sexta-feira, 27 de maio de 2011

ENFARTE FULMINANTE

O enfarte fulminante acontece diariamente. Enfartamos quando somos obrigados a praticar ações que detestamos ou quando não estamos adequadamente preparados para enfrentá-las. O menino que entra na escola sem terminar a tarefa de matemática enfarta no momento em que o professor cobra seu compromisso e ameaça chamar o pai ou a mãe para transmitir-lhes sua irresponsabilidade. O menino sabe que, ao chegar em casa e correr para se esconder no quarto, o pai ou a mãe chamarão sua atenção, dar-lhe-ão sermão e, no fim das contas, depois de compará-lo ao irmão mais velho ou ao mais novo, aos filhos do vizinho ou aos primos, às crianças sem comida ou sem roupa, se abraçarão e se encherão de remorsos pelas palavras duras, mas necessárias, que despejaram em profusão.

Os pais entram em enfarte fulminante se o trabalho não rende, se o salário atrasa, se pessoas indesejáveis aparecem no fim de semana – especialmente no domingo – para comer, beber, azucrinar e partir sem ajudar a limpar nada.  Enfartam se os vizinhos reclamam dos prejuízos causados pelos filhos no arremesso da bola de futebol à janela de vidros importados, se o conselho tutelar reclama das arruaças protagonizadas em volta das igrejas durante os eventos religiosos ou se estranhos aparecem na hora do jantar para delatar que os filhos, filhos com caras de anjo, pularam o muro para roubar jabuticaba, goiaba ou manga verde.

O dono da casa de árvores de frutos roubados tem grande possibilidade de enfarte fulminante se flagra o namorado da filha adolescente carregando sapatos, cinto e camisa e a filha – restam dúvidas? – se encaminha ao enfarte fulminante se sabe que o pai descobriu o namorado em disparada. O namorado, rapaz livre, leve e solto, cabelo endurecido pelo gel excessivo e roupas compradas em dezoito vezes no cartão de crédito da mãe numa loja de departamentos, teria um enfarte fulminante se o pai da namorada o alcançasse numa eventual corrida e aplicasse-lhe uma sova na frente dos transeuntes?

Enfartes fulminantes acontecem frequentemente. Uma das melhores maneiras de evitá-los ou de minimizar seus efeitos? Aproveitar os momentos e descobrir situações que nos levem menos a perder o juízo e mais a aproveitar a vida.

Se uma vaga entre dois carros aparentemente me tomará muito tempo, arranjo outra cinco, seis, dez quarteirões à frente. Se precisarei me desdobrar em doze mãos, cuidando para não danificar nem o veículo da frente nem o de trás, nem esfacelar um pedestre provocador que brinca nas laterais no momento em que manobro e, principalmente, para evitar fila de motoristas buzinando em decorrência da demora, abandono o automóvel distante e volto caminhando, olhando as mulheres lindas, prestando atenção nos detalhes das mudanças dos prédios, escolhendo um sorvete de chocolate, puxando fragmentos esquecidos de poemas ou de trechos de crônicas imortais, arejando o cérebro, recitando a letra de música antiga, imaginando as próximas viagens quando o dinheiro sobrar...

Uma das coisas que mais detesto? Filas. Filas de banco, filas nos correios, filas nos supermercados, filas nas farmácias, filas do cinema, filas no restaurante. Parece que as pessoas gostam de criar filas e a melhor maneira de evitá-las: ir bem mais tarde ou bem mais cedo, antes ou depois, do ápice da movimentação. Então, se não chego muito cedo, apareço na iminência do fechamento das portas.

Algumas filas parecem grandes em todos os momentos e não existe outra alternativa senão enfrentá-las de bom humor. Por essa razão, adoro os livros de bolso. Pego um desses livros, coloco-o na calça ou na camisa ou na mão. Se a lentidão se exibe vigorosamente, começo a leitura de romances, de contos, de crônicas, de poesias e até de filosofia, de sociologia ou de ciências políticas. Os livros têm me trazido boa sorte. Quando estou no banco, por exemplo, basta puxar meu exemplar e constatar que, menos de vinte linhas assimiladas, o caixa já está chamando insistentemente meu número. Mas, se por qualquer eventualidade, esqueço meu livro...


*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 27 de maio de 2011.

Um comentário:

*Rú* disse...

Os livros, muito mais praticos que melhores amigos.
Sempre salvando nossas vidas...