terça-feira, 29 de janeiro de 2019

BOLSA DE EMERGÊNCIA


Outro dia o telefone tocou por volta das cinco e meia da manhã. Sem escovar os dentes ou tomar banho ou beber uma xícara de café ou de chá, vesti o primeiro calção que me apareceu na frente (comicamente um de futebol), uma camisa, meias e tênis, peguei o carregador e os telefones, a carteira, a chave do carro e as do escritório, meti-me no veículo e vinte minutos depois estacionava em Paraguaçu Paulista.
Despendi o dia indo ao hospital e, em seguida, pondo-me de vigília, encerrada por volta das três tarde. Entre a saída de casa e o fim do trabalho, peguei-me muitas vezes cansado de vasculhar as informações de redes sociais ou do site de notícias, refletindo sobre a necessidade de ter à disposição uma “bolsa de emergência”.
Como o nome diz, usa-se a tal bolsa em emergência. Caso o telefone dispare de madrugada – ou mesmo entre o início e o fim do horário comercial – pega-se a bolsa e segue-se ao destino. Dentro dela, o básico: dois pares de meias, cinco cuecas, uma calça social e uma jeans, um calção, duas camisas de mangas longas, duas camisetas, escova, creme dental, sabonete Phebo, anti-perspirante, fio dental, perfume. Obviamente cinco ou seis livros: três de crônicas, dois de poesia, um de contos ou de romance. Embora dedique-me à dramaturgia há seis anos, não levaria nenhum título. Motivo simples: como diria um grande professor, dramaturgia não é como romance que, ocorreu algum imprevisto, a gente para a leitura, retomando-a sem problemas dois dias ou duas semanas depois.
Talvez papéis avulsos – inteligentemente um bloco de notas – coubessem na bolsa, acompanhados sempre de duas ou três canetas. O telefone celular ajuda bastante nas anotações, mas, diferentemente das canetas e dos papéis, eles jamais vão nos deixar na mão por falta de bateria, dificuldade de encontrar uma tomada, travar ou ser invadido por vírus que nem mesmo os brilhantes técnicos de eletrônicos arrumam soluções para erradicar.
Andei pensando se poderia encaixar outros itens na bolsa, porém acredito que, por um ou dois dias, os listados acima seriam mais do que suficientes. O que você levaria em sua “bolsa de emergência”?

terça-feira, 22 de janeiro de 2019

JANTAR DOS DEUSES


Aceita prontamente o convite do amigo para jantar na casa da mãe. Conhece tanto a casa quanto a mãe desde o período em que ele e o amigo jogavam futebol na Barra Funda. Ele, centroavante; o amigo, goleiro. A primeira lembrança toma conta da imaginação: suculentos pedaços de alcatra, farofa, vinagrete, arroz carreteiro – especialidade materna – e inúmeras garrafas de Coca-Cola.
Desde a mudança do amigo para Noruega – trabalha numa organização ambiental – catorze anos atrás, limita-se a trocar algumas mensagens pelas redes sociais e pelo zap. Agora, férias de janeiro, encontra-o casualmente na banca de revistas, reconhece-o pela tatuagem de bola empacando no travessão, abraça-o, recebe o convite do jantar.
Acorda por volta das seis da manhã. Escova os dentes. Faz a barba. Toma banho e xícara de café. Come dois pães com ovo. Volta a tomar café. Lê o jornal. Anota os itens da compra de supermercado. Telefona para o veterinário. À porta do apartamento, conversa com a vizinha sobre os problemas hidráulicos. Orienta o porteiro a redobrar a segurança. Caminha pelo comércio. Sabendo do suculento jantar, restringe o almoço a três tomates: - Quanto mais espaço, mais eu como, sorri, feliz.
Graças aos programas de piadas na internet, a tarde passa rapidamente. À casa da mãe do amigo, as vistas escurecem, denunciando a fome. Relembra da velha sala, dos filmes pornográficos da adolescência, do pai do amigo tocando violão. Estranha a ausência do cheiro do churrasco. Entre uma conversa e outra, passam-se quase duas horas ao fim das quais o amigo convoca à churrasqueira.
- Espero que gostem! Um jantar para saudar a mãe natureza!
Sobre a mesa, tomates, alfaces, rúculas, pepinos, uvas, maçãs, bananas, berinjelas, morangos, laranja, manga...

terça-feira, 15 de janeiro de 2019

POR QUE CONTINUAR LENDO SCLIAR?


Escritor festejado até mesmo pelos teóricos da literatura, Italo Calvino lista os motivos que levam um título qualquer a se tornar clássico. Ressalta, entre seus mandamentos, o de que um clássico é aquele que nunca deixa de falar algo novo. Acredito que este seja o segundo motivo que me levou à paixão pelo trabalho de Scliar; o primeiro certamente é a capacidade de aprofundar-se nas temáticas por meio de seu estilo simples, fluido e hipnotizante.
Justamente por nunca deixar de nos trazer algo novo, Sonia Pascolati, Celina Gomes e eu organizamos o DE FIGURA FEMININA? – OS PERFIS DA MULHER NA OBRA DE MOACYR SCLIAR. O livro – publicado pela Editora da Universidade Estadual de Londrina (EDUEL) em 2018 – analisa as representações do feminino na obra do escritor gaúcho. Dele participam Maria da Gloria Bordini (Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS), Maria Eunice Moreira (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS), Diego Luiz Miiler Fascina (Universidade Estadual de Maringá – UEM), Wilma Coqueiro (Universidade Estadual do Paraná – UNESPAR), Sandro Adriano da Silva (Universidade Estadual do Paraná – UNESPAR), Wilton Carlos Lima da Silva (Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho – UNESP), Celina Gomes (Instituto Federal do Paraná – IFPR) e Rinaldo Brandão (Universidade Estadual da Paraíba – UEPB).
Embora as temáticas relacionadas à libertação feminina jamais tenham se tornado projeto literário – declarado ou claudicante – do escritor gaúcho, Moacyr Scliar cria personagens que, ou na condição principal ou em posição coadjuvante, captam o espírito das principais lutas emancipatórias femininas do século passado, mas presente em todos os tempos. Assim, as/os pesquisadoras/es debruçam-se sobre seis romances – “Os deuses de Raquel”, “O ciclo das águas”, “O centauro no jardim”, “Cenas da vida minúscula”, “A mulher que escreveu a bíblia” e “Manual da paixão solitária” – e um conto – “Memórias de uma anoréxica”.
Para quem gosta de (boa) literatura e deseja comprar o livro, basta clicar no link abaixo:




