segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

CAMILLE

A noite de quarta-feira, 5 de janeiro, encerrou-se numa mistura de tristeza e de alegria. Pouco mais de onze horas, meu pai atendeu ao telefone. A entonação de contentamento denunciava: conversava com alguém conhecido. De repente, a suavidade da voz desapareceu. Chamou minha mãe. Preocupado, indaguei-lhe: - Quem era? O que tinha acontecido?



Marinalva comunicava-nos do falecimento de Camille. No primeiro dia de 2011, Camille atravessou uma rua do Rio de Janeiro. A pressa da menina de quase oito anos de idade – estudante do Colégio Imperial Pedro II, que nunca parava de falar e que pressionava minha filha para que pronunciasse “corretamente” a letra “r”, abandonando o sotaque caipira do interior paulista para assimilar a entonação carioca – acabou-se na dianteira da motocicleta.



As imagens do desespero dos familiares – principalmente de Marinalva, avó que exercia o papel de mãe – simplesmente ficam além de minha imaginação. Franzina e esquelética, Camille resistiu no hospital: o impacto da motocicleta destruiu a vitalidade dos órgãos.



Telefonei para Adriana. Anos antes, Marinalva e Camille saíram do Rio para se hospedarem conosco nos quinze dias das férias de julho. Adriana promoveu um jantar delicioso em nossa casa de Paraguaçu Paulista. O cardápio sumiu da memória, exceto a abóbora na moranga – ou qualquer outra coisa na moranga – que minha namorada passou a tarde inteira aprontando e, à noite, ainda ficara longe do ponto ideal.



Naquele mesmo jantar, Camille se encantara com as bonecas de minha filha Natália que, ciumenta e violenta, arrancava-as da carioquinha, argumentando que precisava guardá-las, que Camille iria quebrá-las. A abóbora na moranga não tinha nenhuma importância. O que importava – e o que ainda importa – era o simples gesto de receber bem nossas convidadas. As bonecas tão disputadas de outrora são restos arremessados ao lixo.



A cama vazia, a falta daquele pedaço de gente azucrinando o dia inteiro, a roupa guardada nas gavetas ou nos cabides e que não serão mais usadas, o lugar à mesa, a comida especial, o programa de televisão preferido, a música favorita na rádio FM ou o gesto de carinho são estímulos à tristeza. Entretanto, a tristeza se combate com a alegria. A partida de Camille não é tristeza, mas alegria!



Ainda assinava a coluna “Literatura”, publicada regularmente às quintas-feiras no “Jornal de Assis” (Assis – SP), quando meu pai recebeu o telefonema de uma das filhas de Marinalva: Sr. Cardoso falecera. Sr. Cardoso trabalhara mais de trinta anos como oficial do Corpo de Bombeiros da Paraíba. Aposentado, transferiu-se com a família para o Rio de Janeiro. Gostava de anotar dados, de pesquisar informações, de ler diariamente jornais e, principalmente, gostava de crianças.



Quando estive no Rio de Janeiro no réveillon de 1997/1998, Sr. Cardoso, estava de férias e me recebeu na casa de sua irmã Therezinha, levou-me para conhecer o Maracanã. Detesto futebol, não entendo nada das regras do jogo e não faço idéia de quem são os destaques dos times e da seleção, mas, naquele dia, observando a majestade do edifício, senti-me emocionado e me comprometi, na crônica publicada no “Jornal de Assis” em homenagem ao Sr. Cardoso, a assistir a um jogo no Maracanã. Alegrei-me de saber que compartilhei com Sr. Cardoso momento tão marcante na vida de quem detesta futebol, contudo sabia, desde aquele instante, reconhecer a magnificência do esporte.



Entristeci-me da partida de Camille. Porém, horas depois, comecei muito alegremente a escrever este texto. Muito alegre mesmo! Sabe por que estou muito alegre, Marinalva? Se ela partiu, chegou a algum lugar. Quem parte alcança um destino. E já imagino Sr. Cardoso – sorridente, carinhoso, empolgado, apressado – mostrando os brinquedos, os sorvetes e os cachorros-quentes. À esquerda, sentados embaixo de uma árvore, Sr. João segura copos de Coca-Cola – ou seriam água de coco e caldo de cana? – e Dona Beatriz abre com muito cuidado as caixinhas de chocolate.



