticamente as histórias, os argumentos, as teses. Bastava livrar-se do excedente e sobressair o essencial. Seus livros traduzem o esforço do mestre que, cortando, limpando, observando, comparando, polindo, voltando a cortar, a limpar, a polir, faz da escrita o artifício beligerante e conciliador.

Obviamente precisaríamos de um longo espaço para tratar de atividades profissionais exercidas concomitantemente às do homem de letras. Montello desempenhou o papel de educador – lecionando em diversos países – e ocupou a reitoria da Universidade Federal do Maranhão. Sua devoção aos livros estendeu-se à prática de divulgá-los incansavelmente, fosse como cronista, jornalista ou palestrante, fosse na condição de diretor da Biblioteca Nacional ou na de membro da Academia Brasileira de Letras. As movimentações dos bastidores para chegar à Casa de Machado de Assis são brilhantemente retratadas pelo ensaísta José Neres em “Montello: o Benjamim da Academia”.

Tratei ligeiramente das obras jornalísticas, das crônicas, dos romances, dos ensaios e dos diários sem, no entanto, discorrer sobre “Os Tambores de São Luis”, atrelado à sua figura por boa parte do público. “Os Tambores de São Luis” é um grande romance – tanto no número de páginas quanto na construção do enredo, das metáforas e de paradigmas sintáticos – que versa... Você quer saber de que trata “Os Tambores de São Luis”? Procure a biblioteca mais próxima! Não perca tempo!

O tempo que você, leitor, gastar nos personagens humanamente fabulosos, nos relatos deliciosamente comuns e nos desfechos essencialmente sem grandes sobressaltos será recompensado pela percepção aprofundada das relações sociais, filosóficas e psicológicas tão bem desenvolvidas que chegam a ser algo incomodamente rotineiro, pessoal e revoltante. O impacto consiste na transmissão de histórias simples em linguagem refinada. Praticamente uma mistura de erudito e popular sem cair no popularesco nem se fechar no castelo de vidro. Alguém a fim de abrir “Os Tambores de São Luis” e percorrer suas quase setecentas páginas bebendo refrigerante, comendo pão de queijo e ouvindo ópera?

*Publicado originalmente na revista Conhecimento Prático Literatura, edição 37, p. 26-28.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

BOAS SURPRESAS

Quando o contador Rogélio Fracasso tomou a iniciativa de representar a escritora Simone Paulino e procurou-me para verificar a possibilidade de entrevistá-la no programa literário da rádio local, dispus-me imediatamente a levá-la ao ar e perguntei se poderia me emprestar algum livro para mapear interesses, temas, estilo, artifícios teóricos e mecanismos peculiares de criação literária.

Deixou em minha residência “Identidade perdida” (2003), pouco mais de cento e sessenta páginas lidas numa noite de vento suave que amenizava o calor. As primeiras páginas deram conta de dissipar as imagens de um trabalho de ficção e me lançaram em um mundo em que o estilo vai se formando a partir das misturas e seleções que a autora – também jornalista, editora e mestre em Teoria Literária pela Universidade de São Paulo – empreende na composição de um personagem real: o enredo consiste no depoimento de um morador de rua.

O protagonista de “Identidade perdida” constrói a imagem de bom moço que morou no Rio Grande do Sul, inseriu-se no mercado de trabalho e transitou entre vários grupos sociais – incluindo o grupo de mulheres que não resistiam aos seus encantos masculinos – e, por uma série de situações, acabou transformando-se em morador de rua perambulando nos logradouros paulistanos. Interessante que, mesmo sem casa ou endereço fixo, o protagonista enceta um relacionamento com uma mulher vivendo em condições idênticas às dele. Da relação, dois filhos, igualmente vivendo nas ruas e habituando-se aos albergues e casas provisórias.

