quarta-feira, 20 de julho de 2011

CINCO ANOS SEM JOSUÉ MONTELLO

Para meu pai, o psicólogo José Antônio da Silva

Meu pai militava em organizações sociais, sindicais e estudantis, dedicando-se rotineiramente ao trabalho burocrático. Para elaborar estatutos, ofícios e requerimentos ou responder aos documentos recebidos, acordava cedo, dormia tarde e passava os fins de semana à maquina de datilografia que foi, nos primeiros arroubos de cronista, minha primeira companheira de frustrações literárias. Indagado por um aluno, respondi que, ao crescer, queria ser um sexto do que é meu pai:

- Meu pai, sozinho, vale por trinta exércitos.

A figura do homem incansável, multidisciplinar, determinado e rigoroso, que trabalhava por trinta exércitos, explodiu-me na lembrança ao pensar em Josué Montello que, em março, completa cinco anos de falecimento. Montello nasceu em São Luis (MA) em agosto de 1917 e faleceu em março de 2006 no Rio de Janeiro. Depois de Belém, a capital fluminense constituiu o refúgio do romancista que atravessaria o século XX residindo no Peru, em Portugal ou na Espanha onde desempenhou a função de professor, de pesquisador ou de burocrata do governo brasileiro.

 O primeiro encontro com Josué Montello – assim como o primeiro encontro com Santo Agostinho – aconteceu casualmente entre meados e fins da década de 1990 quando, adquirindo os volumes de uma coleção, observei desinteressadamente “Cais da Sagração”. Alguns leitores namoram os livros de suas bibliotecas até levá-los aos contatos mais íntimos, mais profundos, mais prazerosos. Sentia-me convidado a enfrentar “Cais da Sagração” ao mesmo tempo em que me via apreensivo: valia a pena me arriscar em de mais de trezentas páginas de um escritor elogiado, mas pouco comentado nos cadernos culturais e nos periódicos especializados? Entre a dúvida do arrependimento e o medo do enfado, optei pela curiosidade do desafio, inicialmente denso, mas que, aos poucos, se tornou poético. A narrativa valia-se de técnicas psicológicas que fundiam passado e presente numa prática de rememoração.

A fluência dos parágrafos e o desenrolar do enredo moviam-se empurrados pelas suaves pitadas de humor, de identidade regional e de discussão sobre morte, fidelidade, violência, machismo, relações verticais e regeneração senil. Esses temas, na pena incansável e no olhar perspicaz, são tratados com tamanha maturidade a ponto de os eufemismos constituírem um dos degraus metafóricos que suavizam a submissão feminina, o desmoronamento dos sentimentos amorosos, os entraves entre religião e moral: o romancista transforma Mestre Severino, pescador maranhense, em um assassino tão irracional quanto Otelo. Vanju e Desdêmona entram nos terrenos metafísicos pela asfixia premeditada, instigada pelas visões do descontrole.

Até então conhecera apenas um escritor contemporâneo prolífico, melífluo e cosmopolita: Moacyr Scliar. O domínio da técnica narrativa em prosa manifesta-se em crônica, conto, novela, romance, ensaio, memórias, biografias (reais ou ficcionais), artigos em jornais, revistas, periódicos acadêmicos ou especializados. Seria o caso de Josué Montello?

Busquei suas crônicas. Uma antologia de Flávia Amparo selecionava suas colaborações ao Jornal do Brasil. Uma atrás da outra, retratando centenas de temas, abordando assuntos que iam da política à economia, da arte como manifestação suprema aos percalços da escrita, das preferências intelectuais aos bastidores do campo literário, das grandes viagens ou honrarias aos encontros da Academia Brasileira de Letras, Josué Montello demonstrou sua capacidade de integrar o patamar dos intelectuais que, no século XIX, eram batizados de polígrafos: preparados para debater, entreter, refletir e escrever sobre tudo.