Como eu poderia ficar triste sabendo que Camille está entre os que a amam, comendo cachorro-quente e chocolate, bebendo Coca-Cola, correndo para entrar na roda gigante e deixando o sorvete derreter nas mãos de Sr. Cardoso que, sorridente e empolgado, gesticula desconexamente a linguagem do amor supremo?





*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 28 de janeiro de 2011.





















sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

A MORTE TRANSFIGURADA

Franz Kafka é um dos primeiros nomes que despontam quando nos remetemos à Literatura Fantástica. Na América Latina, Gabriel Garcia Marquez e Mario Vargas Llosa – ganhadores do Nobel – ou Carlos Fuentes são geralmente lembrados e, no Brasil, Murilo Rubião. Jorge Luis Borges, Adolfo Bioy Casares e Silvina Ocampo selecionaram os textos mais representativos do gênero em Antologia de la literatura fantástica. O que assombra – seja no imaginário dos leitores eventuais ou profissionais, seja na coletânea do trio argentino – é a ausência de Josué Guimarães que, se estivesse vivo, completaria noventa anos.



O escritor nasceu em sete de janeiro de 1921 em São Jerônimo (RS), estudou em Porto Alegre, trabalhou nos principais periódicos brasileiros, exerceu mandato de vereador na capital gaúcha. Perseguido pelo regime militar (1964-1985), especialmente pela proximidade do presidente deposto João Goulart, sobreviveu escrevendo sob pseudônimos e prestando consultorias para empresas.



Parte de sua obra trata de memórias, de relatos de viagem, de considerações políticas, de narrativas para crianças, da identificação ou reconstrução da identidade gaúcha, de situações cotidianas – e, entre esses exemplos, para ficarmos apenas em alguns títulos, estão Dona Anja, A Ferro e Fogo I (Tempo de Solidão), A Ferro e Fogo II (Tempo de Guerra), É tarde para saber, O gato no escuro.



Embora frequentemente ovacionado em algumas universidades brasileiras, Josué Guimarães não tem sua imagem e seus livros associados à Literatura Fantástica. Grande equívoco se considerarmos que pelo menos três de suas obras pertencem ao gênero e, dessas três, duas entrelaçam-se à ação política e à defesa da liberdade, denunciando o autoritarismo e a alienação personificada nos manipuladores de opinião pública.



Os tambores silenciosos (ganhador do Prêmio Érico Veríssimo) narra as iniciativas de um prefeito de interior que, para atingir sua finalidade de promover a felicidade, proíbe a circulação de jornais, a posse de aparelhos de comunicação e a privacidade das correspondências. O enredo, transcorrido em meados da década de 1930, dialoga com a história política e alinha-se a autores internacionais que retrataram o autoritarismo. Entre 1930 e 1945, Getúlio Vargas assume a chefia provisória do Executivo Federal, instala a ditadura e, por fim, concebe o Estado Novo, valendo-se de artifícios populistas para anestesiar a capacidade coletiva de discernimento. A ação de Vargas, que gera discussões em torno da consolidação do slogan de pai dos pobres e de simpatizante aos regimes autoritários europeus, controverte as análises de seus objetivos. Getúlio: estadista ou ditador?



O diálogo com os autores internacionais acontece, por exemplo, com Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, 1984 e A Revolução dos Bichos, de George Orwell. Huxley e Orwell retratam os gritos de centralização, da falta de aberturas transversais, de desrespeito aos direitos humanos, de menosprezo às conquistas civis, políticas, sociais e individuais. A atitude do prefeito de interior assemelha-se às atividades dos ministérios do governo do Grande Irmão no trabalho incessante de criação de fatos, novidades, situações ou discursos que guiarão o sentimento nacional e suscitarão dúvidas sobre os destinos coletivos, respaldando um liame de identidade grupal. Verdade e mentira são questões manipuladas, transitórias, insustentáveis. Para Montaigne, Verdade e Mentira – assim como outros temas – são vistos sob o prisma da relatividade.