Duas questões se formam ao longo da leitura: quais as verdades construídas? Onde memória e auto-imagem se confundem, se refazem, se distinguem? Daí o trabalho se amplia consideravelmente na medida em que se, por um lado, o estilo fluente convida ao leitor à narrativa de aventura, por outro lado, faz o mais experiente ou profissional – como gostava de se definir o grande Wilson Martins – analisar frases e temas mais cautelosamente não deixando – ou, pelo menos, tentando não se deixar – envolver pelo feitiço que sai das palavras.

Verdades, imagens e memórias são temas enigmáticos na prosa de Simone Paulino que, dois anos após a publicação de “Identidade perdida”, embarca nos contos de “Abraços negados” (Casa do Psicólogo, 2005). Neste “Abraços negados”, o foco narrativo e as confusões entre realidade e fantasia se deslocam: a realidade, sobre a qual Parmênides e Heráclito tanto discutiram, mostra o lado mais suave ao erigir os limites literários dentro dos quais as possibilidades se multiplicam. A imagem se lança ao plano secundário dando pistas implícitas da verdade mnemônica em que o narrador em primeira pessoa transpõe os fatos à verossimilhança e à universalidade.

Se tivéssemos mais espaço, os contos poderiam ser analisados em conjunto para demonstrar tal assertiva – entre eles, o premiado no Concurso Literário José Cândido de Carvalho – mas o primeiro parágrafo de “Abraços negados” (p. 55-58), conto que dá título ao livro, sintetiza uma situação atravessada em qualquer lugar do mundo e a qualquer tempo: “Eu tinha dez anos de idade quando me tornei mãe pela primeira vez. Minha doce e terna filha era já uma velhinha de faces esculpidas pelas rugas, ombros encurvados pelo peso dos sonhos perdidos e pernas vacilantes de desesperança quando a tomei para mim. Até hoje me pergunto, toda vez que me deparo com seus olhos miúdos e embaçados, qual foi o momento exato em que fizemos o pacto silencioso de trocar nossos papéis de mãe e filha”.

“Abraços negados” constitui um presente para qualquer leitor: textos curtos, linguagem fluente, estilo límpido, mensagens intricadas na qualidade a que Luiz Antônio de Assis Brasil – professor da oficina de Criação Literária da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e romancista premiado – define como a capacidade de “falar muito no pouco”.

Por fim, a autora integra “Grafias urbanas”, antologia de contos da qual participam grandes nomes do gênero no Brasil. “Destino: Sé”, texto que integra a antologia, rompe com a forma sintética do trabalho apresentado em “Abraços negados”, analisando uma questão muito cara aos historiadores: as diversas temporalidades inseridas em eras consideradas avançadas. Numa época em que a informação é supostamente de fácil acesso e oniricamente homens e mulheres possuem o mesmo direito, a captação da imagem da adolescente que desconhece a menarca e, já adulta, se submete às surras constantes do companheiro, transmitem ao leitor a inquietação de que nem sempre os rótulos correspondem às práticas cotidianas.

Para conhecer mais do trabalho de Simone Paulino, grata surpresa de Rogélio Fracasso, basta acessar www.simonepaulino.com.br

*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 15 de julho de 2011.

sábado, 9 de julho de 2011

PESCARIA

Logo após a decisão do Supremo Tribunal Federal reconhecendo a União Estável entre pessoas do mesmo sexo, as duas estudantes universitárias decidiram assumir publicamente o relacionamento de dois anos e três meses, mantido às escondidas, mas não totalmente encoberto dos olhos mais aguçados.

A mãe da estudante de enfermagem soube, pela boca da filha, depois das primeiras semanas, do fôlego do amor e, apesar da resistência, aceitou o compromisso selado com um jantar.

O pai da estudante de jornalismo não era afeito às modernidades. Uma namorada no lugar de um namorado? Precisava pensar bem em que falar, como falar, onde falar. O velho pregava o desejo de netos correndo pela casa, jogando futebol ou entrando em uma das forças armadas. Como acabaria com o sonho dele?

- Que tal chamarmos meu pai para um pesqueiro?

- Aqui em Prudente?

