sábado, 22 de janeiro de 2011

ESQUECIMENTO

Desceu os cinco degraus, atravessou o jardim, voltou para pegar a carteira caída no chão, engatou a ré e perguntou ao sobrinho e aos dois amigos:



- Querem dar uma volta?



Os jovens nada tinham a fazer na tarde quente de Presidente Prudente. O sobrinho sentou-se no banco da frente; os amigos, no de trás. Saiu a noventa quilômetros por hora, alcançando cento e dez e ultrapassando, minutos depois, os cento e trinta.



- Para onde vamos? O sobrinho, curioso ao tomarem a Raposo Tavares.



- Vamos à minha casa. São 13h40. Antes do café da tarde estamos de volta.



- Mas o senhor não mora em Pedrinhas Paulista?



- Moro? Claro. Claro que moro! São poucos quilômetros até lá. Damos uma voltinha, nos divertimos e pegamos alguma coisa para tomar. O que acham?



Os amigos gritavam euforicamente na ultrapassagem dos cento e cinqüenta quilômetros no carro quase zero, comprado numa dessas promoções de ponta de estoque. A polícia despontou na parte contrária da pista, o tio diminuiu a velocidade, cumprimentou-a com um facho de luz: os ponteiros voltaram a bater insistentemente nos cento e cinqüenta quilômetros.



O carro aproximou-se de Maracaí, contornou a rotatória, deixou Santa Cruz da Boa Vista e Cruzália para trás, entrou na magistral cidade de traços arquitetônicos semelhantes aos da Roma Antiga. Os três jovens desceram na praça. O tio voltou, minutos depois, muito apressadamente.



Os três entraram no carro, colocaram os cintos de segurança. Duas garrafas de vinho, imenso pedaço de salame, caixa de chocolates comida pela metade, água gelada e pão caseiro esfarelado.



Acelerou o quanto pode voltando, com grande facilidade, à Rodovia Raposo Tavares e burlando os radares de controle de velocidade. O sobrinho e os amigos bebiam o vinho diretamente na boca da garrafa enquanto o tio ingeria com grande satisfação a água fresca. O salame desfazia-se à dentada dos famintos e os chocolates, divididos em três porções iguais e uma parte maior para o tio, desmanchavam-se ao contato direto da saliva. Pegou uma sacola plástica debaixo do banco, jogou os papéis de chocolate e a garrafa de água. O sobrinho e os companheiros imitaram os gestos, acrescentando seus papéis, as garrafas vazias de vinho e o pão.



Circundaram o Parque do Povo e o tio, que vinha a Prudente apenas uma vez por ano, geralmente em janeiro, propôs pedirem alguma coisa gelada. Os amigos do sobrinho e o sobrinho gritaram euforicamente mais uma vez, apontando para um bar que freqüentavam nas noites de sábado.



Algumas cervejas, amendoins, cubinhos misturados de presunto e queijo e, solicitação do tio, batatas fritas com queijo parmesão. As cervejas, substituídas de acordo com o fim de seu conteúdo, chamaram a atenção de um grupo de estudantes universitárias, vestidas de branco, provavelmente saídas do estágio obrigatório numa clínica nas redondezas. Olhares trocados, palavras esquecidas, convites aceitos, as cinco meninas sentaram-se à mesa, tomando espaço maior da calçada.



As conversas dos três amigos surtiriam grande efeito, gerando indiscutível êxito se a mãe, a tia e o pai não estacionassem, esbaforidos, olhos arregalados:



- Graças a Deus, disse a tia. Onde está o carro?



O sobrinho apontou o automóvel do outro lado da rua. O pai perguntou se desde que saíram de casa estavam sentados ali. Percebendo algo estranho na voz baixa, respondeu afirmativamente, perguntando do motivo do desespero.



- Esqueceu que seu tio tem problema de memória? Já andou muito por esse mundão velho e sem porteira, mas agora é um perigo. Inofensivo, é verdade, mas perigo. Já roubou, sem querer, refrigerantes, doces, salgadinhos, roupas, remédios. Da última vez, deram três tiros no carro porque pensaram que era um ladrão. Sua tia sempre substitui os documentos e o dinheiro da carteira por recortes de jornal. Faz mais de quinze anos que cassaram a carteira de habilitação dele.



Constatando a aventura em que se metera, o filho, trêmulo e suando frio, ouviu a confirmação do nome da cidade do tio:



- Ivinhema, interior de Mato Grosso do Sul.





*Publicado originalmente na coluna Ficções, Caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 21 de janeiro de 2011.

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