As denúncias contra a centralização de poder – renegando o direito de reconhecimento à pluralidade – e do cerceamento de liberdades também são encontradas em Depois do último trem, trama desenrolada numa pequena cidade imaginária que será inundada por uma barragem e, numa mistura de memória, de sentimentos, de angústias, de imaginação, de delírios, de acerto de contas, revela os grandes percalços que transtornam o espírito de Eduardo.



Depois de dez anos fora em decorrência do relacionamento com uma mulher casada, Eduardo volta a Abarama para rever os pais, os irmãos, os conhecidos e o alcoviteiro Tio Lucas que, reconhecendo-o na estação ferroviária, onde trabalha, transmite uma notícia a queima-roupa: a morte dos pais e a mudança dos irmãos. As forças somem, Eduardo segue para a casa do tio, reconhecendo seu quarto e cada detalhe das divisões, como se jamais tivesse saído dali. A mesma impressão se observa à rua: os habitantes o cumprimentam como se o tivessem visto na véspera ou poucos dias antes. Seu Vidal e Dona Santa, proprietários do armazém, recriminam a conta em aberto de alguns cigarros, mas facilitam o crédito e dão-lhe mais um pacote.



Talvez um dos pontos mais impressionantes da primeira parte de Depois do último trem fique por conta da surpresa – e o narrador consegue nos surpreender e nos alarmar com grande perícia – ao constatar a casa paterna intacta no tempo. Diferentemente do que alertara Tio Lucas, os pais estavam vivos e os irmãos não tinham fugido. A mãe o repreende carinhosamente ao avistá-lo. A irmã precisando armar o varal no quintal. Onde ele estava? Esquecia-se da família apenas porque morava com Tio Lucas?



À hora do jantar, Tio Lucas aparece fofocando sobre as infidelidades de Dona Zoraide, esposa de vinte e dois anos do Dr. Euríclides, e dando indiretas ao sobrinho. Aquelas cenas já não tinham acontecido, não tinham resultado no abandono da família e da cidade? Como uma mesma cena, de tantos anos, se repetia? “Eduardo seria capaz de jurar que estava ouvindo aquela conversa pela segunda vez”.



A transfiguração metafórica esteticamente elaborada da morte rodeia Depois do último trem. As brincadeiras de Tio Lucas sobre o falecimento dos pais e a fuga dos irmãos aliadas às investidas contra seu antigo caso de adultério alteram o bom humor de Eduardo que, irritado com o tio diabético, mistura as cápsulas e substitui os conteúdos dos remédios. A cidade também vai se acabando na medida em que seus habitantes a vão abandonando. Um oficial e dois soldados fogem – depois de libertarem os presos –, o gerente do banco transfere-se para agências em outras cidades, a professora primária escapa discretamente e, agora sim, o irmão de Eduardo opta pela aventura do desconhecido.



Um dos possíveis protocolos de leitura consiste na discussão do tempo: o relógio sempre parado exalaria um suspiro de eternidade, de pouca ou nenhuma pressa, de indiferente preocupação?



O relógio inativo compõe o cenário da conversa durante uma madrugada fria em que Tio Lucas apela para que volte para casa. Em seguida, parte sem se dar conta que o irmão, a cunhada e a sobrinha estavam na mesma sala. Eduardo acredita que os pais e a irmã quiseram ignorá-lo, mas como o perspicaz e curioso Tio Lucas não os tinha percebido?



Eduardo ignora os gritos dos engenheiros da barragem avisando que a última condução já passara: “Procurou acomodar-se no banco duro. Estava certo de que ia acordar assim que o trem chegasse com o seu ranger de ferros. Se não acordasse, tio Lucas o chamaria”.



Depois do último trem – ao lado de Os tambores silenciosos – mistura realismo fantástico, política, governo, sociedade, direitos humanos, desejo de poder. Mais leituras são necessárias para verificar a intensidade e um eventual projeto (in)consciente de Josué Guimarães de se fixar no campo da Literatura Fantástica. Se Depois do último trem atesta a maestria de um esboço do Fantástico – promovendo a denúncia política de arroubos contra a história, a identidade e, principalmente, a memória das pessoas num esfacelamento material, humano e psicológico de maneira gradual, Enquanto a noite não chega consagra o que de melhor existe na Literatura mundial.



