sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

INTELIGÊNCIA E ESPERTEZA




Inteligência é qualidade que envaidece os homens. Basta insinuar que é inteligente para que, desarmando-se, deixando de lado escudos e abdicando de proteções, o indivíduo sinta-se mais confortável.



Já tinha feito meu pedido, instalei-me numa dessas mesas em que se apinham seis ou oito, peguei o jornal e, antes de folheá-lo, um homem educado e de barriga protuberante perguntou-me se a cadeira ao lado estava ocupada. Diante de minha negativa, pôs a bandeja sobre a mesa e iniciaria sua refeição – bastante alface, tomate, cebola, pimentão e arroz – se um homem, dentes brilhantes e cabelos para trás presos por gel, não tivesse dado um grito, aberto um sorriso e se aproximado euforicamente:



- Lembra-se de mim?



Diante da surpresa e provavelmente evitando qualquer atitude que desagradasse ao possível parceiro de quem nem fazia idéia quem fosse, estendeu a mão e, antes que dissesse palavra, o cidadão sentou-se imediatamente, escolheu picanha bem passada, batatas fritas e refrigerante.



- Esse mundo é mesmo pequeno, disse o interlocutor de sorriso aberto. Lembro bem das brincadeiras na turma. Pensei que nunca fosse acabar aquele curso!



O homem de sorriso aberto estudara com ele. Na faculdade, no curso técnico, no ensino médio, no de mecânica de autos ou no de assentador de azulejos, encanador e eletricista? Pela desenvoltura e pela arrumação das palavras, na faculdade, mas não se lembrava dele. Terminaria o almoço, estenderia novamente a mão. O garçom trouxe a picanha, as batatas fritas e o refrigerante.



- Você era o mais inteligente da turma, disse o homem de sorriso aberto, engolindo celeremente as batatas fritas e parte do refrigerante. Quando queríamos alguma opinião inteligente, eis que sua imagem surgia e todo mundo corria ao seu encontro. Para ouvir a voz da sabedoria e do discernimento, da erudição e do bom senso, da percepção apurada e do bom gosto.



Imaginava-se inteligente, porém nunca desconfiara que os colegas da turma o indicassem como tal.



- Por que está comendo esse monte de alface?



Colesterol alto, excesso de gordura, aumento de peso, dificuldades de respiração, problemas na coluna e receitas médicas para mudar a alimentação, praticar exercícios físicos regularmente. O sono melhorara e a disposição também. A balança respondia positivamente: oito quilos e meio em três meses.



- Quando saíres desse regime, retomou o sorriso aberto, estás convidado para experimentar o melhor churrasco do mundo em minha casa. Sabes onde moro? Naquela mesma rua, naquela mesma casa. Fizemos algumas reformas, erguemos uma churrasqueira, ainda estamos construindo uma piscininha, contudo já recebemos os amigos. Talvez te confundas pelo muro: três metros de altura. Segurança nunca é demais. Fora isso, mesma rua e mesma casa. Sempre estou lá no fim de semana. E, disse engolindo o resto da carne, verificando se sobrara alguma batata frita e sugando o refrigerante, o telefone continua o mesmo. Basta telefonar a qualquer hora do dia ou da noite. Estou sempre à tua disposição!



Quis dar-lhe um cartão, mas o interlocutor recusou: lembrava o número de telefone do escritório dele. Continuava o mesmo? Cidadão tão prestativo, tão boa gente, tão confiável. Como se esquecera justamente dele?



- Estou em cima da hora! Um abraço ao pai. Passo lá qualquer hora para um chocolate quente. Sei que ele adora.



O homem de sorriso aberto saiu em disparada. Pai? O pai morrera de acidente automobilístico quando ele tinha três anos.



Continuou a refeição, engolindo forçadamente as fatias de tomate e o suco de acerola. Saía da praça de alimentação quando o garçom da Churrascaria do Gaúcho disse-lhe que o gerente gostaria de falar-lhe.



- Seu amigo disse-nos que pagaria a conta. São cinqüenta e oito reais.



Veio até minha mesa, pediu-me que testemunhasse o ocorrido, que não se lembrava do cara. Pus-me à disposição. Desceríamos todos à delegacia. De um pulo, agradeceu minha gentileza, meteu a mão no bolso e puxou algumas cédulas:



- Num país como este, concluiu, mais vale um esperto do que um inteligente.





