- Bom dia, Sr. Arquimedes. A recepcionista me disse que o senhor gostaria de falar comigo. Estou à disposição.
A voz bem-humorada e extrovertida do contador irritou o cliente que, do outro lado, esfumaçava de ódio:
- Bom dia? Eu não sei se você sabe, mas abri a porta da garagem e, quando olhei para o chão, adivinha o que achei?
- Bom, começou o contador, ou o senhor encontrou seu cachorro, ou seu jornal, ou um bandido esperando o momento para o assalto. A cidade hoje está tão violenta! O que vamos fazer, não é mesmo?
- Não é mesmo! Abri a porta da garagem, um aviso de correspondência expressa. Peguei meu carro e antes de vir ao trabalho passei no correio. Por acaso você imagina o que estava me esperando no correio?
- Safadinho, gracejou o contador, aposto que eram produtos vedados para menores de idade. Quem diria, hein?
- Dê-se ao respeito. Sou um homem casado.
O contador percebeu o passo em falso. O cliente vociferou:
- Uma carta da Receita Federal! Dentro da carta, uma multa! Faz vinte e oito anos que pago imposto de renda e nunca levei uma multa. Desde que Dito França morreu e o filho passou o escritório para você, eu tenho tido dores de cabeça.
Enquanto explicava as possíveis razões da multa, abriu o arquivo na tela do computador e, equilibrando o telefone no ombro esquerdo, procurou os detalhes do tributo.
- O senhor viajou para Paris no ano passado. Primeira classe. Comeu nos melhores e mais caros restaurantes pagando com cartão de crédito, hospedou-se em um hotel cuja diária para casal totalizou três mil e setecentos reais nos doze dias, comprou eletrônicos, vinhos e queijos produzidos artesanalmente, presenteou sua mulher com um colar de brilhantes avaliado em oito mil dólares. E, infelizmente, o senhor não declarou esses valores.
- Perguntei se deveria declarar e você me respondeu negativamente!
- Eu disse que não deveria, mas eu não disse que não precisaria. Se o senhor não declarou, a responsabilidade é sua. Além disso, o senhor comprou dois carros importados, cento e trinta alqueires de terra no Uruguai, mil e duzentos bois também no Uruguai. Não declarou nem os carros, nem os alqueires, nem os bois!
- Você me disse que não deveria declarar os carros porque conseguiria a isenção com um primo diplomata. E a elisão fiscal? Você me disse para comprar terras no Uruguai porque pagaria menos imposto. Os bois são a mesma coisa.
Silêncio. O som dos dedos ao teclado:
- Verifiquei meus arquivos. Deveria ter se manifestado no ano passado, mas o senhor não demonstrou interesse. Não falei com meu primo. Os carros são frutos da ilegalidade. Em relação às terras, eu disse que poderia comprá-las promovendo, dessa maneira, a elisão fiscal que é o termo adequado para escolher a melhor maneira de pagar menos impostos. Entretanto, o senhor também não trouxe uma série de documentos.
- Mas, gaguejou o homem inconformado, levantando-se e depois voltando a se sentar na cadeira de plástico, você não deveria me informar para providenciar os documentos?
- Sr. Arquimedes, em tom de gozação, sou seu contador, mas não seu garoto de recados.
- Vou processá-lo. Colocá-lo atrás das grades!
- O senhor não pode me processar nem me colocar atrás das grades. Tenho obrigação de prestar serviços. Meus serviços foram prestados. Se eventualmente algum juiz maluco me condenar, desrespeitando a lei e a doutrina jurídica, meu advogado arrastará o processo por quinze ou vinte anos e, até lá, o senhor não existe mais. Seus filhos nem vão se lembrar disso.
- Eu pago setecentos reais por mês ao escritório. É assim que você me trata? Apunhalando-me? Jogando meu nome na lama de corruptos na Receita Federal? Não poderei tomar empréstimos em bancos, nem fazer financiamentos, nem mesmo servir de fiador para comprar o apartamento de meu filho. Meu filho vai casar em dois meses. Eu disse para ele que seria o fiador. E agora?
- Agora? O contador pigarreou, olhou o relógio sobre a mesa, mexeu numa tecla para retirar o descanso de tela: - Agora, o problema é seu. Afinal, quem está enrolado na Receita Federal por tentativas de fraude no imposto de renda é o senhor! A propósito, imagino conveniente rompermos a relação contador-cliente, pois o senhor provocou mal-estar e desconfiou de meu trabalho. Mando-lhe a conta pelo correio.
- Conta? Que conta?
- O senhor não acharia que ficaria todo esse tempo conversando com o senhor de graça, acharia?
*Publicado originalmente na coluna Ficções, no caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 18 de junho de 2010.
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