Enquanto a noite não chega é, sem dúvida, absoluta e perfeita transfiguração metafórica da morte. Política, economia, desentendimentos ou confluências grupais, discussões religiosas, sobreposições de poderes, confusões entre público e privado, entre democracia e ditadura ocupam papel secundário, mas confluem ao mesmo ritmo e na mesma corrente em que memória, filosofia e estética se congraçam para o espanto aristotélico, o quase ininteligível, o magnífico e o insuperável.



Dom Eleutério, Dona Conceição e Seu Teodoro são os personagens que arrastam a beleza no enredo perpassado de lembranças. Dom Eleutério e Dona Conceição tiveram filhos e netos, mas, por motivos diversos, todos faleceram. Sobraram os dois numa cidade decadente, deserta, caindo aos pedaços e – nas palavras de algumas de minhas alunas de Filosofia no curso de Pedagogia, durante seminário sobre o livro – miserável. A miséria se reporta ao simbolismo da ausência dos bens materiais que representaria, de alguma maneira, o definhamento da vida, mas sem necessariamente comprometer a esperança do espírito.



Seu Teodoro entra na história como o coveiro de idade avançada que aguarda pacientemente a morte de Dom Eleutério e de Dona Conceição para finalmente tomar rumo. Os três mantêm um bom relacionamento. Seu Teodoro freqüenta a residência do casal durante as refeições. E, justamente quando sua falta se avoluma, Dom Eleutério e Dona Conceição caminham ao cemitério para visitar o amigo que, acreditam, esteja de cama em razão de alguma doença.



A parte mais fabulosa repousa certamente ao fim. Dona Conceição e Dom Eleutério encontram Seu Teodoro morto. Pensam em levá-lo para alguma cova, mas já não têm forças para carregá-lo. Fecham-lhe os olhos e pretendem voltar logo para casa, antes que anoiteça. Um cocheiro para à porta do cemitério convidando o casal para subirem na carruagem. Quando estão sentados – talvez remoçados, trajando a roupa do casamento – Dona Conceição jura que o condutor parecia Adroaldo, um dos filhos mortos. Dom Eleutério confirmaria: “eu vi logo que era o nosso filho, mas não quis te dizer nada”.



Em uma publicação do Instituto Estadual do Livro do Rio Grande do Sul, Josué Guimarães apontaria seu livro preferido: “O ponto alto de nossa carreira é sempre o livro que se está escrevendo, ou que ainda se encontra informe dentro da gente. Gosto particularmente da novela, de cento e poucas páginas, intitulada Enquanto a noite não chega. É uma história breve e despojada. Muitas vezes parava num capítulo para curar a fossa por ele produzida. É uma novela tranqüila”.



A paixão de leitor de Josué Guimarães me faz concordar novamente na plenitude de sua escolha: Enquanto a noite não chega atinge o ápice do Fantástico e, sem dúvida, simboliza o que melhor se escreveu entre nós nos últimos quarenta anos. Esse brilhantismo também se seguiria primorosamente, como mencionado parágrafos atrás, quando Dom Eleutério e Dona Conceição já estão na carruagem: “Entrelaçaram as mãos envelhecidas pelo sol, pelo vento, por todos os gestos de carinho de um para com o outro, para com os filhos e os netos, e sentiram juntos que a noite havia chegado”. Quantos mais designariam tão belamente a chegada da morte?



*Publicado originalmente na página 15, edição janeiro/2011, jornal literário Rascunho (Curitiba – PR) – www.rascunho.com.br

sábado, 22 de janeiro de 2011

ESQUECIMENTO

Desceu os cinco degraus, atravessou o jardim, voltou para pegar a carteira caída no chão, engatou a ré e perguntou ao sobrinho e aos dois amigos:



- Querem dar uma volta?



Os jovens nada tinham a fazer na tarde quente de Presidente Prudente. O sobrinho sentou-se no banco da frente; os amigos, no de trás. Saiu a noventa quilômetros por hora, alcançando cento e dez e ultrapassando, minutos depois, os cento e trinta.



- Para onde vamos? O sobrinho, curioso ao tomarem a Raposo Tavares.



- Vamos à minha casa. São 13h40. Antes do café da tarde estamos de volta.



- Mas o senhor não mora em Pedrinhas Paulista?