*Publicado originalmente na coluna Ficções, Caderno Tem!, Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 27 de janeiro de 2012.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

CLASSIFICADOS

Fogão, condicionador de ar, geladeira, casas, terrenos, bonecas, imóveis na praia alugados durante as férias de verão ou apartamentos decorados nas serras gaúchas ou catarinenses quando das prováveis promessas de flocos de neve invadindo as cidades durante as madrugadas, automóveis com menos de cem quilômetros rodados ou motocicletas compradas de cantor famoso... O interessado em ampliar ou diminuir o patrimônio tem grandes chances de negócios se incluir seu produto nas páginas dos classificados.


Geralmente as páginas de vendas seguem despercebidas no manuseio do periódico, mas basta interesse esdrúxulo – uma viagem às cidades históricas de Minas Gerais ou às praias do Espírito Santo – para que nossos olhos deslizem ansiosos pelas letras pequenas e encontrem ofertas tão absurdas que nos estimulam ao consumo. Um amigo procurava informações sobre o aluguel de veraneio em Ubatuba: voltou para casa num carro semi-novo. Os amigos adoraram o automóvel, mas a esposa esbravejou o veículo a tal ponto de – sorte ou azar – caminhão de refrigerantes arrebentar a traseira. Detalhe: o marido ainda não pusera seguro na nova propriedade da família.


Sete ou oito anos quando tive a primeira idéia de figurar entre os anúncios classificados. Minha avó paterna morava numa casa de dois quartos, área de serviço, banheiro, sala de jantar, sala de estar, cozinha e terraço. Gostaria de residir mais próxima do filho e dos netos. Peguei o número do telefone do jornal e conversava mais ou menos há dez minutos com a atendente, dando-lhe detalhes do imóvel quando minha mãe, ouvindo o conteúdo de nosso diálogo, indagou-me quem tinha permitido a inclusão da casa nos classificados. Arreganhando orgulhosamente os dentes: - Eu!


Aos gritos e quase tabefes, explicou-me que qualquer anúncio custava dinheiro. Os anunciantes pagavam para vender a casa, comprar um carro ou oferecer serviços profissionais e especializados? Um trompetista – currículo de orquestras e apresentações para chefes de Estado – oferecia seus préstimos aos casamentos, batizados, bodas, formaturas ou jantares românticos. Uma pianista alugava mesas em sua pequena sala para quem, comprando vinhos e refestelando-se nos pratos cozinhados pelo irmão, chef com diploma de Porto Alegre, ouvisse seus dedos ágeis por quase uma hora recebendo, ao fim do manjar, caixa de chocolates caseiros.


Entre serviços e produtos, os classificados amorosos são os que chamam minha atenção: homens e mulheres, na melhor condição de apaixonados, desdobram-se na busca da palavra adequada para laçar candidatos. Descrevem suas qualidades físicas (alto, baixo, abdômen de tanquinho ou lavadora, barriguinha saliente, sem pelo no corpo, cabelos lisos, crespos ou curtos, lábios carnudos, pele bronzeada, recém-siliconada, corpo definido, sem celulite, estrias ou marcas de cirurgias...). Em seguida, as características pessoais (inteligente, viajado, culto, animado, extrovertido, sincero, tímido, discreto, atraente, poliglota, simpático, elegante, sério, responsável, financeiramente estabilizado, disposto a assumir responsabilidades de maior impacto...). Por fim, os números dos telefones, os endereços eletrônicos ou caixas postais.


Boa parte desses anúncios certamente receberia número de reclamação no PROCON ou nas demais entidades de defesa do consumidor por, de maneira arbitrária e sem medidas, enganar os incautos. Uma ex-aluna do interior paulista, mãe de alguns filhos, trocou quase três centenas de mensagens eletrônicas com um desconhecido do Rio de Janeiro cuja foto, impressa em papel de boa qualidade e exibida às amigas e, especialmente, às adversárias, prometera fim de semana inesquecível exercendo seus dotes culinários e suas performances físicas.


Na segunda-feira à noite, antes do início da aula, perguntei – obviamente me referindo às qualidades técnicas de cozinheiro – se tivera grande surpresa.


- Que surpresa! A foto era dele mesmo, mas de trinta anos atrás e nunca, repetiu enfaticamente, nunca em minha vida comi tanto ovo em apenas um fim de semana.

