sábado, 6 de novembro de 2010

É SÓ UM TANGO

Para Márcia da Lolica





Márcia da Lolica freqüentou o curso de técnico em turismo comigo em fins da década de 1990. O curso valeu para firmar amizade. Alguns anos atrás acompanhei minha mãe a Echaporã onde ministraria a parte técnica de uma apostila de saúde aos voluntários da Pastoral da Criança. Na ocasião, Márcia disse que era Vicentônio 3p. Obviamente minha mãe – curiosa como todas as mães e boa parte das mulheres – quis saber por que me chamava assim. Explicou os 3p: paraibano, poliglota e poeta.



A primeira qualidade se constata na certidão de nascimento e por documentos oficiais que a atestam. A segunda característica se confirma pela minha atividade e pela formidável sensação de desvendar os escritores de língua inglesa, francesa e espanhola. Com o tempo, percebi que o terceiro adjetivo não passava de bondade de quem me via lendo poesia ou provavelmente por uns versos que escrevi em defesa da professora de história e sociologia da arte – por onde você anda apaixonável Maísa? – quando estivemos em viagens pelo interior de Minas Gerais.



O tempo me serviu de amigo e as leituras teóricas me guiaram na conclusão de que nem todo verso nem todo poema são necessariamente poesia. Nelson de Oliveira nos mostra em “Oficina do escritor” que a poesia tem tamanha força, indiscutível intensidade e incomparável amplitude que transcende qualquer forma sendo possível encontrá-la em filmes, romances, relatos historiográficos, econômicos ou filosóficos, nos meandros do cotidiano, nos sucessos quase improváveis e nas caídas sem volta. Uma bela imagem, um quadro tocante, uma música sem letra ou um suspiro podem constituir poesia. Depois da leitura de Nelson de Oliveira, passei a observar os detalhes da rotina. Muitos passam despercebidos – sou displicente, imaturo e intempestivo – e outros, na sua essência, se lançam na memória.



Quando abri a mensagem eletrônica de Márcia estranhei a frase: “É só um tango... mas que tango!”. O vídeo anexado trazia “La cumparsita”. A tela escura se abriu em dois fortes círculos que destacaram um casal: um sexagenário e uma balzaquiana. Os focos de luz apresentaram Carlos Copello e Alicia Monti trocando olhares, mudando de posição, aproximando-se e iniciando uma dança a que poderia facilmente denominar síntese do erotismo.



Uma vez precisei explicar a admiração pelos que escolhiam a Literatura infanto-juvenil e a Literatura erótica, provavelmente as duas vertentes narrativas mais difíceis de exercitar. Quem se envolve na Literatura infanto-juvenil deve considerar a inteligência, a perspicácia e o ritmo de crianças e adolescentes, prevenindo noções moralistas, mensagens estultas ou enredos extenuantes. Quem se joga na Literatura erótica precisa se concentrar nas técnicas indispensáveis para que o trabalho não caia no âmbito pornográfico. O limite entre pornografia e erotismo parece tênue, mas um pouco de leitura específica acompanhada de algumas reflexões nos mostram que pornografia e erotismo são diferentes.



Márcia trouxe-me então uma maneira prática, direta, objetiva e visual para ensinar o erotismo: a dança de tango simplesmente retira-me a capacidade de transpor ao texto as impressões, as sensações e as conseqüências da visualização dos passos cronometrados, acertados, encantadores e peremptórios. Não se trata do amasso dos corpos diante de músicas em que mulheres são chamadas de cachorras ou em que as rádios caipiras afrontam-nos com suas infindáveis canções de falsa nostalgia criadas às pressas em torno de uma mulher que se atém aos limites do machismo, mas de uma melodia em que os corpos, nas sensações de ida e volta, pasmo e retração, conquista e revolta, improviso e ensaios, vida e morte são postos numa relação de coordenação: mulheres e homens são iguais na medida de suas forças voluptuosas, no limite dos anseios insólitos de delírios e na perseguição da conquista, da vitória, do compartilhamento de emoções.



Se quiser uma boa aula de erotismo literário, acesse o vídeo de “La cumparsita” nos passos de Carlos Copello e Alicia Monti. Se conseguir transpor aquele sentimento ao papel, sinta-se um completo poeta, na acepção que Nelson de Oliveira confere ao termo.



Obrigado, Márcia! Esse é um dos melhores presentes que ganhei nos últimos anos. Como você escreveu: “É só um tango... mas que tango!”




*Publicado originalmente na coluna Ficções, Caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 5 de novembro de 2010.

Um comentário:

Anônimo disse...

Adorei suas palavras...e acabei de encontrar o que procuro...
Alice