- Moro? Claro. Claro que moro! São poucos quilômetros até lá. Damos uma voltinha, nos divertimos e pegamos alguma coisa para tomar. O que acham?



Os amigos gritavam euforicamente na ultrapassagem dos cento e cinqüenta quilômetros no carro quase zero, comprado numa dessas promoções de ponta de estoque. A polícia despontou na parte contrária da pista, o tio diminuiu a velocidade, cumprimentou-a com um facho de luz: os ponteiros voltaram a bater insistentemente nos cento e cinqüenta quilômetros.



O carro aproximou-se de Maracaí, contornou a rotatória, deixou Santa Cruz da Boa Vista e Cruzália para trás, entrou na magistral cidade de traços arquitetônicos semelhantes aos da Roma Antiga. Os três jovens desceram na praça. O tio voltou, minutos depois, muito apressadamente.



Os três entraram no carro, colocaram os cintos de segurança. Duas garrafas de vinho, imenso pedaço de salame, caixa de chocolates comida pela metade, água gelada e pão caseiro esfarelado.



Acelerou o quanto pode voltando, com grande facilidade, à Rodovia Raposo Tavares e burlando os radares de controle de velocidade. O sobrinho e os amigos bebiam o vinho diretamente na boca da garrafa enquanto o tio ingeria com grande satisfação a água fresca. O salame desfazia-se à dentada dos famintos e os chocolates, divididos em três porções iguais e uma parte maior para o tio, desmanchavam-se ao contato direto da saliva. Pegou uma sacola plástica debaixo do banco, jogou os papéis de chocolate e a garrafa de água. O sobrinho e os companheiros imitaram os gestos, acrescentando seus papéis, as garrafas vazias de vinho e o pão.



Circundaram o Parque do Povo e o tio, que vinha a Prudente apenas uma vez por ano, geralmente em janeiro, propôs pedirem alguma coisa gelada. Os amigos do sobrinho e o sobrinho gritaram euforicamente mais uma vez, apontando para um bar que freqüentavam nas noites de sábado.



Algumas cervejas, amendoins, cubinhos misturados de presunto e queijo e, solicitação do tio, batatas fritas com queijo parmesão. As cervejas, substituídas de acordo com o fim de seu conteúdo, chamaram a atenção de um grupo de estudantes universitárias, vestidas de branco, provavelmente saídas do estágio obrigatório numa clínica nas redondezas. Olhares trocados, palavras esquecidas, convites aceitos, as cinco meninas sentaram-se à mesa, tomando espaço maior da calçada.



As conversas dos três amigos surtiriam grande efeito, gerando indiscutível êxito se a mãe, a tia e o pai não estacionassem, esbaforidos, olhos arregalados:



- Graças a Deus, disse a tia. Onde está o carro?



O sobrinho apontou o automóvel do outro lado da rua. O pai perguntou se desde que saíram de casa estavam sentados ali. Percebendo algo estranho na voz baixa, respondeu afirmativamente, perguntando do motivo do desespero.



- Esqueceu que seu tio tem problema de memória? Já andou muito por esse mundão velho e sem porteira, mas agora é um perigo. Inofensivo, é verdade, mas perigo. Já roubou, sem querer, refrigerantes, doces, salgadinhos, roupas, remédios. Da última vez, deram três tiros no carro porque pensaram que era um ladrão. Sua tia sempre substitui os documentos e o dinheiro da carteira por recortes de jornal. Faz mais de quinze anos que cassaram a carteira de habilitação dele.



Constatando a aventura em que se metera, o filho, trêmulo e suando frio, ouviu a confirmação do nome da cidade do tio:



- Ivinhema, interior de Mato Grosso do Sul.





*Publicado originalmente na coluna Ficções, Caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 21 de janeiro de 2011.

sábado, 15 de janeiro de 2011

COLHENDO MANGAS

O Parque João Domingos Coelho, popular Buracão, situa-se no coração de Assis, a pouco mais de cem quilômetros de Presidente Prudente. Excluídas as peculiaridades tropicais, as nuances de verde nos lembram os românticos e movimentados parques franceses e argentinos, freqüentados por famílias, namorados ou solitários que sabem se comportar diante de uma garrafa de vinho.