*Publicado originalmente na coluna Ficções, Caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 20 de janeiro de 2012.

sábado, 14 de janeiro de 2012

ENTRE MORTES E MORTES






O primeiro exercício elementar, para quem deseja entrar no mundo da filosofia, consiste no questionamento rotineiro. Questionamento rotineiro distante da mediocridade, da estupidez e da frugalidade, mas que parte da mediocridade, da estupidez e da frugalidade de conceitos imutáveis ou cristalizados para definir as relações sociais, os caminhos teológicos, as visões de verdade ou de mentira. A Filosofia esclarece e dá-nos visão diferenciada acerca de conceitos milenares que importunam: amor, morte, solidão, divindade, ética, paixão, felicidade... São tantos os temas – cuja perspectiva analítica se modificou em função da evolução das tecnologias, mas manteve a essência – que levaríamos mais de dúzias de colunas para enumerá-los.





Jean Paul Sartre, influente filósofo francês do século XX e expoente do existencialmente, desenvolveu atividade intelectual não apenas no campo filosófico, mas também no literário a ponto de receber – e, comicamente, recusar – o prêmio Nobel de Literatura. Discutiu temas que nos são caros. “A idade da razão” retrata a vida do jovem Mathieu que, transcorrendo o enredo lentamente através de divagações psicológicas e confrontos pessoais, busca a definição da maturidade, simbolizada, ao fim, pelo equilíbrio do espírito.





Não são apenas os filósofos que recorrem aos anseios filosóficos para discuti-los na Literatura, mas também escritores debateram – ou pelo menos ensaiaram provocações – a Literatura através de construções filosóficas como em “O lobo da estepe”, de Hermann Hesse. Os questionamentos se avolumam de tal maneira que o enredo encurrala o leitor nos limites de sanidade: o protagonista da trama é são? O leitor entra e sai dos devaneios do Lobo questionando-se ou respaldando suas teorias?





Quando o professor e articulista de jornais Márcio Alexandre da Silva lançou “Pode morrer de tanto amar?”, a primeira pergunta recaiu sobre se o título esconde mote literário romântico ou inquietação filosófica. Ao fim e ao cabo, a Filosofia demonstra o vigor na novela desse jovem intelectual que, cerrando-se nas fileiras de Sartre e lançando a Filosofia na linguagem literária, nos apresenta painel das peripécias em que o narrador, durante todo o tempo, destoando das premissas fundamentais que alicerçam as dúvidas, parece aflito em apontar respostas, soluções, resultados.





Utilizando-se de complexo jogo de cenas que perpassam dos anos 1970 aos nossos dias, a narrativa transcorre sutilmente no interior paulista, denunciando, em forma de ficção, os problemas de uma família atacada pelos problemas da geada, as péssimas condições de vida da população – não apenas da zona urbana, mas igualmente da área rural – o descaso dos órgãos públicos com o povo, os problemas da gravidez precoce, sem planejamento e sem perspectivas (os pais do protagonista possuem menos de dezoito anos na ocasião de seu nascimento e sobreviverão com o patrimônio de “de duas porcas, três galinhas e um burro empacador”), os questionamentos em torno da felicidade escamoteados pelo narrador e retomados ao longo da trama, os jogos de futebol – esporte aparentemente inerente ao desenvolvimento da personalidade do brasileiro – como pano de fundo de várias cenas...





As mortes e as mortes lançadas ao título desta resenha parecem tão insignificantes quanto insignificantes apresentam-se as réplicas filosóficas. A complexidade não está em descobrir novas perspectivas ou inventar conceitos, mas em tornar visíveis conceitos que julgávamos imutáveis ou cristalizados, proporcionando ao leitor (interlocutor) um novo olhar sobre velhas paisagens. Numa sociedade de líquidas relações, de líquidos desejos e de líquidos objetivos, sentimentos considerados profundos adquirem novas formas e novas maneiras de enfrentamento e, ao fim das contas, o amor romântico – que nos consome, que nos adoece, que nos lança em devaneios e nos atrofia as atividades – aproxima-se mais do comportamento ignominioso do que salutar, benéfico e desejado. Quando o sentimento amoroso nos invade abruptamente, somos levados ao delírio, à estupefação, à incredulidade. Nesse estágio, apenas uma pergunta pode desmontar nossas convicções: morre-se de tanto amar?





Pode morrer de tanto amar?

