Na edição de fevereiro do ano passado, Gerson Valle, membro da Academia Brasileira de Poesia e do conselho editorial do jornal Poiésis, escreveu artigo sobre as confluências entre Cinema e Literatura ao qual intitulou “Linguagens e Narrativas (cinematográficas e literárias)”. Inspirados nele, tentamos apontar algumas confluências entre Literatura e História.
Embora caminhem lado a lado, aproximem-se e confundam-se em algumas ocasiões, Literatura e História são teorias do conhecimento com metodologias e teorias próprias, compartilhando temas comuns a muitas disciplinas. Entre os temas compartilhados, nos limitamos ao interesse pela Verdade e às discussões prolixas sobre a Narrativa.
Se optarmos por uma visão foucaultiana da História, verdadeiros são os fatos documentados segundo fórmulas e procedimentos. A Verdade só será verdade se produzida de acordo com as regras estipuladas pelos operadores do campo historiográfico.
Se na História a Verdade prende-se rigorosamente aos fatos avaliados por um conjunto de regras, na Literatura a Verdade não possui nem reconhece fronteiras. Tanto a História quanto a Literatura podem lançar mão de documentos de outras épocas com a diferença de que a Literatura não precisa se fixar neles. O limite da Literatura flutua entre a imaginação de quem a concebe e a construção imagética e semântica de quem a aceita.
Igual na essência, a Verdade diferencia-se na aplicação individual, respeitando os meandros do campo em que se instala, possibilitando a transfiguração de fatos historiográficos em enredos literários ou de obras literárias em auxílio da constituição da História.
Atribuída aos textos que fogem das normas historiográficas, a Narrativa não institui privativamente o fazer literário: “Há, pois, diferença entre um simples relato, que pode ser um documento, e a literatura. Tal como o tamanho, literatura não é documento. É literatura” . (1) O simples ato de narrar fatos distancia-se da História, da Literatura, das Ciências Políticas, da Economia, do Direito etc.
Um homem se mata. Se é um homem comum ou de relevância razoável, a narrativa pode ser um relato de jornal. Se o homem é Getúlio Vargas, interessa à História e às Ciências Políticas. Se é João Gostoso, personagem de “Poema tirado de uma notícia de jornal”, de Manuel Bandeira, assume características literárias.
A Narrativa atua em campos diversos e, por essa razão, podemos pensar em Narrativas, no plural. Uma narrativa pode mudar de campo e atender a interesses diferentes. Dalton Trevisan, um dos maiores autores brasileiros do século XX, entre outras fontes, inspira-se em notícias de jornal para escrever seus contos. Problemas? Nenhum. Assim como o jornal estimula a criação literária também subsidia a construção historiográfica que aceita, quase sem preconceitos, os valores e os usos narrativos.
Recurso importante tanto na História quanto na Literatura, a arte de narrar compõe o centro das atenções textuais. Descrições e narrações representam mais da metade dos textos de História. Descrições e narrações não reproduzem os limites dos textos de Literatura.
O gênero mais conhecido da simbiose entre Literatura e História é o romance histórico que, no Brasil, tem o escritor gaúcho Luiz Antônio de Assis Brasil como principal representante contemporâneo. Os resultados mais visíveis da mixórdia entre História e Literatura são a historiografia literária, a crítica literária e a teoria literária, disciplinas que dispõem de nomes como Maria Eunice Moreira, Luiz Roberto Velloso Cairo, Wilson Martins, Marilene Weinhardt.
Ainda da mistura entre História e Literatura podem ser observados trabalhos historiográficos que recorrem à linguagem literária para sedimentar teorias, análises ou argumentos. Caso comumente citado em decorrência da refinada elaboração, Sérgio Buarque de Holanda, no capítulo “O semeador e o ladrilhador”, em “Raízes do Brasil”, discorre sobre as virtudes e os vícios na colonização da América Latina, valendo-se de comparações e de metáforas por meio das quais sintetiza seu esforço acadêmico, enriquecido pelos recursos semânticos.
Os argumentos do escritor podem ser desconsiderados ou ignorados pelo historiador que, por sua vez, se sentirá desconfortável vendo suas ponderações jogadas na correnteza do ridículo pelo literato. As concepções e variações de Verdade e de Narrativa – acrescentando também as de Imprensa, Imagem, Identidade, Nacionalismo, Imaginário, Memória, Ética, Religião, Justiça, Liberdade, Democracia, Política – não são equívocos nem na visão do escritor nem na percepção do historiador, pois cada intelectual recorre a sistemas e conceitos diferentes nas abordagens que, embora abrangentes, proporcionam interesses específicos.