Quando eventualmente passo longas tardes em Assis, aos domingos, feriados ou nos dias em que o comércio está fechado, entro no Parque Buracão, escolho uma sombra frondosa, armo minha cadeira de praia, pego um dos livros que me acompanham e deixo-me flutuar nos brilhantes enredos e símbolos com os quais os escritores nos brindam. Carregava as crônicas de Josué Montello – certamente um dos grandes polígrafos do século vinte – e “Cinq semaines en ballon”, de Julio Verne. Folheava o Montello. Ouvi uma grande pancada. Imaginei alguém pulando o alambrado, porém me surpreendi ao, olhando para trás, não encontrar ninguém.



Voltei a pegar o Montello e corri os olhos por mais ou menos dez páginas: queda seca e forte me fez levantar sobressaltado. Senão era alguém pulando o alambrado, o que acontecia?



O mistério talvez perdurasse longo tempo se uma menina – provavelmente, pela cor da roupa, brincara na areia, na lama ou no barro a manhã inteira – não se pusesse às minhas costas e, sob meus olhos atentos, retirasse duas sacolas plásticas de supermercado e recolhesse as mangas perdidas entre o mato alto. Não demorou muito para que outra manga, caindo sem avisar os galhos, proporcionasse um estrondo seco e forte.



Duas crianças, retirando sacolas plásticas dos bolsos, apareceram minutos depois. Assim como a primeira, pesquisavam entre os tufos de capim as mangas que caíram horas antes. Algumas frutas pareciam sadias; outras, verdes. Sem distinguir as verdes das maduras ou as em bom estado daquelas de difícil ingestão, as três saíram carregando sacolas cheias.



Ajeitei-me na cadeira e voltei ao Montello. Sua próxima crônica narrava as singularidades da transição entre a adolescência e a juventude: o menino desaparecia para ceder espaço ao jovem, ares e comportamentos de adulto. Saía para bater pernas com os amigos nas noites ludovicenses. Voltando de madrugada, recebia as advertências paternas, moldadas pelas diretrizes presbiterianas. Numa dessas advertências reiteradas, a iniciativa do jovem amalgamada ao linguajar do adolescente garantiu, em momento hilário, as cópias das chaves da casa.



As chaves simbolizavam a aceitação do rito de passagem: o menino obtém a liberdade e a responsabilidade de seus atos, chegando à hora desejada, sem cobranças, sem incômodos, sem sermões. A liberdade e a responsabilidade desenvolvidas na juventude asseguraram ao escritor, no sentido mais amplo da acepção e na profundidade intelectual do substantivo, a construção dos enredos e a intensidade da força estilística no conjunto da obra.



Mais algumas mangas caíram, outras crianças apareceram, alguns adultos também deram o ar do sorriso trazendo não apenas sacolas plásticas, mas resistentes carrinhos em que acumulavam as dezenas de frutas escondidas pelo mato alto. Uma criança de mais ou menos três anos sugava o líquido exteriorizando grande satisfação por meio dos olhos apertados. Um menino de calções multicoloridos ensaiava trepar-se ao cume da árvore, entretanto os gritos maternos demoveram-no do intento. O pai interveio. Se o menino queria subir na árvore, qual o problema? Já tinha nove anos. Praticamente um homem. Precisava de desafios que constituíssem o caráter.



O menino tentou a primeira vez, desequilibrou-se e voltou ao chão. Ensaiou a segunda investida, segurou-se alguns segundos e caiu sentado. Quis chorar, mas o pai insistiu: desistir agora? Ralou-se no terceiro tempo da luta, quase meteu a cara no chão no quarto round e, no quinto, pensava mesmo em desistir, acelerou a respiração, puxou as forças do invisível e grudou-se no galho. O pai aplaudiu, a mãe exclamou qualquer coisa e eu, assim como outros freqüentadores que assistiam ao teatro, vislumbrei o pai concedendo a chave da liberdade a Montello.





*Publicado originalmente na coluna Ficções, Caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 14 de janeiro de 2011.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

COMO NASCEM AS ÁRVORES?

