sábado, 27 de março de 2010

AFETOS E SOLIDÃO

Embora manuais e livros em geral enumerem princípios, regras e perspectivas de análise de poesia, arriscaria afirmar que, de algum modo, a boa poesia não pode ser lida integralmente por meios racionais, mas deve contar com a ajuda das afinidades e impressões entre leitor e texto. Daí que, para alguns, a boa poesia estaria longe de Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Fernando Pessoa, Antônio Lázaro de Almeida Prado ou Cecília Meireles.


Em poesia – e obviamente na Literatura de maneira geral – não existe velho ou novo, antigo ou moderno, chato ou legal. O que existem são as vozes poéticas saídas dos textos e infiltradas em nossas memórias. A tradição literária se mostra imprescindível. Quando rendem bons frutos, os trabalhos são festejados. Eis o caso de José Benjamim de Lima cujo livro de estréia, Solo de afetos, apresenta os riscos da tradição sem se perder pelo enfado de métricas e estilos rebuscados.


Benjamim reuniu alguns de seus poemas lavrados arduamente num livro de bolso cuja capa, estampando as cordas e a boca do violão, imprime, desde o primeiro momento, o ritmo de leitura: a mistura da música lírica, do rock, da valsa, do entretenimento, da conscientização, da filosofia.


Um exemplo lírico se observa em “Despedida”. O frêmito das mãos compõe a melodia de entrega, de desejo, de busca, de sonhos e da pressa pela iminência da separação, finalizado pela violência simbólica: “Por isso é tão urgente / O amor e a posse / E quase violento o corpo / A corpo da ternura”.


Alguns outros poemas são tão ritmados e aparentemente inspirados nas raízes simbolistas que se virassem melodias provavelmente se alçariam a valsas. Um desses exemplos é “Mote”:


Assim a mola
Salta
O grito grita aflito
A coma tomba
O tom
A tumba.
Assim o mote
A morte
Retorna sempre
A cor do não
O corte.
Assim o tempo gasta
O seixo, o eixo
E recomeça
Sempre
Assim.


Se a lírica e a valsa já se apresentaram em alguns versos, o romantismo não poderia ficar de fora desse rol de delicadezas. “Encontro” constitui a confissão da transcendência ofegante dos amantes. Embora o poema segrede os aspectos de sua composição, uma possível leitura nos remete ao desenho do amor noturno e, depois de corpos se enlaçarem furiosamente, o clímax se marca pelo silêncio inerente ao alcance do desejo. É como se a furiosa e estrondosa sinfonia de Beethoven parasse em tempos imprecisos, causando efeito em seus espectadores em decorrência do silêncio. O silêncio é mais importante do que o som, pois o silêncio também é música.


O romantismo contemporâneo aliado à melancolia do romantismo do século XIX suspira nos resquícios existenciais em “Lição de cores” a que, em contraponto leve e sensível, quase pueril, sobressai “Passarinho”.


Solo de afetos supera as pretensões de versos românticos e líricos ou meramente melodiosos quando, em uma aceleração e descontinuidade a que poderia chamar de rock ou de pulsação filosófica, questiona os limites sociais e afetuosos. O perigo, admoesta o angustiado de “Não me disseram”, corre por fora, tomando velocidade para entrar, arrombar e destroçar o comportamento interiorizado, proveniente do grupo, e quase cristalizado.


O arrombamento, o conflito e os vieses do comportamento grupal se consagram em “Putipossidetis” quando, magoado pelos contrastes e pelas dificuldades de ajustamento ou de adaptação, o questionamento sobre as relações verticais se resumem em duas linhas: “O poder espanta / O poder é foda”.


Embora a temática se disperse e se reagrupe implicitamente nos entrelaçamentos dos poemas, “Solo de afetos” supõe uma leitura cosmopolita, intimista e desordenada, nos permitindo abrir o livro em qualquer página, lendo-o de trás para frente, do meio para o fim ou aleatoriamente. Nesse caso, como nos ensinam os liames matemáticos, as alterações das parcelas não alteram o resultado da soma. Esse o papel de “Solo de afetos”, somar ternura, alegria e puerilidade à reflexão, revolta e mudanças.


***


SOLO DE AFETOS
José Benjamim de Lima – Edições Inteligentes – 120 p. – R$ 20,00


*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 26 de março de 2010.

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