sábado, 15 de janeiro de 2011

COLHENDO MANGAS

O Parque João Domingos Coelho, popular Buracão, situa-se no coração de Assis, a pouco mais de cem quilômetros de Presidente Prudente. Excluídas as peculiaridades tropicais, as nuances de verde nos lembram os românticos e movimentados parques franceses e argentinos, freqüentados por famílias, namorados ou solitários que sabem se comportar diante de uma garrafa de vinho.



Quando eventualmente passo longas tardes em Assis, aos domingos, feriados ou nos dias em que o comércio está fechado, entro no Parque Buracão, escolho uma sombra frondosa, armo minha cadeira de praia, pego um dos livros que me acompanham e deixo-me flutuar nos brilhantes enredos e símbolos com os quais os escritores nos brindam. Carregava as crônicas de Josué Montello – certamente um dos grandes polígrafos do século vinte – e “Cinq semaines en ballon”, de Julio Verne. Folheava o Montello. Ouvi uma grande pancada. Imaginei alguém pulando o alambrado, porém me surpreendi ao, olhando para trás, não encontrar ninguém.



Voltei a pegar o Montello e corri os olhos por mais ou menos dez páginas: queda seca e forte me fez levantar sobressaltado. Senão era alguém pulando o alambrado, o que acontecia?



O mistério talvez perdurasse longo tempo se uma menina – provavelmente, pela cor da roupa, brincara na areia, na lama ou no barro a manhã inteira – não se pusesse às minhas costas e, sob meus olhos atentos, retirasse duas sacolas plásticas de supermercado e recolhesse as mangas perdidas entre o mato alto. Não demorou muito para que outra manga, caindo sem avisar os galhos, proporcionasse um estrondo seco e forte.



Duas crianças, retirando sacolas plásticas dos bolsos, apareceram minutos depois. Assim como a primeira, pesquisavam entre os tufos de capim as mangas que caíram horas antes. Algumas frutas pareciam sadias; outras, verdes. Sem distinguir as verdes das maduras ou as em bom estado daquelas de difícil ingestão, as três saíram carregando sacolas cheias.



Ajeitei-me na cadeira e voltei ao Montello. Sua próxima crônica narrava as singularidades da transição entre a adolescência e a juventude: o menino desaparecia para ceder espaço ao jovem, ares e comportamentos de adulto. Saía para bater pernas com os amigos nas noites ludovicenses. Voltando de madrugada, recebia as advertências paternas, moldadas pelas diretrizes presbiterianas. Numa dessas advertências reiteradas, a iniciativa do jovem amalgamada ao linguajar do adolescente garantiu, em momento hilário, as cópias das chaves da casa.



As chaves simbolizavam a aceitação do rito de passagem: o menino obtém a liberdade e a responsabilidade de seus atos, chegando à hora desejada, sem cobranças, sem incômodos, sem sermões. A liberdade e a responsabilidade desenvolvidas na juventude asseguraram ao escritor, no sentido mais amplo da acepção e na profundidade intelectual do substantivo, a construção dos enredos e a intensidade da força estilística no conjunto da obra.



Mais algumas mangas caíram, outras crianças apareceram, alguns adultos também deram o ar do sorriso trazendo não apenas sacolas plásticas, mas resistentes carrinhos em que acumulavam as dezenas de frutas escondidas pelo mato alto. Uma criança de mais ou menos três anos sugava o líquido exteriorizando grande satisfação por meio dos olhos apertados. Um menino de calções multicoloridos ensaiava trepar-se ao cume da árvore, entretanto os gritos maternos demoveram-no do intento. O pai interveio. Se o menino queria subir na árvore, qual o problema? Já tinha nove anos. Praticamente um homem. Precisava de desafios que constituíssem o caráter.



O menino tentou a primeira vez, desequilibrou-se e voltou ao chão. Ensaiou a segunda investida, segurou-se alguns segundos e caiu sentado. Quis chorar, mas o pai insistiu: desistir agora? Ralou-se no terceiro tempo da luta, quase meteu a cara no chão no quarto round e, no quinto, pensava mesmo em desistir, acelerou a respiração, puxou as forças do invisível e grudou-se no galho. O pai aplaudiu, a mãe exclamou qualquer coisa e eu, assim como outros freqüentadores que assistiam ao teatro, vislumbrei o pai concedendo a chave da liberdade a Montello.





*Publicado originalmente na coluna Ficções, Caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 14 de janeiro de 2011.

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