Um programa de televisão ensinava a importância dos pássaros: são os responsáveis pelo transporte das sementes formando, centenas de quilômetros alhures, florestas densas. Caídas ao solo fértil, as sementes moldam uma rica flora. Lançadas em terras estéreis, esperneiam, suspiram, expiram.



O nascimento das árvores independe da ação humana. Cabe aos pássaros a tarefa de salvar o mundo pelo trabalho delicado. Se as sementes transportadas não frutificam, valeu a tentativa. Se são vitoriosas, os resultados florescem lenta, gradual e naturalmente.



Nelson e Goreti – meus primos da capital paulista – vieram ao interior no feriado de Corpus Christi de 2001. Ainda desconhecia as peculiaridades entre religião e religiosidade. Sempre que tinha oportunidade, Goreti atacava meu ateísmo: repetia que Santa Mônica orara quarenta anos em prol da conversão do filho.



Os quarenta anos de oração de Santa Mônica deveriam ter sido omitidos das recordações se, numa das limpezas de minha biblioteca em 2003, as “Confissões”, de Santo Agostinho, não tivessem me hipnotizado. O prefaciador referia-se ao desespero e à angústia do homem que chorava no jardim quando, ouvindo a voz de uma criança, olhou para o lado e encontrou uma mensagem de transformação. Linhas abaixo, no mesmo prefácio, o detalhe: Santa Mônica, mencionada inúmeras vezes por Goreti, tratava-se da mãe de Santo Agostinho cujo livro, numa perspectiva menos teológica do que filosófica, reforçou minhas dúvidas de fidelidade espiritual.



Numa das primeiras aulas da graduação em pedagogia em agosto de 2010, uma aluna encetou diálogo, compartilhando comigo dos sacrifícios para minimizar os efeitos do câncer manifestado no filho. Lembrei-me da história de Santo Agostinho e a repeti à aluna, numa tentativa de confortá-la e incentivá-la nos desafios familiares cotidianos.



Pensei sinceramente que a repetição do enredo não tivesse servido de nada. Meu ensaio de solidariedade descera aceleradamente as correntezas das grandes cachoeiras? Numa avaliação em dezembro, distribuí folhas aos alunos solicitando-lhes que, sem a necessidade de se identificar e protegidos pela segurança do anonimato, apontassem críticas à minha metodologia de ensino. Saí da sala por vinte minutos. Ao voltar, encontrei os comentários sobre minha mesa e embaixo de minha bolsa.



Em casa, li crítica por crítica, folha por folha. Uma das folhas, dobrada em quatro partes iguais, trazia escrito em letras grandes: “Leia, por favor”. Abri o papel. A aluna lembrava do episódio de agosto. Ao chegar em casa, pesquisara sobre Santo Agostinho e sua mãe. Concluíra que ainda não tinha orado nada e redobrou seus esforços nos pedidos divinos. A história de Santo Agostinho multiplicou sua fé, impulsionara sua esperança e consolidara sua determinação nos rogos ao poder supremo.



A semente jogada reiteradamente por Goreti em meus ouvidos estéreis às incursões da religião – mas não da religiosidade – em junho de 2001 foi reavivada em 2003 para alcançar seu primeiro fruto em dezembro de 2010.



Lembrei-me dessa história no primeiro domingo de 2011. Minha mãe, que é pediatra, emocionou-se ao saber que uma de suas ex-pacientes entrara no curso de medicina da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) por um motivo: queria ser médica como sua antiga pediatra.



Algumas pessoas são como pássaros: jogam naturalmente sementes por onde passam. Se a semente cairá sobre a terra ou se morrerá sobre rocha? Uma questão de sorte. Se a árvore crescerá e oferecerá bons frutos? Depende da fome do observador. Se os frutos fornecerão novas sementes para propagação de sua força? Mistério da vida. Porque a vida desenrola-se sem grandes explicações, contrariando muitas convicções científicas, surpreendendo os resultados óbvios e reconstruindo os caminhos do espanto. Uma semente jogada anos ou décadas atrás eventualmente pode construir uma floresta cheia de alegrias.



Como nascem as árvores? Talvez Goreti, a minha aluna de pedagogia, minha mãe e a nova acadêmica da UFPB possam explicar.





