Sempre que viajava à capital e passava mais de três dias, meu primo Nelson Regis de Sousa fazia questão de me levar ao prédio da loja dos Irmãos Vitale que, se a memória não me trai e as lembranças ainda suspiram, localiza-se nas proximidades da Praça da Sé. A estrutura do prédio é antiga, elevador com porta de grades, abrindo-se e fechando-se como sanfonas, escada em forma de caracol. Tinha a impressão de que voltava no tempo quando entrava naquele prédio e sentia-me preparado a, sacando meu revólver imaginário da São Paulo da década de quarenta, descarregar o tambor de oito (ou seis?) tiros em buscas investigativas, na mais sublime trama de cinema.
Nelson e eu vencemos os degraus, cruzamos com um homem de gravata, chegamos ao lugar desejado repleto de instrumentos, pentagramas, estantes, discos e livros sobre música. Olhamos os violões, os violinos, as guitarras de todas as espécies, os bandolins, os banjos, os cavaquinhos e viemos deslizando entre outros instrumentos de sopro, de percussão e barulhos em geral. Parece-me que Nelson – grande apreciador de boa música – iniciara cursos de música: tentara o violão e o teclado. Assim como eu, nunca conseguira grandes êxitos. Alguns nascem para fazer música entoando instrumentos e compondo. Nelson, eu e boa parte dos que me lêem nascemos para apreciar.
Continuamos perambulando, Nelson mostrando-me alguns instrumentos lindíssimos e conversando a respeito da capacidade de se construir algo tão delicado, tão minucioso, tão pontual. Instrumentos de onde saíam melodias que encantaram – ou continuavam encantando – gerações. De repente, ataque de silêncio. Um homem – barbudo, cabeludo, chinelos havaianas gastos, camisa rasgada e calção provavelmente nunca lavado – abandonou discretamente o interior da loja. Diante de meus olhos interrogativos, o funcionário disse-me que vinha sempre. Então liguei os fatos às imagens: tocava ao piano.
Nelson seguia me mostrando os instrumentos musicais. Admirava coleções raras de discos de artistas nacionais e internacionais cujos nomes sabia de cor, comentava da leveza de alguns quadros de cantores dos anos quarenta, salientava o aconchego do ambiente... Entretanto, nada disso me interessava mais e, na primeira oportunidade, sugeri que fôssemos ao segundo ponto de nosso roteiro.
Quando chegamos em casa por volta das oito e meia, meu primo ligou o rádio da cozinha e introduziu o disco de Kid Morangueira. Entre as músicas inteligentes e interessantes do sambista, meus pensamentos flanaram e descobri a razão de minha admiração pela loja dos Irmãos Vitale abruptamente transformar-se em algo maçante: o homem barbudo.
Lembrei-me do famigerado poema de Camões que ressalta as virtudes do amor dando-lhe os poderes de transformar o som dos objetos de bronze. Quais diferenças de sons entre os objetos recheados de amor e os objetos compostos unicamente de bronze? Precisamos pensar nas agregações simbólicas pelas quais passam os objetos. Uma roupa tem valor sentimental porque o pai deu de presente de aniversário de quinze anos à filha. Um par de sapatos velhos, uma cadeira sem assento, uma máquina de costura manual ou um som três em um abarcam espaço da casa se têm valor simbólico, se representam alguma coisa para a pessoa que guardou o objeto.
Conversava com uma senhora de mais de oitenta e cinco anos. Perguntei-lhe o que tinha de mais valioso. Trouxe-me pequena cesta de costura e, de dentro da cesta, retirou uma tesourinha (enferrujada e sem corte), um estojo de agulhas (também já desgastadas), alguns pedaços de seda, de pano mais grosso, de fitas, de botões de dois ou três tamanhos, de elásticos.
Talvez adivinhando a pergunta que faria – aquelas coisas velhas eram suas preciosidades? – ela se adiantou:
- Com essas ferramentinhas, referia-se ao material guardado dentro da cesta, minha mãe costurou meus primeiros dez vestidos de casamento. Trabalhava de dia e costurava à noite. Pegava o resto de panos da fábrica.
Compreendi o brilhantismo de Camões: assim como uma loja de instrumentos nada vale sem espírito de música, uma cesta de costura com materiais enferrujados e inutilizáveis nada vale sem gratidão.
*Publicado originalmente na coluna Ficções, Caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 26 de agosto de 2011.