O uso da Literatura beneficia o desenvolvimento do raciocínio, o aprofundamento da percepção na leitura do livro e do mundo, a intertextualidade (diálogo entre as linguagens universais), o estímulo à pluralidade e a compreensão das diferenças.
Uma iniciação ao romance histórico converte-se em porta de entrada à História. Apenas para ilustrar, “A margem imóvel do rio”, de Luiz Antônio de Assis Brasil, oferece compreensão multidisciplinar de linguagem trabalhada, de enredo habilmente construído, de personagens bem caracterizados e de encenação política. Só o título do livro já demonstra a mudança superficial, mas não estrutural, do regime político brasileiro na transição monárquico-republicana entre o século XIX e o XX.
A Literatura proporciona assimilação de reflexões filosóficas por parte dos leitores que, temerosos em enfrentar calhamaços incompreensíveis, identificam com facilidade temas tratados de maneira mais sensível, contudo sem perder a qualidade e sem abandonar a complexidade inerente ao desenvolvimento do pensamento crítico. Um exemplo é “O mundo de Sofia”, de Jostein Gaarder.
Alguns livros de Jorge Amado e de Graciliano Ramos proporcionam o entendimento e a repulsa das relações sociais deturpadas. A democracia, a autodeterminação dos povos e o direito soberano de escolhas constituem artefato político e histórico em Brecht, Orwell ou Saramago. A Literatura e o jornalismo mantêm o clássico debate da crônica como gênero híbrido e abre espaço para as discussões em torno do jornalismo literário e cultural.
Isso sem mencionar poemas que viraram música ou as adaptações de obras literárias para o cinema, a televisão e o teatro.
A Literatura propõe a fruição, o deleite e o prazer ao mesmo tempo em que provoca a reflexão, a percepção dos valores singulares na construção da identidade coletiva e o transcendentalismo pessoal.
Literatura é essencial e indispensável. Como escreveria sabiamente o crítico literário Antônio Cândido, é um direito inalienável e, acrescentamos, integra o rol das garantias dos Direitos Humanos.
Considerando respeitosamente os demais ramos do conhecimento, principalmente a História, base deste artigo, fazemos nossa declaração de apaixonados e de amantes: não há, não houve e não haverá ciência, teoria do conhecimento ou manifestação artística que se aproxime, que se iguale e muito menos que ultrapasse a Literatura, mais sublime mistério da genialidade.
(1)GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do conto. São Paulo: Ática, 2006, p. 12-13.
*Publicado originalmente na edição de março de 2009 do jornal literário Poiésis (Saquarema – RJ).
terça-feira, 31 de março de 2009
quarta-feira, 18 de março de 2009
Eleições municipais: dois pesos, duas medidas
O “Jornal de Assis” de 7 de outubro apresentou um quadro das eleições municipais em nossa região destacando, entre outros pontos, os candidatos que venceram os pleitos para prefeito. Entre os reeleitos Ézio Spera e Carlos Arruda Garms, respectivamente prefeitos de Assis e de Paraguaçu Paulista.
O prefeito de Assis não apenas ganhou a eleição, mas também dobrou os votos recebidos em 2004. Em números proporcionais, obteve 83% dos votos. Ultrapassou alguns reeleitos no primeiro turno como Beto Richa (Curitiba/PR – PSDB), que atingiu 77,27%, e Ricardo Coutinho (João Pessoa/PB – PSB), que alcançou 73,85%.
O sucesso de Ézio deve-se ao trabalho dos últimos quatro anos. A Vila Prudenciana e o Jardim Paraná receberam dois postos de pronto-atendimento. Ruas foram asfaltadas. Principalmente aquelas na entrada da cidade, que descarregavam toneladas de areia na Avenida Getúlio Vargas.
Se por um lado a recondução de Ézio é compreensível, por outro, a de Carlos Arruda Garms reflete o despreparo e a falta de percepção da população. Prefeito entre 1997 e 2000, candidato à reeleição naquele último ano de mandato, Carlos Arruda Garms levou uma paulada nas urnas. Eleito em 2004 com esperanças de transformação, geriu uma administração morna.