*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 7 de janeiro de 2011.

sábado, 1 de janeiro de 2011

RITMO E POESIA

O professor e músico Lincoln F. Dantas passou um fim de semana em casa com o objetivo de dar entrevista ao nosso programa de sábado à tarde. Disse-lhe que, se realmente viesse, tentaríamos visitar dois poetas assisenses. Por volta das dez horas, chegamos à casa de Antônio Lázaro de Almeida Prado que, logo de início, presenteou seus livros e, por mais ou menos uma hora, jogou-nos uma torrente de informações a partir de minha provocação: poesia e música possuíam grandes afinidades e confluências?



Construindo seu discurso nos conceitos seculares e gradativos da filosofia, da sociologia, da teoria e da criação Literárias, da música e das artes, citando seus autores preferidos em francês, italiano, espanhol, inglês, grego e latim, Almeida Prado confirmava o ponto de debate que nos envolvera de madrugada quando retornávamos de Pedrinhas Paulista. A meu pedido, o poeta de corpo octogenário, mas de espírito adolescente, abriu as portas de sua biblioteca – que, por um cálculo rápido, imagino arregimentar em torno de setenta mil livros.



Saindo de sua residência, partimos à caça de José Benjamim de Lima. Tenho o mau hábito de chegar à casa dos outros sem avisar. Se não estão em casa, a ausência constitui convite de insistência que vez por outra pratico com tranqüilidade. Mas, se estão em casa, mesmo que atarefados, demonstram sua grandeza de espírito e nos acolhem, respondendo de supetão às nossas perguntas. José Benjamim de Lima também nos transmitiu grandes concepções com sua sensibilidade poética, respondendo à mesma pergunta: poesia e música possuíam grandes afinidades e confluências?



Segundo o cronista Rubem Alves, a memória guarda o que marca. Não interessa se é bom ou ruim, emocionante ou melancólico, feliz ou fatalista. Do músico Lincoln F. Dantas, ouvi sua admiração pela paciência e humildade de Almeida Prado, despejando-nos sua erudição e pela simplicidade e paixão literária de José Benjamim de Lima que deitou no chão, subiu em cadeiras, revirou estantes e desarrumou obras em busca de um livro que gostaria de emprestar ao meu convidado.



O livro perdido entre outros milhares foi providencial. Graças a esse livro fugido, o poeta emprestou “Ritmo e poesia”, de Cavalcanti Proença, alertando o músico dos cuidados necessários ao manuseio do raro exemplar.



Observei que nós, que amamos e respiramos Literatura, temos alguns comportamentos de grupo: adoramos remexer os livros, realocá-los de acordo com nossas necessidades, tratar de nossas preferências, compartilhar leituras interessantes. Em uma de suas entrevistas, o contista Charles Kiefer disse que lia vários livros ao mesmo tempo e o romancista Raimundo Carrero confessava que se sentava ao meio de sua biblioteca para namorar os títulos até escolher um deles e levá-lo ao altar da leitura.



Quando voltávamos a Maracaí, Lincoln relembrava das explanações de Antônio Lázaro de Almeida Prado e de José Benjamim de Lima. Acrescentei às suas impressões uma observação peculiar: quem realmente gostava de Literatura – como os dois poetas – jamais se cansava de propagá-la.



Ainda falamos muito sobre filosofia, poesia e música. Depois, observei que “Ritmo e poesia” dizia muito não apenas de poesia e música, mas principalmente de vida. Porque a vida, assim como a música e a poesia, entrelaça seu desejo de perpetuação. O entrelaçamento ocorre na transmissão sensível e peculiar dos trejeitos, marcada pela sensibilidade imperceptível. É como o filho que, assimilando os costumes paternos, imita-os inconscientemente, comprovando inserção ao grupo social.



Em sua residência, mostrou-me o músico os computadores usados no desempenho do ofício de especialista em Tecnologia da Informação. Da pilha de livros técnicos, sacou um, de Paul Arden, que aborda as questões relacionadas aos modos de vencer na vida. Aceitei o livro menos por interesse do que pela amabilidade do gesto que, simples e emotivo, sacramentava o habitus adquirido simbolizando assim, como um ano que se encerra e outro que se inicia, a redescoberta dos aprendizados cotidianos.





*Publicado originalmente na coluna Ficções, Caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 31 de dezembro de 2010.