Já
tinha ouvido, em outras ocasiões, a frase que Camilo Castelo Branco eternizou
num trecho de “Amor de perdição”: “Vão-se os anéis, ficam-se os dedos”. Quase
um aforismo, a sentença nos questiona sobre a essencialidade: o que é indispensável
ao cotidiano? Alguns responderão que o pai, a mãe, os irmãos, a namorada, os
filhos, o carro comprado em trinta e seis, quarenta e oito ou sessenta meses, a
casa financiada, a chácara adquirida com a aposentadoria ou o dinheiro das
viagens regulares aos países da América Latina e aos estados brasileiros...
São
tantas as prioridades que nos perdemos entre dezenas de essencialidades, mas um
passeio pelo dicionário nos mostra que essencial é o imprescindível. O
automóvel, a casa ou a chácara são necessários ao cotidiano, entretanto não são
indispensáveis. A perda da casa nos leva ao aluguel, à residência de parentes
ou ao abrigo oferecido pela prefeitura. A falta de carro nos faz conhecer
melhor a cidade pelos passeios de moto, de ônibus, de bicicleta ou a pé
melhorando, em algumas situações, a disposição e o condicionamento físicos e as
taxas de diabetes, colesterol, pressão alta. A chácara – geralmente usada nos
fins de semana quando reunimos parte da família ou os amigos – indispensável?
Algumas
pessoas empenharam-se em trabalhar a vida inteira para, na aposentadoria,
filhos formados, netos a caminho e preocupações financeiras diminuídas,
dedicarem-se às viagens. Primeira visita ao mar, ao Pão de Açúcar, ao Cristo
Redentor, aos museus paulistanos, às belezas do litoral catarinense ou às
vinícolas e cidades agrícolas do Rio Grande do Sul, aos blocos de carnaval de
João Pessoa ou às peculiaridades do Bumba-meu-boi no Maranhão... As viagens são
indispensáveis?
Ainda
existem os pais, as mães e os filhos. Você – que passa os olhos por essas
linhas e lembra-se imediatamente da mãe, do pai ou do filho – me questionará a
legitimidade de tocar em assunto tão delicado uma vez que nunca perdi nem pai,
nem mãe, nem filhos. Pai, mãe e filhos não seriam essenciais, indispensáveis,
insubstituíveis?
Concordo
se responderem que pai, mãe e filhos são insubstituíveis, mas discordo se
afirmarem que são indispensáveis. Indispensáveis são os ares, as águas, os
alimentos, um lugar para se deitar, alguém para chorar ou desabafar, uma rotina,
uma vida. Os amores, as paixões, os ódios, os desgostos, os objetivos, as
esperanças, os sonhos – que podem ou não ser alcançados, longos ou curtos,
insignificantes ou revolucionários – as noites mal dormidas, os dias completos,
os esbarrões, os atrasos, os investimentos frustrados, as conversas truncadas,
os momentos difíceis e a garganta seca também são indispensáveis.
Com
o tempo e a maturidade, aprendemos que os mares não têm o menor valor, mas suas
ondas – trazendo e levando paixões, encontrando e perdendo amores, construindo
e arrebentando pretensões – desenvolvem papel fundamental ao nos mostrar que
casas inglesas, japonesas ou holandesas, prédios na Índia, na Rússia ou na
China, palácios em Espanha, Portugal ou nos países nórdicos são tão fortes
quanto o algodão doce tocando na língua: um abalo de terra, a agitação eufórica
do oceano ou o mau humor dos ventos desmancham abruptamente as convicções e as
histórias humanas. Assim como abruptamente desmancha-se o algodão doce...
Um
parente, um bem ou um sonho podem – e devem – ser insubstituíveis, mas nenhum
parente, nenhum bem, nenhum sonho são indispensáveis. Os parentes, os bens e os
sonhos são produtos carregados de símbolos que, se tiverem marcado nossas
vidas, ficarão em nossas memórias, ora recebendo votos de saudades, ora de
gratidão, ora de pedidos, ora de diálogo.
Os
parentes – pai, mãe ou filhos – são como os mares: não têm nenhuma importância
em nossas vidas. As ondas são importantes: trazem e levam sentimentos, idéias,
desejos. Quando lembramos de alguém que já partiu ou de sonho desfeito, devemos
pensar nas ondas: assim como os amores, elas vêm e vão. As relações que
construímos – e não os corpos ou os bens – são eternas.
*Publicado
originalmente na coluna Ficções, Caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 16 de março de 2012.
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