terça-feira, 8 de janeiro de 2019

FORA DE MODA


Percebe a mudança nos últimos tempos: Roberto Carlos mantém a posição, entretanto muda de estilo. Do topo das mais românticas assume o primeiro lugar das mais bregas. Os espetáculos de fim de ano perdem audiência. As fórmulas de apresentação, luzes, palco, figurinos, caras e bocas se repetem incansavelmente. Possível até mesmo descobrir quais músicas não faltarão ao repertório naquela noite.
Talvez por essa razão silencie sobre gostos, amores e preferências musicais durante o jantar marcado por meio de um site de relacionamentos. Desde a separação da última namorada, um ano e meio antes, tenta algum encontro. Contudo, a calvície avassaladora, o corpo apresentando as manifestações dos muitos quilos acima do ideal, os problemas financeiros – o levaram a devolver a moto e o carro financiados – e os imbróglios na Justiça por causa da pensão impedem a busca da felicidade.
Ela fala do governo, do descontrole da inflação, das correrias de amigos em busca de aposentadoria, de desemprego, da volta por cima, de como trocara a gerência de agência de banco em São Paulo pelo cargo de professora do estado numa cidade de pouco menos de dez mil habitantes e, aprovada recentemente no concurso da prefeitura de Curitiba, das dificuldades de adaptação à capital dos paranaenses, conhecida especialmente pelos contos de Dalton Trevisan, a quem dedicara dois anos e seis meses de estudos contínuos em um mestrado.
Ele – mal fala – concorda com seus posicionamentos. Vez ou outra articula mais de cinco sílabas. Antes de caírem no silêncio, ela retoma a conversa. Ele a observa: anos mais nova, vida tão agitada e tão cheia de histórias. O garçom leva a conta. Dividem: ele, dinheiro; ela, cartão de crédito; ele, balas; ela, café. Os dois, frases comuns à despedida.
Ele sugeriria esticarem a algum bar ou mesmo até sua casa. Cerveja ou vinho. Beijos, abraços, sexo. Ela aceitaria sem resistências. Despedem-se.
Já em casa, solitariamente procuram novos rostos nas redes sociais para, em breve, jantarem, conversarem, terminarem a noite ouvindo solitariamente as melhores do rei. Roberto Carlos: tão fora de moda, tão permanente.

terça-feira, 1 de janeiro de 2019

O DESAFIO DOS 2.200 TOQUES


Anos atrás Sergio Cabral, jornalista e, coincidentemente, pai do ex-governador do Rio de Janeiro, tratava dos problemas iniciais de sua carreira na imprensa: instado a ajudar no fechamento da edição, precisava de uma palavra com dezesseis letras. Nem uma a mais, nem a menos.

Dezenas de cronistas já escreveram sobre a folha em branco, a falta de ideia, a ausência de estímulo, a inspiração cambaleante ou o texto imperfeito. Depois de quase seis anos sem a crônica diária, desenvolvida inicialmente em Assis e, depois, em Presidente Prudente, enveredando pelo doutorado e afogando-me nos oceanos de processos do escritório, volto-me ao desafio de, em 2019, publicar uma crônica semanal contendo, no máximo, dois mil e duzentos toques.
Obviamente não me atreverei a, nos moldes de Cabral, escrever o número exato e perfeito de caracteres propostos no título, mas depois de pouco mais de meia década dedicando-me a escrita acadêmica – tese, artigos e resenhas científicas, relatórios – e à jurídica – pareceres e peças – cria-se a impressão da perda de capacidade de decifrar poeticamente o cotidiano.
Talvez seja essa a finalidade do cronista: escrever sobre o cotidiano, resgatando, das situações invisíveis, os sabores que os saberes nos ajudam a decifrar. Saberes e sabores são conceitos emprestados de Barthes por Rubem Alves. Segundo o brasileiro, filósofo e cronista de primeira grandeza, a vida alcança sua finalidade quando sabemos vivê-la com sabor.
O automóvel é um saber, mas tem importância quando nos traz um sabor: uma viagem às cidades históricas de Minas ou do Rio, um socorro a quem precisa de hospital, o pôr-do-sol acompanhando o longo trajeto de quem busca amor, o último passeio de quem acredita na salvação médica. Quando se tem carro apenas pela propriedade, temos um saber que nada tem de sabor. Já imaginou pagar 48 ou 60 parcelas do financiamento, seguro, IPVA, manutenção (troca de óleo e de pneus, balanceamento e alinhamento, lavagem, aplicação de cera, substituição de molas) para jamais cortar o país de uma ponta a outra?
A vida é feita de saberes. A vida é feita de sabores. Aprenderemos a saboreá-la em 2.200 toques semanais durante o ano de 2019?