sexta-feira, 9 de março de 2012

OBRIGAÇÃO


Obrigação antes da diversão. Já ouviram falar isso? Quando criança, meu pai verificava os cadernos, fiscalizava os livros... Além das tarefas da escola, sobravam-me as de matemática que ele deixava. Sempre arrumava desculpa para entregá-las pela metade ou não fazê-las, argumentando que estudava muito e divertia-me pouco. Daí – não apenas meu pai, mas minha avó, minha mãe, meus parentes mais velhos – aconselhavam-me e advertiam-me que a obrigação precedia a diversão.



Não sei se vocês já passaram por situação semelhante. Basta me dedicar a estudar para concurso ou prova importante, na elaboração de trabalho cujo prazo vencerá nos próximos dias, na solução de atividade complicada para que, ao mesmo tempo, surja vontade incontrolável de tomar sorvete (nem gosto muito de sorvete), de assistir a algum filme, de viajar para cidades vizinhas, de comer num restaurante de Rancharia, de imaginar passeios com a namorada pelas estradas singulares do Rio Grande do Sul, de desenvolver idéias para crônicas ou ensaios literários ou filosóficos, análises sociológicas ou opiniões historiográficas. Abandono o amontoado de livros, de notas, de cadernos e de fotocópias e me meto nos prazeres que deveriam ser secundários.



Quando estava no mestrado, precisava ler dois livros para terminar artigo de congresso. Quinze dias mais do que suficientes para amadurecer a idéia e colocá-la no papel. Nesse meio tempo, descobri obras de Josué Guimarães, Moacyr Scliar e Luiz Antônio de Assis Brasil de modo que, sem pensar três vezes, lasquei-me na leitura contínua e prazerosa – acho que prazerosa porque não deveria ser feita naquele instante – que me tomou exatos doze dias ao fim dos quais tranquei-me desesperadamente no quarto a concluir o artigo.



Em outra ocasião, precisei limpar meu quarto. Abri meu guarda-roupa: fotos, papéis, documentos, livros, discos de áudio e de vídeo de documentários, de óperas, de música clássica e de Altemar Dutra, sabonetes, meias, cuecas, camisas, calças, dinheiro, cartas, certificados, gravatas, fones de ouvido, cartões de aniversário e de crédito, toalhas, cobertores, mais livros, instrumentos de higienização de unhas, perfumes, creme e aparelhos de barbear, hidratantes...



A previsão inicial de uma manhã de limpeza transformou-se em quase três dias. Como acho que acontece com boa parte, contextualizava cada objeto que pensava que não existia mais. Pega-se uma foto, identificam-se as pessoas, lembra-se do lugar em que estavam, que tempo fazia, o que conversaram, por que se reuniram, se aconteceu algo engraçado, quem era bacana ou mal-amado, o destino dos sorridentes e, de repente, procura-se caderneta de telefones, endereços físicos ou eletrônicos. Tarde de sábado: tarifa nesse horário é mais econômica. Liga-se ao interior do Paraná, capital do Piauí, litoral da Paraíba, periferia do Rio de Janeiro... As pessoas trocaram ou venderam os números, não se lembram da gente, estão de má vontade, cortam nosso diálogo, inventam histórias mirabolantes para esconderem os fracassos ou esnobam o patrimônio para provar que juntaram dinheiro. Mas, qual a importância de tudo isso? Nenhuma. A única coisa certa é que se deixa a obrigação de arrumar o quarto e o guarda-roupa pela diversão de procurar pessoas que, a gente sabe, nem têm muita importância assim.



Ou, numa hipótese semelhante, um livreto de receitas cai e imediatamente a boca enche d’água por um prato e, novamente, sem pensar três vezes, abandona-se a obrigação de faxina para se lançar à cozinha e gastar o resto da tarde na preparação de quitutes que, logo se verá, não são tão deliciosos quanto os de anos antes. Voltamos então ao quarto para concluir a arrumação. Um documentário sobre a vida de escritores aparece e, sem mais nem menos, o aparelho de DVD exibe as imagens, os comentários, as análises, as músicas... Que importância tem aquele documentário que se assiste e, já se percebe, fez com que anoitecesse sem que se terminasse a limpeza? A mesma importância que tem o espírito em saber que a obrigação vem antes da diversão, mas nada é tão divertido quanto jogar a obrigação de lado e se dedicar às atividades insignificantes, irrelevantes, anódinas, prazerosas.



*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 9 de março de 2012.

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