Márcio Alexandre da Silva – CBJE – 36 p. – R$ 20,00

Contato com o escritor: marciobressane@hotmail.com



*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 13 de janeiro de 2012.

sábado, 7 de janeiro de 2012

COSMÉTICOS

O aumento da venda de cosméticos – e, conseqüentemente, a ampliação de pontos de venda e de vendedoras – é um dado que não pode ser ignorado nem nas estatísticas econômicas oficiais nem na rotina de milhões de brasileiros que tomam os transportes públicos. Outro dia peguei o ônibus de Presidente Prudente a Teodoro Sampaio a fim de resolver algumas pendências na fazenda pública quando, quase cochilando, pernas encostadas no banco da frente, vento morno entrando na fresta da janela, loira de metro e oitenta parou no corredor, reconheceu a passageira sentada ao meu lado:


- Maria! Quanto tempo! Faz o quê? Uns três anos que não nos vemos?


Maria respondeu que não se viam há mais de cinco anos. Última vez, casamento do Pedrinho. Desde então, os caminhos se distanciaram. A loira – em poucos minutos, resumiu sua vida de dois casamentos, noivado fracassado, perda da casa da família, dívida monstruosa no banco e falência do escritório de contabilidade em Rancharia – entrara no ramo de cosméticos.


Colocou a imensa bagagem sobre as pernas de Maria, abriu o zíper complicado da mala, tirou de dentro uns mecanismos que se desdobravam em mil e, a cada abertura, apresentavam ramificações do mesmo produto. Com paciência didática – típica dos melhores professores em busca do espírito fugitivo do aluno intempérie – iniciou a explanação ressaltando a qualidade de vida adquirida durante o século anterior: a diminuição da carga de trabalho e a conquista de ócios regulares permitiram ao homem moderno mais tempo para cuidar de si. Perder peso, preocupar-se com as medidas corporais, eliminar gordura e, uma vez conquistada a segurança física, priorizar a estética.


- É aí que eu entro, disse, sorridente, puxando alguns prospectos e estendendo-os não apenas a amiga, mas também a mim que, naquele momento, já tinha perdido o sono e, irritado, ouvia as promessas de beleza. – Pois, como eu estava dizendo, reforçou, depois de também distribuir os panfletos entre alguns passageiros em pé, a estética, a conservação da pele, o charme que jogamos sobre os homens e a elegância que esbanjamos por onde passamos constituem o principal produto da mulher de hoje. Quanto mais linda ficarmos, mais oportunidades de descobrirmos novos amores. Quanto mais belas permanecermos, menos desperdícios de tempo para resolvermos nossos problemas. As portas simplesmente se abrem.


Uma senhora que ainda não tinha sido aprovada no primeiro estágio mencionado pela loira – o estágio da segurança física – esticou o pescoço quando ela prometeu novos amores e quase caiu em cima da gente ao frisar a facilidade da abertura de novas portas. Confesso que, olhando a saliência em minha barriga, nas laterais, nas coxas e nos braços, passei a olhar mais atenciosamente os produtos. Já estava tão estimulado que pouco me impressionei com os preços. Um creme de aplicação noturna – espalhado entre as sobrancelhas e as pálpebras – custava oitenta reais. O matinal, noventa e três reais; o da tarde, cento e vinte e dois reais e trinta e oito centavos.


A mala ainda dispunha de cremes de costas, de costelas, de peito (peculiarmente produzidos para homens e para mulheres), de pescoço, de orelhas, de olhos, de mãos, de dedos, de unhas, de espaços entre um dedo e outro, de testa, de nádegas (com promessas de enrijecer as flácidas e embelezar as já firmes), de cotovelos, de lábios, de nariz, de pés... Para cada parte do corpo, pelo menos mais três desdobramentos de produtos. Para os pés, existiam cremes para a hora do almoço, do café da tarde, para uso com tênis, sapatos de couro, sandálias abertas, sandálias fechadas, alpercatas, chinelas de dedo, sapatilhas...


Eu mesmo me convencera a adquirir uns cinco produtos e entregar quinhentos reais parcelados em setenta vezes no cartão de crédito – é, ela tinha máquina portátil de cartão de crédito – quando um homem de chapéu de boiadeiro fulminou as pretensões dos futuros ex-clientes:


- Com essa dinheirama, eu aconselharia cirurgia plástica! Para que reformar se pode reconstruir?


*Publicado originalmente na coluna Ficções, Caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 6 de janeiro de 2012.