Enfeitiçou-me novamente o estilo construído na leveza das frases e no encadeamento dos enredos. Passei a procurar suas obras. Já tinha lido “Cais da Sagração” e suas “Melhores crônicas”. Constavam de minha biblioteca “Os tambores de São Luís” e “O Juscelino Kubitschek de minhas recordações”. Optei, com a finalidade de verificar sua desenvoltura nos relatos do governo presidencialista em meados de 1950, pelo ensaio que imaginei historiográfico, mas se apresentou memorialístico e propenso à consolidação da auto-imagem.

“O Juscelino Kubitschek de minhas recordações” contempla personalidades, situações ou temas. A estratégia de capítulos de estrutura média – nem tão curtos quanto os machadianos nem tão extensos quanto os de Beckett – simboliza o objetivo contemporâneo de perseguição da linguagem apurada e acessível. As preocupações da linguagem, nos asseguraria em “Confissão de um romancista”, crônica publicada em dezembro de 1981, ultrapassam os limites do bom senso a ponto de textos jornalísticos, na iminência de saírem das gráficas, serem alterados às pressas e até livros publicados, premiados, objetos de teses ou dissertações, serem modificados reiteradamente em busca da perfeição.

O esmero da linguagem literária pressupõe o aperfeiçoamento das técnicas, dos métodos e do estilo de quem, alertado por leitores, críticos ou confrades altera trechos de enredo, reelabora construções metafóricas ou modifica integralmente a ordem das palavras em busca da sintaxe sóbria.

A procura da palavra adequada, da frase destemida ou do parágrafo ideal consome igualmente suas forças no âmbito particular uma vez que, nas memórias, nos ensaios considerados historiográficos, nas cartas ou nos diários, o estilo límpido representa uma obsessão. O leitor dialoga com um mestre da escrita, seja na concepção de um grande romance, seja no recado para buscar livros, jornais e revistas nas redondezas ou no pedido de ajustar um paletó.

Talvez a carpintaria, como nos sugere Autran Dourado, encontre em Josué Montello a personificação do profissional que usa com grande maestria as ferramentas disponíveis para retirar o excesso da madeira. Talvez Montello já dominasse imageticamente as histórias, os argumentos, as teses. Bastava livrar-se do excedente e sobressair o essencial. Seus livros traduzem o esforço do mestre que, cortando, limpando, observando, comparando, polindo, voltando a cortar, a limpar, a polir, faz da escrita o artifício beligerante e conciliador.

Obviamente precisaríamos de um longo espaço para tratar de atividades profissionais exercidas concomitantemente às do homem de letras. Montello desempenhou o papel de educador – lecionando em diversos países – e ocupou a reitoria da Universidade Federal do Maranhão. Sua devoção aos livros estendeu-se à prática de divulgá-los incansavelmente, fosse como cronista, jornalista ou palestrante, fosse na condição de diretor da Biblioteca Nacional ou na de membro da Academia Brasileira de Letras. As movimentações dos bastidores para chegar à Casa de Machado de Assis são brilhantemente retratadas pelo ensaísta José Neres em “Montello: o Benjamim da Academia”.

Tratei ligeiramente das obras jornalísticas, das crônicas, dos romances, dos ensaios e dos diários sem, no entanto, discorrer sobre “Os Tambores de São Luis”, atrelado à sua figura por boa parte do público. “Os Tambores de São Luis” é um grande romance – tanto no número de páginas quanto na construção do enredo, das metáforas e de paradigmas sintáticos – que versa... Você quer saber de que trata “Os Tambores de São Luis”? Procure a biblioteca mais próxima! Não perca tempo!

O tempo que você, leitor, gastar nos personagens humanamente fabulosos, nos relatos deliciosamente comuns e nos desfechos essencialmente sem grandes sobressaltos será recompensado pela percepção aprofundada das relações sociais, filosóficas e psicológicas tão bem desenvolvidas que chegam a ser algo incomodamente rotineiro, pessoal e revoltante. O impacto consiste na transmissão de histórias simples em linguagem refinada. Praticamente uma mistura de erudito e popular sem cair no popularesco nem se fechar no castelo de vidro. Alguém a fim de abrir “Os Tambores de São Luis” e percorrer suas quase setecentas páginas bebendo refrigerante, comendo pão de queijo e ouvindo ópera?

*Publicado originalmente na revista Conhecimento Prático Literatura, edição 37, p. 26-28.

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