Muitos são os problemas de Paraguaçu Paulista, mas dois se sobressaem: asfalto e publicidade dos atos administrativos.
O dinheiro público gasto na publicidade das façanhas da prefeitura poderia ter sido empregado no asfalto de ruas, na melhoria da saúde, na ampliação do acervo da biblioteca municipal, na criação de condições estruturais para atrair empresas. A prefeitura optou por produzir uma revista recheada de fotos mirabolantes enaltecendo o trabalho do governo municipal.
Interessados nos detalhes da “cidade maravilhosa”, requeremos ao prefeito informações claras sobre o destino de R$ 450.000,00 (quatrocentos e cinqüenta mil reais) que a Câmara de Vereadores devolvera à prefeitura bem como o montante gasto na confecção da revista cheia de fotos. Qual era o valor do superávit alcançado pela administração pública municipal, divulgado pela revista? Quantos cargos de confiança eram ocupados por parentes do prefeito e do vice-prefeito?
Um dos assessores do prefeito se recusou a explicar o paradeiro do dinheiro público. Se o dinheiro público é dinheiro do povo, por que o assessor do prefeito não queria apontar o destino do dinheiro do povo? O destino só foi esclarecido depois de denunciar a arbitrariedade constitucional à promotoria de justiça de Paraguaçu Paulista.
Se o dinheiro público em Paraguaçu Paulista fosse aplicado seguindo prioridades reais, as ruas do bairro Jardim Tênis Clube não seriam caminhos para dinossauros passarem. Por que o prefeito não dirige seu automóvel particular nas ruas do bairro para observar quanto prejuízo terá?
Quando o governo Carlos Arruda Garms se importará com os impostos pagos pelos contribuintes paraguaçuenses e investirá na infra-estrutura dos bairros? Que tal parar de gastar dinheiro com propaganda de governo e investir na qualidade de vida das pessoas? Bom sempre lembrar: o prefeito é EMPREGADO DO POVO.
O asfalto chegou ao Jardim Paulista e ao distrito de Conceição de Monte Alegre. E de que serviu sua chegada se já apresenta buracos e rachaduras? Onde está o asfalto de boa qualidade? Talvez se a prefeitura não tivesse comprado semáforos desnecessariamente, as ruas da cidade estariam pavimentadas. Pavimentadas com asfalto de boa qualidade!
Poderíamos detalhar outras mazelas, porém a falta de asfalto e de transparência do destino do dinheiro público (lembrando que dinheiro público significa dinheiro do povo) constituem fatores mais do que suficientes para perguntar: o que a população tem na cabeça quando respalda um governo como esse?
As eleições municipais decidiram-se por dois pesos e duas medidas. Assis é exemplo de Administração Pública, administração voltada para e pelo povo, em que os investimentos se refletem no desenvolvimento, na qualidade de vida, no bem-estar coletivo. E Paraguaçu Paulista?
Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis - SP) de 18 de março de 2009.
O prefeito de Assis não apenas ganhou a eleição, mas também dobrou os votos recebidos em 2004. Em números proporcionais, obteve 83% dos votos. Ultrapassou alguns reeleitos no primeiro turno como Beto Richa (Curitiba/PR – PSDB), que atingiu 77,27%, e Ricardo Coutinho (João Pessoa/PB – PSB), que alcançou 73,85%.
O sucesso de Ézio deve-se ao trabalho dos últimos quatro anos. A Vila Prudenciana e o Jardim Paraná receberam dois postos de pronto-atendimento. Ruas foram asfaltadas. Principalmente aquelas na entrada da cidade, que descarregavam toneladas de areia na Avenida Getúlio Vargas.
Se por um lado a recondução de Ézio é compreensível, por outro, a de Carlos Arruda Garms reflete o despreparo e a falta de percepção da população. Prefeito entre 1997 e 2000, candidato à reeleição naquele último ano de mandato, Carlos Arruda Garms levou uma paulada nas urnas. Eleito em 2004 com esperanças de transformação, geriu uma administração morna.
Muitos são os problemas de Paraguaçu Paulista, mas dois se sobressaem: asfalto e publicidade dos atos administrativos.
