Na edição de fevereiro do ano passado, Gerson Valle, membro da Academia Brasileira de Poesia e do conselho editorial do jornal Poiésis, escreveu artigo sobre as confluências entre Cinema e Literatura ao qual intitulou “Linguagens e Narrativas (cinematográficas e literárias)”. Inspirados nele, tentamos apontar algumas confluências entre Literatura e História.
Embora caminhem lado a lado, aproximem-se e confundam-se em algumas ocasiões, Literatura e História são teorias do conhecimento com metodologias e teorias próprias, compartilhando temas comuns a muitas disciplinas. Entre os temas compartilhados, nos limitamos ao interesse pela Verdade e às discussões prolixas sobre a Narrativa.
Se optarmos por uma visão foucaultiana da História, verdadeiros são os fatos documentados segundo fórmulas e procedimentos. A Verdade só será verdade se produzida de acordo com as regras estipuladas pelos operadores do campo historiográfico.
Se na História a Verdade prende-se rigorosamente aos fatos avaliados por um conjunto de regras, na Literatura a Verdade não possui nem reconhece fronteiras. Tanto a História quanto a Literatura podem lançar mão de documentos de outras épocas com a diferença de que a Literatura não precisa se fixar neles. O limite da Literatura flutua entre a imaginação de quem a concebe e a construção imagética e semântica de quem a aceita.
Igual na essência, a Verdade diferencia-se na aplicação individual, respeitando os meandros do campo em que se instala, possibilitando a transfiguração de fatos historiográficos em enredos literários ou de obras literárias em auxílio da constituição da História.
Atribuída aos textos que fogem das normas historiográficas, a Narrativa não institui privativamente o fazer literário: “Há, pois, diferença entre um simples relato, que pode ser um documento, e a literatura. Tal como o tamanho, literatura não é documento. É literatura” . (1) O simples ato de narrar fatos distancia-se da História, da Literatura, das Ciências Políticas, da Economia, do Direito etc.
Um homem se mata. Se é um homem comum ou de relevância razoável, a narrativa pode ser um relato de jornal. Se o homem é Getúlio Vargas, interessa à História e às Ciências Políticas. Se é João Gostoso, personagem de “Poema tirado de uma notícia de jornal”, de Manuel Bandeira, assume características literárias.
A Narrativa atua em campos diversos e, por essa razão, podemos pensar em Narrativas, no plural. Uma narrativa pode mudar de campo e atender a interesses diferentes. Dalton Trevisan, um dos maiores autores brasileiros do século XX, entre outras fontes, inspira-se em notícias de jornal para escrever seus contos. Problemas? Nenhum. Assim como o jornal estimula a criação literária também subsidia a construção historiográfica que aceita, quase sem preconceitos, os valores e os usos narrativos.
Recurso importante tanto na História quanto na Literatura, a arte de narrar compõe o centro das atenções textuais. Descrições e narrações representam mais da metade dos textos de História. Descrições e narrações não reproduzem os limites dos textos de Literatura.
O gênero mais conhecido da simbiose entre Literatura e História é o romance histórico que, no Brasil, tem o escritor gaúcho Luiz Antônio de Assis Brasil como principal representante contemporâneo. Os resultados mais visíveis da mixórdia entre História e Literatura são a historiografia literária, a crítica literária e a teoria literária, disciplinas que dispõem de nomes como Maria Eunice Moreira, Luiz Roberto Velloso Cairo, Wilson Martins, Marilene Weinhardt.
Ainda da mistura entre História e Literatura podem ser observados trabalhos historiográficos que recorrem à linguagem literária para sedimentar teorias, análises ou argumentos. Caso comumente citado em decorrência da refinada elaboração, Sérgio Buarque de Holanda, no capítulo “O semeador e o ladrilhador”, em “Raízes do Brasil”, discorre sobre as virtudes e os vícios na colonização da América Latina, valendo-se de comparações e de metáforas por meio das quais sintetiza seu esforço acadêmico, enriquecido pelos recursos semânticos.
Os argumentos do escritor podem ser desconsiderados ou ignorados pelo historiador que, por sua vez, se sentirá desconfortável vendo suas ponderações jogadas na correnteza do ridículo pelo literato. As concepções e variações de Verdade e de Narrativa – acrescentando também as de Imprensa, Imagem, Identidade, Nacionalismo, Imaginário, Memória, Ética, Religião, Justiça, Liberdade, Democracia, Política – não são equívocos nem na visão do escritor nem na percepção do historiador, pois cada intelectual recorre a sistemas e conceitos diferentes nas abordagens que, embora abrangentes, proporcionam interesses específicos.
O uso da Literatura beneficia o desenvolvimento do raciocínio, o aprofundamento da percepção na leitura do livro e do mundo, a intertextualidade (diálogo entre as linguagens universais), o estímulo à pluralidade e a compreensão das diferenças.
Uma iniciação ao romance histórico converte-se em porta de entrada à História. Apenas para ilustrar, “A margem imóvel do rio”, de Luiz Antônio de Assis Brasil, oferece compreensão multidisciplinar de linguagem trabalhada, de enredo habilmente construído, de personagens bem caracterizados e de encenação política. Só o título do livro já demonstra a mudança superficial, mas não estrutural, do regime político brasileiro na transição monárquico-republicana entre o século XIX e o XX.
A Literatura proporciona assimilação de reflexões filosóficas por parte dos leitores que, temerosos em enfrentar calhamaços incompreensíveis, identificam com facilidade temas tratados de maneira mais sensível, contudo sem perder a qualidade e sem abandonar a complexidade inerente ao desenvolvimento do pensamento crítico. Um exemplo é “O mundo de Sofia”, de Jostein Gaarder.
Alguns livros de Jorge Amado e de Graciliano Ramos proporcionam o entendimento e a repulsa das relações sociais deturpadas. A democracia, a autodeterminação dos povos e o direito soberano de escolhas constituem artefato político e histórico em Brecht, Orwell ou Saramago. A Literatura e o jornalismo mantêm o clássico debate da crônica como gênero híbrido e abre espaço para as discussões em torno do jornalismo literário e cultural.
Isso sem mencionar poemas que viraram música ou as adaptações de obras literárias para o cinema, a televisão e o teatro.
A Literatura propõe a fruição, o deleite e o prazer ao mesmo tempo em que provoca a reflexão, a percepção dos valores singulares na construção da identidade coletiva e o transcendentalismo pessoal.
Literatura é essencial e indispensável. Como escreveria sabiamente o crítico literário Antônio Cândido, é um direito inalienável e, acrescentamos, integra o rol das garantias dos Direitos Humanos.
Considerando respeitosamente os demais ramos do conhecimento, principalmente a História, base deste artigo, fazemos nossa declaração de apaixonados e de amantes: não há, não houve e não haverá ciência, teoria do conhecimento ou manifestação artística que se aproxime, que se iguale e muito menos que ultrapasse a Literatura, mais sublime mistério da genialidade.
(1)GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do conto. São Paulo: Ática, 2006, p. 12-13.
*Publicado originalmente na edição de março de 2009 do jornal literário Poiésis (Saquarema – RJ).
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