Desfilava algum tempo nas festas da escola, nas associações de produtores rurais, nas reuniões de igreja e nas quermesses. Num desses desfiles amadores, um olheiro descobriu o talento de andar firme e de sorrir sem se mostrar afetada. Entregou um cartão. Convidasse-o com antecedência para o próximo desfile.
Convite para um pequeno evento patrocinado por frigoríficos e indústrias alimentícias. O olheiro confirmou presença, acrescentando que levaria um avaliador da agência.
- Faça o melhor que você puder. Chame a atenção! Chame a atenção! Isso é o que importa.
Entre o dia do convite e o do desfile transcorreram três semanas durante as quais, por motivos desconhecidos, um garoto de metro e oitenta, olhos verdes, gírias roqueiras e cabelos pretos compridos e mal cuidados confidenciou atração.
- Te acho linda. Demais. Penso em você o dia inteiro.
Se, nos primeiros instantes, as conversas duravam em média cinco minutos, nos dias seguintes os dois passavam manhã, tarde e noite grudados. Às vésperas do desfile, a convicção do andar e o sorriso encantador se perderam nas tentativas frustradas de vestir bem o modelo da estilista local.
Para completar, por ciúmes de quem ainda nem se comprometera seriamente, o menino pediu que escolhesse: ou ele ou o desfile. Sem lágrimas, mas com aperto sensível nas têmporas e compasso avançado do coração, preferiu o desfile.
Ensaiou andando de um lado para outro na cozinha de casa, na sala de aula, no banheiro imenso da escola, nos jardins da praça pública, entre as prateleiras do supermercado e até na farmácia, levando o irmão para tomar besentassil, aproveitou a ligação da sala de intervenções ao balcão.
Ao entrar no camarim improvisado ao fim do prédio da administração, o maquiador recorreu a todos os potes coloridos para disfarçar as olheiras.
A organizadora trouxe uma xícara de café, meio copo de leite, duas torradas, três bolachas e metade de um mamão. Engoliu o café de uma vez, comeu uma torrada, uma bolacha. O estômago vazio causou ligeira queda de pressão, estagnada ao cair a cabeça entre as pernas. Respirou fundo, levou bronca por se alimentar mal, bebeu o leite, comeu a torrada e as bolachas remanescentes e, visivelmente recuperada, perfilou-se atrás da cortina, lábios no mamão, observando de soslaio o passeio displicente das modelos.
Ensaiou alguns passos e, antes de aplicar mais maquiagem para disfarçar as olheiras ainda gritantes, uma amiga a puxou pelo braço e apontou o governador, dois deputados, o prefeito, quatro vereadores e trinta puxa-sacos.
- Tens de fazer um desfile de arrasar. Todo mundo está te esperando. És a atração da noite.
O olheiro dissera para chamar a atenção. A amiga jogava a responsabilidade em suas costas. Um calafrio ainda percorreu o pescoço. Por que o quase namoradinho não estava ali? Um abraço apertado, um beijo de boa sorte, um carinho extemporâneo?
A comida e a água ainda causavam desconforto estomacal. Antes de voltar ao camarim, sentou-se numa caixa de madeira, respirou fundo, jogou a cabeça entre as pernas e, quando se levantou, os olhos da organizadora a fuzilaram silenciosamente.
Trocou de roupa, aplicou ainda mais maquiagem, retirou lingeries pretos que toldavam voluptuosamente o quadril, calçou a sandália de salto dezessete e se postou atrás de uma atriz de novela, também convidada para o evento. Depois da atriz, seu nome anunciado ecoou pelo ambiente, os aplausos irromperam e antes de entrar na passarela alguém disse para tomar cuidado com os fios elétricos, abertos desastrosamente pela modelo anterior.
Respirou fundo, adentrou radiante e os primeiros passos descobriram, ao fundo do rol de políticos distribuindo sorrisos e acenos, o namoradinho segurando um ramalhete de rosas entrecortadas de crisântemos. Embora disfarçada, a emoção não mediu esforços e a fez esquecer os fios acima do nível da passarela.
O pé esquerdo passou incólume, contudo o direito mal teve tempo de descolar do chão para puxar o eixo, encurtar a estrutura da caixa de som, derrubar duas luminárias, estourar a mesa de energia e – chamando a atenção como queria o olheiro e arrasando conforme exigira a amiga – presenciar as primeiras chamuscas difusas e anacrônicas.
*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 19 de março de 2010.
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