O dinheiro público gasto na publicidade das façanhas da prefeitura poderia ter sido empregado no asfalto de ruas, na melhoria da saúde, na ampliação do acervo da biblioteca municipal, na criação de condições estruturais para atrair empresas. A prefeitura optou por produzir uma revista recheada de fotos mirabolantes enaltecendo o trabalho do governo municipal.
Interessados nos detalhes da “cidade maravilhosa”, requeremos ao prefeito informações claras sobre o destino de R$ 450.000,00 (quatrocentos e cinqüenta mil reais) que a Câmara de Vereadores devolvera à prefeitura bem como o montante gasto na confecção da revista cheia de fotos. Qual era o valor do superávit alcançado pela administração pública municipal, divulgado pela revista? Quantos cargos de confiança eram ocupados por parentes do prefeito e do vice-prefeito?
Um dos assessores do prefeito se recusou a explicar o paradeiro do dinheiro público. Se o dinheiro público é dinheiro do povo, por que o assessor do prefeito não queria apontar o destino do dinheiro do povo? O destino só foi esclarecido depois de denunciar a arbitrariedade constitucional à promotoria de justiça de Paraguaçu Paulista.
Se o dinheiro público em Paraguaçu Paulista fosse aplicado seguindo prioridades reais, as ruas do bairro Jardim Tênis Clube não seriam caminhos para dinossauros passarem. Por que o prefeito não dirige seu automóvel particular nas ruas do bairro para observar quanto prejuízo terá?
Quando o governo Carlos Arruda Garms se importará com os impostos pagos pelos contribuintes paraguaçuenses e investirá na infra-estrutura dos bairros? Que tal parar de gastar dinheiro com propaganda de governo e investir na qualidade de vida das pessoas? Bom sempre lembrar: o prefeito é EMPREGADO DO POVO.
O asfalto chegou ao Jardim Paulista e ao distrito de Conceição de Monte Alegre. E de que serviu sua chegada se já apresenta buracos e rachaduras? Onde está o asfalto de boa qualidade? Talvez se a prefeitura não tivesse comprado semáforos desnecessariamente, as ruas da cidade estariam pavimentadas. Pavimentadas com asfalto de boa qualidade!
Poderíamos detalhar outras mazelas, porém a falta de asfalto e de transparência do destino do dinheiro público (lembrando que dinheiro público significa dinheiro do povo) constituem fatores mais do que suficientes para perguntar: o que a população tem na cabeça quando respalda um governo como esse?
As eleições municipais decidiram-se por dois pesos e duas medidas. Assis é exemplo de Administração Pública, administração voltada para e pelo povo, em que os investimentos se refletem no desenvolvimento, na qualidade de vida, no bem-estar coletivo. E Paraguaçu Paulista?
Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis - SP) de 18 de março de 2009.
terça-feira, 17 de março de 2009
Civilidade
Entre a raiva e o ódio estende-se a ponte da aversão. Por essa simples razão, qualquer coisa que façamos deve ser interrompida imediatamente se estivermos transitando por essa ponte. Por dois motivos óbvios. Primeiro, se temos raiva, perdemos a cordialidade e em breve nos livraremos do amor, do carinho e do respeito. Segundo, se nos aproximamos do ódio, a civilidade desaparece gradativamente e, no lugar dela, comportamentos autoritários, odiosos e incontroláveis podem se manifestar.
quinta-feira, 12 de março de 2009
Vamos fazer amor hoje à noite?
Do outro lado da rua gesticulou para a mulher em pé, esperando o ônibus. Olhou em redor. Apertou os olhos. Não lembrava de onde ou se o conhecia. Atravessou a rua. Sorriu:
- Vamos “fazer amor hoje à noite”?
O primeiro ímpeto, um tapa na cara. Ignorou-o, voltou a esperar o ônibus, agora ofegante. O trânsito não fluía, as buzinas dos veículos aumentavam na freqüência e na intensidade rotineira da saída das crianças das escolas e dos funcionários do comércio.
Girou. O rapaz atrás dela sorria, insistente:
- Vamos “fazer amor hoje à noite”?
Gritaria socorro, daria uma bolsada no focinho, chamaria a polícia. Pensava em que faria quando a indignação e a revolta submeteram-se à vaidade e ao deleite. Trinta e nove anos, quatro filhos, dez horas diárias de trabalho e faculdade noturna. Esquecera das amabilidades masculinas, dos benefícios de ser desejada, cortejada. Por que o ônibus demorava?
