Viajava para Paraguaçu Paulista na antevéspera do dia dos namorados quando o ônibus parou na Roseta, distrito da cidade. Viagens em ônibus circular não são nem mais nem menos cansativas, nem mais nem menos importantes. A diferença é o tempo. As viagens em ônibus circular geralmente são curtas, ligando uma cidade à outra, Presidente Prudente a Martinópolis, Inúbia Paulista a Adamantina, Assis a Maracaí ou Londrina a Sertanópolis.
Antes que a memória me traia, acrescento que o tempo não é a única diferença: as pessoas que viajam em ônibus circular são peculiares em cada trecho. O passageiro que vai de Prudente a Álvares Machado não é o mesmo que vai de Maringá a Florestópolis, nem semelhante ao que sai de Porto Alegre com destino a Gramado ou deixa Florianópolis com vontade de visitar Blumenau.
Rubem Alves, em mais de uma de suas crônicas, lembra o gosto pelo confronto facial. Entra no ônibus, no metrô, no avião, no navio e olha as faces, brincando nas tentativas de descobrir suas personalidades, seus gostos, suas histórias. Eu nunca presto atenção nas pessoas. Escolho um banco, me sento, pego um livro ou vislumbro as agregações simbólicas às paisagens naturais, permitindo-me o devaneio inexorável e confuso. Ora estou numa praia bebendo água de coco, ora estou numa sala de aula debatendo algum assunto literário, filosófico ou sociológico, ora estou viajando para algum país que tenho vontade de conhecer (e, sempre lembro a mim mesmo, não são poucos os países em que gostaria de permanecer umas longuíssimas semanas), ora estou fechado entre quatro paredes silenciosas...
Na antevéspera de dia dos namorados, minhas atenções se concentraram num casal da Roseta. O frio de mais ou menos catorze graus, cuja sensação térmica o reduzia a dez graus em função da chuva fina e constante, convidava qualquer pessoa de bom senso, sem obrigações, a se meter embaixo das cobertas, a assistir a algum programa televisivo ou filme, comer pipoca ou lasanha, beber chá, café ou chocolate quente.
Os passageiros que desembarcaram na Roseta saíam correndo em disparada para suas casas, pois ninguém esperava água e, consequentemente, ninguém levara guarda-chuva. O ônibus ainda parado esperava um homem, provavelmente setenta e cinco anos, passos lentos e movimentos comprometidos, levantar-se, mover-se e pegar as duas bolsas de viagem socadas atrás do último banco.
Quando desatrelou sua bagagem, uma mulher de poucos dentes parou à porta de saída, estacionou seu carro de mão. O homem pegou uma bolsa de viagem (verde, suja, zíperes estourados e compartimentos fechados com barbantes ou cordas), depositou no primeiro degrau. A mulher então puxou a bolsa para o segundo degrau, empenhou suas forças e a transportou para o carro de mão que, agüentando a pancada do peso, balançou de um lado a outro e ameaçou cair.
Em seguida, o homem pegou a segunda bolsa – tão mal cuidada quanto a primeira – colocou-a nas mãos da mulher que, com esforço semelhante ao anterior, ajeitou no carrinho de mão. A chuva aumentara sua força e já caía torrencialmente. A mulher ainda acomodou como pode as bagagens enquanto o homem voltava ao banco para recolher blusa de frio, guarda-chuva, chapéu e maleta velha. Desceu a escada, segurando-se ao balaústre. Em terra firme, equilibrado no chão encharcado, homem e mulher sorriram e, embaixo de chuva, deram um beijo. O ônibus partiu, retomando seu trajeto a fim de cumprir horários, de espalhar pessoas, de alavancar a vida, de criar idéias, de motivar o espírito, de realizar sonhos, de desfazer estragos, de gerar riqueza e empregos...
Quando cheguei a Paraguaçu Paulista, a imagem do casal invadiu-me os pensamentos. Esqueceria dele o quanto antes, entretanto a figura dos dois sorrindo e se beijando embaixo de uma chuva forte impregnou-me os sentidos a tal ponto de concordar parcialmente com Rubem Alves. As faces das pessoas, em muitas ocasiões, nos trazem grande felicidade. Especialmente se essa felicidade se mostra recheada de ações repletas de amor desinteressado.
*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno Tem!, Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 22 de julho de 2011.
Um comentário:
ótima crõnica!!!
Realmente, será que sabemos amar???
Vale uma reflexão!
Beijius
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