Inteligência
é qualidade que envaidece os homens. Basta insinuar que é inteligente para que,
desarmando-se, deixando de lado escudos e abdicando de proteções, o indivíduo
sinta-se mais confortável.
Já
tinha feito meu pedido, instalei-me numa dessas mesas em que se apinham seis ou
oito, peguei o jornal e, antes de folheá-lo, um homem educado e de barriga
protuberante perguntou-me se a cadeira ao lado estava ocupada. Diante de minha
negativa, pôs a bandeja sobre a mesa e iniciaria sua refeição – bastante
alface, tomate, cebola, pimentão e arroz – se um homem, dentes brilhantes e
cabelos para trás presos por gel, não tivesse dado um grito, aberto um sorriso
e se aproximado euforicamente:
-
Lembra-se de mim?
Diante
da surpresa e provavelmente evitando qualquer atitude que desagradasse ao
possível parceiro de quem nem fazia idéia quem fosse, estendeu a mão e, antes
que dissesse palavra, o cidadão sentou-se imediatamente, escolheu picanha bem
passada, batatas fritas e refrigerante.
-
Esse mundo é mesmo pequeno, disse o interlocutor de sorriso aberto. Lembro bem
das brincadeiras na turma. Pensei que nunca fosse acabar aquele curso!
O
homem de sorriso aberto estudara com ele. Na faculdade, no curso técnico, no
ensino médio, no de mecânica de autos ou no de assentador de azulejos,
encanador e eletricista? Pela desenvoltura e pela arrumação das palavras, na
faculdade, mas não se lembrava dele. Terminaria o almoço, estenderia novamente
a mão. O garçom trouxe a picanha, as batatas fritas e o refrigerante.
-
Você era o mais inteligente da turma, disse o homem de sorriso aberto,
engolindo celeremente as batatas fritas e parte do refrigerante. Quando
queríamos alguma opinião inteligente, eis que sua imagem surgia e todo mundo
corria ao seu encontro. Para ouvir a voz da sabedoria e do discernimento, da
erudição e do bom senso, da percepção apurada e do bom gosto.
Imaginava-se
inteligente, porém nunca desconfiara que os colegas da turma o indicassem como
tal.
-
Por que está comendo esse monte de alface?
Colesterol
alto, excesso de gordura, aumento de peso, dificuldades de respiração,
problemas na coluna e receitas médicas para mudar a alimentação, praticar
exercícios físicos regularmente. O sono melhorara e a disposição também. A
balança respondia positivamente: oito quilos e meio em três meses.
-
Quando saíres desse regime, retomou o sorriso aberto, estás convidado para
experimentar o melhor churrasco do mundo em minha casa. Sabes onde moro?
Naquela mesma rua, naquela mesma casa. Fizemos algumas reformas, erguemos uma
churrasqueira, ainda estamos construindo uma piscininha, contudo já recebemos
os amigos. Talvez te confundas pelo muro: três metros de altura. Segurança
nunca é demais. Fora isso, mesma rua e mesma casa. Sempre estou lá no fim de
semana. E, disse engolindo o resto da carne, verificando se sobrara alguma
batata frita e sugando o refrigerante, o telefone continua o mesmo. Basta
telefonar a qualquer hora do dia ou da noite. Estou sempre à tua disposição!
Quis
dar-lhe um cartão, mas o interlocutor recusou: lembrava o número de telefone do
escritório dele. Continuava o mesmo? Cidadão tão prestativo, tão boa gente, tão
confiável. Como se esquecera justamente dele?
-
Estou em cima da hora! Um abraço ao pai. Passo lá qualquer hora para um
chocolate quente. Sei que ele adora.
O
homem de sorriso aberto saiu em disparada. Pai? O pai morrera de acidente
automobilístico quando ele tinha três anos.
Continuou
a refeição, engolindo forçadamente as fatias de tomate e o suco de acerola.
Saía da praça de alimentação quando o garçom da Churrascaria do Gaúcho
disse-lhe que o gerente gostaria de falar-lhe.
-
Seu amigo disse-nos que pagaria a conta. São cinqüenta e oito reais.
Veio
até minha mesa, pediu-me que testemunhasse o ocorrido, que não se lembrava do
cara. Pus-me à disposição. Desceríamos todos à delegacia. De um pulo, agradeceu
minha gentileza, meteu a mão no bolso e puxou algumas cédulas:
-
Num país como este, concluiu, mais vale um esperto do que um inteligente.
*Publicado
originalmente na coluna Ficções, Caderno
Tem!, Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 27 de janeiro de 2012.
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