Encostou os lábios às orelhas dela.
- Vamos “fazer amor hoje à noite”?
A voz melodiosa de locutor de rádio AM apresentando programa de músicas românticas na madrugada eriçou-lhe os pêlos das pernas, arrepiou os do pescoço e quase a jogou num chão de êxtase e volúpia.
- Vamos “fazer amor hoje à noite”?
Seis mulheres e dois homens que entraram pela esquerda do ponto de ônibus transtornaram os passageiros com empurrões e gritos fortes.
Desequilibrou-se do salto. Ele a reteve:
- Vamos “fazer amor hoje à noite”?
Anotou um endereço num pedaço de papel fragmentado da agenda. Esperaria às nove.
- Te pego às sete e meia. Pontualmente!
Às sete e meia estacionou ao lado do museu onde ela trabalhava. A essência de “Anete” impregnou-se no carro assim que ela abriu a porta. Encetou animadamente uma conversa corriqueira.
O sorriso desfez-se no estacionamento do teatro municipal. Uma placa informava a estréia da comédia “Fazer amor hoje à noite”.
- Você não disse para minha mãe que nunca ia ao teatro?
*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 12 de março de 2009.
- Vamos “fazer amor hoje à noite”?
O primeiro ímpeto, um tapa na cara. Ignorou-o, voltou a esperar o ônibus, agora ofegante. O trânsito não fluía, as buzinas dos veículos aumentavam na freqüência e na intensidade rotineira da saída das crianças das escolas e dos funcionários do comércio.
Girou. O rapaz atrás dela sorria, insistente:
- Vamos “fazer amor hoje à noite”?
Gritaria socorro, daria uma bolsada no focinho, chamaria a polícia. Pensava em que faria quando a indignação e a revolta submeteram-se à vaidade e ao deleite. Trinta e nove anos, quatro filhos, dez horas diárias de trabalho e faculdade noturna. Esquecera das amabilidades masculinas, dos benefícios de ser desejada, cortejada. Por que o ônibus demorava?
Encostou os lábios às orelhas dela.
- Vamos “fazer amor hoje à noite”?
A voz melodiosa de locutor de rádio AM apresentando programa de músicas românticas na madrugada eriçou-lhe os pêlos das pernas, arrepiou os do pescoço e quase a jogou num chão de êxtase e volúpia.
- Vamos “fazer amor hoje à noite”?
Seis mulheres e dois homens que entraram pela esquerda do ponto de ônibus transtornaram os passageiros com empurrões e gritos fortes.
Desequilibrou-se do salto. Ele a reteve:
- Vamos “fazer amor hoje à noite”?
Anotou um endereço num pedaço de papel fragmentado da agenda. Esperaria às nove.
- Te pego às sete e meia. Pontualmente!
Às sete e meia estacionou ao lado do museu onde ela trabalhava. A essência de “Anete” impregnou-se no carro assim que ela abriu a porta. Encetou animadamente uma conversa corriqueira.
O sorriso desfez-se no estacionamento do teatro municipal. Uma placa informava a estréia da comédia “Fazer amor hoje à noite”.
- Você não disse para minha mãe que nunca ia ao teatro?
*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 12 de março de 2009.
sexta-feira, 6 de março de 2009
A águia e a galinha: um modelo de auto-ajuda?
O teólogo Leonardo Boff toma emprestada a fábula da águia e da galinha, transcrevendo-a em “O despertar da águia”, para tratar das possibilidades de transformação a que estamos submetidos. De acordo com a fábula, um homem encontra uma águia e passa a criá-la entre galinhas. Depois de adulta, insiste diversas vezes para que alce vôo, enfrente desafios. Porém, a águia teima em se desligar do papel aprendido no galinheiro. As frustrações são abandonadas quando, do alto de uma montanha, o homem insiste novamente e testemunha a ave rasgando as nuvens.
Para alguns leitores do teólogo, a metáfora da águia e da galinha representa uma simbolização da auto-ajuda. Essa possível interpretação pode ser deixada de lado se pensarmos no inatismo que, teoricamente, somos capazes de desenvolver. De acordo com essa teoria, possuiríamos algumas características que facilitariam o desenvolvimento de algumas habilidades. Isso justificaria por que algumas pessoas que nunca tocaram violão ou piano começam a estudar os instrumentos e saem entoando músicas diversas ou por que alguém que nunca gostou de estudar rapidamente adquire conhecimentos matemáticos, filosóficos ou epistemológicos.
