Obrigação
antes da diversão. Já ouviram falar isso? Quando criança, meu pai verificava os
cadernos, fiscalizava os livros... Além das tarefas da escola, sobravam-me as
de matemática que ele deixava. Sempre arrumava desculpa para entregá-las pela
metade ou não fazê-las, argumentando que estudava muito e divertia-me pouco.
Daí – não apenas meu pai, mas minha avó, minha mãe, meus parentes mais velhos –
aconselhavam-me e advertiam-me que a obrigação precedia a diversão.
Não
sei se vocês já passaram por situação semelhante. Basta me dedicar a estudar
para concurso ou prova importante, na elaboração de trabalho cujo prazo vencerá
nos próximos dias, na solução de atividade complicada para que, ao mesmo tempo,
surja vontade incontrolável de tomar sorvete (nem gosto muito de sorvete), de assistir
a algum filme, de viajar para cidades vizinhas, de comer num restaurante de
Rancharia, de imaginar passeios com a namorada pelas estradas singulares do Rio
Grande do Sul, de desenvolver idéias para crônicas ou ensaios literários ou
filosóficos, análises sociológicas ou opiniões historiográficas. Abandono o
amontoado de livros, de notas, de cadernos e de fotocópias e me meto nos
prazeres que deveriam ser secundários.
Quando
estava no mestrado, precisava ler dois livros para terminar artigo de congresso.
Quinze dias mais do que suficientes para amadurecer a idéia e colocá-la no
papel. Nesse meio tempo, descobri obras de Josué Guimarães, Moacyr Scliar e
Luiz Antônio de Assis Brasil de modo que, sem pensar três vezes, lasquei-me na
leitura contínua e prazerosa – acho que prazerosa porque não deveria ser feita
naquele instante – que me tomou exatos doze dias ao fim dos quais tranquei-me
desesperadamente no quarto a concluir o artigo.
Em
outra ocasião, precisei limpar meu quarto. Abri meu guarda-roupa: fotos,
papéis, documentos, livros, discos de áudio e de vídeo de documentários, de
óperas, de música clássica e de Altemar Dutra, sabonetes, meias, cuecas,
camisas, calças, dinheiro, cartas, certificados, gravatas, fones de ouvido,
cartões de aniversário e de crédito, toalhas, cobertores, mais livros,
instrumentos de higienização de unhas, perfumes, creme e aparelhos de barbear,
hidratantes...
A
previsão inicial de uma manhã de limpeza transformou-se em quase três dias. Como
acho que acontece com boa parte, contextualizava cada objeto que pensava que
não existia mais. Pega-se uma foto, identificam-se as pessoas, lembra-se do
lugar em que estavam, que tempo fazia, o que conversaram, por que se reuniram,
se aconteceu algo engraçado, quem era bacana ou mal-amado, o destino dos
sorridentes e, de repente, procura-se caderneta de telefones, endereços físicos
ou eletrônicos. Tarde de sábado: tarifa nesse horário é mais econômica. Liga-se
ao interior do Paraná, capital do Piauí, litoral da Paraíba, periferia do Rio
de Janeiro... As pessoas trocaram ou venderam os números, não se lembram da
gente, estão de má vontade, cortam nosso diálogo, inventam histórias
mirabolantes para esconderem os fracassos ou esnobam o patrimônio para provar
que juntaram dinheiro. Mas, qual a importância de tudo isso? Nenhuma. A única
coisa certa é que se deixa a obrigação de arrumar o quarto e o guarda-roupa
pela diversão de procurar pessoas que, a gente sabe, nem têm muita importância
assim.
Ou,
numa hipótese semelhante, um livreto de receitas cai e imediatamente a boca
enche d’água por um prato e, novamente, sem pensar três vezes, abandona-se a
obrigação de faxina para se lançar à cozinha e gastar o resto da tarde na
preparação de quitutes que, logo se verá, não são tão deliciosos quanto os de
anos antes. Voltamos então ao quarto para concluir a arrumação. Um documentário
sobre a vida de escritores aparece e, sem mais nem menos, o aparelho de DVD
exibe as imagens, os comentários, as análises, as músicas... Que importância
tem aquele documentário que se assiste e, já se percebe, fez com que
anoitecesse sem que se terminasse a limpeza? A mesma importância que tem o
espírito em saber que a obrigação vem antes da diversão, mas nada é tão
divertido quanto jogar a obrigação de lado e se dedicar às atividades
insignificantes, irrelevantes, anódinas, prazerosas.
*Publicado
originalmente na coluna Ficções,
caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 9 de março de 2012.
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