Gisele entrou na pós-graduação de lingüística muito mais interessada em vigiar o namorado – estudante de letras focado na escrita limpa, direta e objetiva que pudesse ser utilizada tanto em jornais quanto em anúncios publicitários – do que em desvendar mistérios científicos de constituição de signos, significantes, significados, repertórios, códigos abertos e fechados.
Acessou a página do curso aberto na Universidade Estadual Paulista – campus de Assis – preencheu os requisitos necessários, fotocopiou a documentação, montou um projeto às pressas e, por um desses motivos que só Deus explica na lavra das memórias milenares, classificou-se para estupefação do namorado que, saindo de Prudente no sábado por volta das seis e meia, encontrou-a lindamente vestida na frente de casa.
Durante o caminho, o namorado esboçou dezenas de sorrisos por saber que Gisele, advogada frustrada e insegura, finalmente aproximava-se de algo que exigisse inteligência, bom senso e desempenho intelectual. Gisele providenciara novíssimo dicionário de língua portuguesa e, da bolsa preta com que trabalhava na rotina forense, sacou um de expressões latinas demonstrando que, sem dúvida, dedicava-se ao aperfeiçoamento do idioma.
Pensou que dissimularia sua ignorância. Sem muito esforço, limitava-se a copiar aleatoriamente alguns dados explicados pelos docentes. Sintagmas simples ou compostos, orações complexas e coordenadas, frases e interjeições? O que isso mudaria em sua vida? Assim como fizera na graduação e especialização em direito penal, bastava disfarçar, desconversar quando os colegas perguntassem da matéria e, sempre que possível, revirar os olhos, exaltar suas qualidades jurídicas, abordar qualquer tema fútil, enumerar as centenas de vestidos e de pares de sandálias.
A estratégia funcionou eficazmente até o quarto ou quinto sábado – as aulas aconteciam uma vez por semana – quando um dos professores distribuiu calendário de seminários individuais, estipulando o tempo de vinte minutos para exposição, indicando os pontos que gostaria de frisar e recusando-se a fornecer bibliografias ou roteiros de leituras.
A advogadinha entrou em desespero, consultou trabalhos na internet, confrontou algumas informações, emprestou alguns livros da ampla biblioteca, procurou ex-colegas de escola que tinham se tornado professores de português e até desembolsou quantia razoável num curso de redação de duas horas na internet. Por mais que tentasse, nada da matéria entrava na cabeça. O desespero tomou conta gradativamente. Numa audiência defendendo ladrão de galinhas, perguntada se desejava se manifestar, saiu com essa:
- Qualquer inclusão de sintagmas no discurso fechado, para um receptor sem o repertório suficiente, constitui ruído na comunicação, tornando-a parcial ou absolutamente ineficaz.
O juiz olhou para o escrevente que digitava os depoimentos. Empertigou-se. No fim da noite daquela audiência, trancou-se no quarto. Como se safar do seminário de lingüística no sábado seguinte? Como exporia as principais problemáticas, os confrontos teóricos e os novos estudos? Na sexta-feira, o professor de faculdade de fundo de quintal entregou-lhe impecável trabalho sobre o tema. Cobrou mais trinta reais por uma hora de explicações ao fim da qual, engolindo duas xícaras de café, cinco pães de queijo e taça de vinho do Porto, esbravejou a estupidez da intrépida aluna.
Na sexta-feira à noite, o namorado recebeu o telefonema: estava em Assis e amanheceria repassando os temas, ensaiando situações intricadas, antecipando perguntas do professor e dos colegas.
O professor de português teve pequeno incidente automobilístico no trajeto entre Presidente Prudente e Assis. Ao entrar na sala, por volta das onze horas, a aula já terminara e Gisele, sorridente, abraçava as colegas de curso. Ela simplesmente abafara: os vinte minutos da explanação dos meandros lingüísticos usara-os defendendo a pena de morte, relatando sua viagem a Vitória e mostrando, para desespero do namorado, trinta e cinco pares de sapatos que fariam sucesso no próximo verão.
*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 16 de dezembro de 2011.
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