Assim como a águia de Boff, o conhecimento armazena-se dentro das pessoas, esperando a oportunidade adequada para se manifestar. Alguns o conseguem por sorte. Acordam um dia e pronto: são engenheiros. Outros, conseguem por esforço: estudam anos a fio as estruturas, os esquemas de física, alguns episódios de química e de biologia, as nuances geográficas e, mesmo assim, mesmo se dedicando intensamente, conseguem operar no grau médio de satisfação.
Por um sentimento que não conseguimos manifestar, experimentamos alguns bloqueios para escrever. Se é difícil escrever uma redação escolar ou acadêmica, um relatório ou uma monografia de conclusão de curso ou de especialização, não seria totalmente impossível compor uma obra literária de qualidade? Certamente não é a resposta adequada se considerarmos que a águia, mesmo vivendo entre galinhas, conseguiu se livrar de suas limitações para lançar vôo sobre o desconhecido.
Da mesma forma que a águia abandonou sua condição de galinha – visão de pouco alcance – para efetivamente se transformar em águia – em espírito e em ação, qualquer um pode escrever numa perspectiva literária.
Alguns terão uma inclinação natural, se optarmos pelo inatismo e pela fábula da águia e da galinha, mas certamente todos nós disporemos de mecanismos eficientes para aprender a criar enredos, personagens, ambientes e desfechos regulares que, dependendo da sorte e do mercado editorial, serão consagrados. Tudo se resume a duas palavras: leitura e prática. O que estamos esperando para começar a ler mais e escrever mais? Quando teremos nossos primeiros romancistas, cronistas, poetas, contistas, dramaturgos e ensaístas discutindo teorias, acertando planos de expansão literária e encontrando, entre nós mesmos, trabalhos literários de qualidade?
*Publicado originalmente no Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de cinco de março de 2009.
Para alguns leitores do teólogo, a metáfora da águia e da galinha representa uma simbolização da auto-ajuda. Essa possível interpretação pode ser deixada de lado se pensarmos no inatismo que, teoricamente, somos capazes de desenvolver. De acordo com essa teoria, possuiríamos algumas características que facilitariam o desenvolvimento de algumas habilidades. Isso justificaria por que algumas pessoas que nunca tocaram violão ou piano começam a estudar os instrumentos e saem entoando músicas diversas ou por que alguém que nunca gostou de estudar rapidamente adquire conhecimentos matemáticos, filosóficos ou epistemológicos.
Assim como a águia de Boff, o conhecimento armazena-se dentro das pessoas, esperando a oportunidade adequada para se manifestar. Alguns o conseguem por sorte. Acordam um dia e pronto: são engenheiros. Outros, conseguem por esforço: estudam anos a fio as estruturas, os esquemas de física, alguns episódios de química e de biologia, as nuances geográficas e, mesmo assim, mesmo se dedicando intensamente, conseguem operar no grau médio de satisfação.
Por um sentimento que não conseguimos manifestar, experimentamos alguns bloqueios para escrever. Se é difícil escrever uma redação escolar ou acadêmica, um relatório ou uma monografia de conclusão de curso ou de especialização, não seria totalmente impossível compor uma obra literária de qualidade? Certamente não é a resposta adequada se considerarmos que a águia, mesmo vivendo entre galinhas, conseguiu se livrar de suas limitações para lançar vôo sobre o desconhecido.
Da mesma forma que a águia abandonou sua condição de galinha – visão de pouco alcance – para efetivamente se transformar em águia – em espírito e em ação, qualquer um pode escrever numa perspectiva literária.
Alguns terão uma inclinação natural, se optarmos pelo inatismo e pela fábula da águia e da galinha, mas certamente todos nós disporemos de mecanismos eficientes para aprender a criar enredos, personagens, ambientes e desfechos regulares que, dependendo da sorte e do mercado editorial, serão consagrados. Tudo se resume a duas palavras: leitura e prática. O que estamos esperando para começar a ler mais e escrever mais? Quando teremos nossos primeiros romancistas, cronistas, poetas, contistas, dramaturgos e ensaístas discutindo teorias, acertando planos de expansão literária e encontrando, entre nós mesmos, trabalhos literários de qualidade?
*Publicado originalmente no Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de cinco de março de 2009.
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