- Aqui em Prudente, sim. A gente marca, almoça e, durante a pescaria, dá a notícia. E seja o que Deus quiser.

A estudante de jornalismo entrou na casa do pai, que morava com a mãe e o irmão divorciado, compartilhou dos problemas da faculdade, elogiou o novo som instalado no carro, agradeceu o bolo de cenoura e convidou a família para almoçar no pesqueiro. A mãe aceitou prontamente, o irmão esquivou-se e o pai manteve o costumeiro silêncio.

As meninas conheceram-se em um desses espetáculos musicais da faculdade. Entre conversas, cervejas e confidências, marcaram um cinema no domingo, um cachorro-quente na terça-feira, uma caminhada na sexta-feira à hora do almoço e, quando se deram conta, o amor consolidou-se nos fins de semana em que os filmes de Bertolucci, de Woody Allen e de Almodóvar enchiam as tardes e raspavam a adega improvisada e as massas pré-cozidas.

Faltavam dez minutos para o meio-dia de domingo quando o pai e a mãe da estudante de jornalismo entraram no pesqueiro, estacionaram sob a sombra insuficiente de um ipê, passearam pelo restaurante e vislumbraram a filha sentada ao lado da moça de rabo de cavalo. Apresentações habituais, cardápio do dia, cervejas, refrigerantes e suco de maracujá.

As estudantes e a mãe trataram do aumento do preço da passagem de ônibus, dos problemas de coluna, de alguns truques para assar a carne de frango com vinho e laranja, de viagens de fim de ano... O pai pulava silenciosamente os olhos para as bocas de quem falava. Suspirava, olhava o ar morto e as pessoas, nas mesas em volta, fomentando o mesmo diálogo, sobre os mesmos assuntos.

Engoliram os peixes em três tempos. A estudante de jornalismo convidou a família e a estudante de enfermagem para conhecer de perto a estrutura do lugar. Ao sétimo tanque, pegaram varas, amarraram iscas.

O sol quente pouco ajudava. De vez em quando, o pai e a mãe trocavam de posição, de lugar, de vara, mas os peixes não se dignavam a mostrar serviço. O pai da estudante de jornalismo se mostrava impaciente com os pequenos insetos. Bateu no pescoço e nos braços algumas vezes até que a filha encetou conversa sem pé nem cabeça, falando da gratidão, do carinho e do amor aos pais e, que acontecesse o que acontecesse, ela, a filha, sempre os amaria.

- Você precisa de dinheiro? Cortou o pai, puxando a vara e constatando que o anzol grudara em algum capim no fundo do tanque.

A filha voltou a falar do amor aos pais, mas cada pessoa tinha seu destino até que sua namorada, a estudante de enfermagem, interrompeu o discurso:

- Sua filha e eu não somos amigas. Não sei se o senhor aceita ou não nosso relacionamento, mas estamos aqui para assumi-lo...

- Você gosta de pescar? Indagou o pai, puxando o anzol: tinha mais utilidade para arrastar capim do que para fisgar peixes.

- Eu detesto, frisou a estudante de enfermagem.

- Eu também, disse o pai da estudante de jornalismo, jogando a vara ao lado. – Acho que o melhor, nesse frio, é tomar café. Meu filho trouxe um capuccino de uma viagem ao Rio Grande do Sul. Você – encaminhou-se para a saída, continuando a conversa com a namorada da filha – tem algum problema de diabetes? Porque esse café só é bom com bastante açúcar...


*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 8 de julho de 2011.

sábado, 2 de julho de 2011

BINÓCULOS



O primo de Cruzália entrou em um dos quatro apartamentos do décimo primeiro andar. O elevador, com que se extasiou durante o deslocamento do térreo, dava problemas nos momentos em que mais se precisava dele.

Um vizinho do sétimo andar saíra às duas horas da tarde para pagar uma conta antes do encerramento das atividades bancárias. O trajeto que, em média, levava trinta e cinco minutos, estendeu-se por mais de cinco horas quando o elevador, transportando apenas o vizinho do sétimo andar, resolveu parar entre o terceiro e o quarto. Até chamarem a manutenção, os técnicos largarem os outros serviços e atravessarem a cidade e, finalmente, identificarem e resolverem os entraves...

Em outra ocasião – e, acredita-se, tenha sido a mais notória – uma grávida ficou presa no momento em que se dirigia para o hospital, mas, nesse caso, por uma ajuda divina, o elevador se indispôs por apenas trinta e sete minutos.

O primo de Cruzália instalou-se no sofá de três lugares, adorou a porta de vidro através da qual se defrontavam três edifícios.

- Você já viu muita coisa daqui?

O primo de Presidente Prudente arqueou as sobrancelhas.

- Se você já viu alguma coisa diferente daqui de cima, se viu alguma coisa picante nas outras janelas, explicou o primo de Cruzália, dando uma piscadinha maliciosa e esboçando um sorriso ensaiado.

Olhou em volta: nada de binóculos, lunetas, telescópios? O primo de Prudente justificou-se: oito anos morando no mesmo apartamento e jamais, repetia com grande classe e delicadeza, jamais presenciara nenhum movimento suspeito nem no seu nem nos prédios vizinhos.

O primo de Cruzália aproximou-se da porta de vidro:

- Não tem movimento suspeito? O que aqueles dois vão fazer ali?

O dono do apartamento chegou rapidamente à porta de vidro – mais por uma questão de cortesia – e espantou-se ao constatar um casal – homem fora de forma e mulher escultural, provavelmente na casa dos trinta anos – conversando eroticamente. Ambos em pé, se abraçavam, se desvencilhavam, sorriam. A distância impedia os pormenores, mas o dono do apartamento não perdeu tempo, abriu a porta de vidro e se colocaria na varanda para obter visão mais privilegiada. O primo de Cruzália, que o dono do apartamento julgava caipira, segurou-o pelo braço:

- Está ficando maluco? Se perceberem que estamos olhando, vão parar o espetáculo!

O primo de Prudente concordou, puxou a cortina e se escondeu, deixando um pequeno orifício por meio do qual continuava testemunhando o agarramento entre o casal. O homem e a mulher voltaram a se abraçar, se beijaram, dançaram um pouco, pegaram taças cheias de líquido transparente e borbulhante. Ela desprendeu o cabelo. Numa mexida para a esquerda e para a direita, se desenrolou sobre os ombros, estancou nos quadris. Colocando o copo na mesinha, fez o parceiro sentar-se numa cadeira. Deu alguns passos de dança, jogou um sapato em cima dele e o outro para o lado da janela.

Livrou-se de uma meia, de outra meia, arremessou o cinto na direção do sapato, promoveu mais alguns passos sincronizados, sorriu, remexeu o cabelo, retirou as calças e, embaixo das calças, para surpresa do parceiro e desespero dos primos espiões, uma espécie de calçãozinho preto.

A mulher puxou o homem pelo colarinho. Cinco beijinhos, o empurrou. Os primos concentraram seus esforços unicamente na mulher – sensual, interessante, perfeita, envolvente. Ela livrou-se do soutien, escondeu-se atrás do braço esquerdo. A mão direita sacudia luxuriosamente a peça íntima de um lado a outro.

- Vai ser agora! Obrigado! Eu não merecia tanto! Obrigado! O primo de Cruzália agradecia empolgadamente.

- Por que perdi tanto tempo? Lastimava-se o dono do apartamento, o primo de Prudente.

A mulher ainda ensaiou alguns passos desordenados, remexeu o cabelo, levou a ponta de uma unha aos lábios. Finalmente atirou a peça na mesa, voou para cima do parceiro.

- Como assim? Onde? Cadê?

Só então os dois expectadores perceberam que o homem tinha sido jogado na cama, encoberta cuidadosamente por uma cortina de nuances marrons.


*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 1 de julho de 2011.