Quando entrei no primeiro ano da faculdade, encontrei um professor calvo, quase metro e oitenta, teólogo, filósofo, mestre e doutor em História que apresentava as nuances da teoria do estado, do pensamento filosófico e das ciências políticas. Desde os primeiros momentos alguns alunos e eu nos encantamos com a avalanche de erudição de quem, na primeira aula, ousou nos empurrar Bobbio. Qualquer livro de Bobbio apresenta uma série de dificuldades por reunir, em parágrafos curtos, a densidade de idéias e de análises enciclopédicas.
Cada sexta-feira ouvíamos as aulas que jamais consistiam num trajeto retilíneo, porém recheadas de tempestades, de turbilhões beligerantes, de confrontos, de desencontros, de percepções múltiplas e de exercício psicológico nos moldes de Clarice Lispector. Não se pode esquecer que vez por outra entrava no espírito de Fernando Pessoa e Shakespeare, na axiologia iconoclasta de Nietzsche ou nas aventuras de Foucault.
Os dois anos iniciais passaram e voltamos a encontrá-lo no penúltimo lecionando metodologia científica, atividade que acabou resultando num livro útil a que, até hoje, já mestre e turista no mundo acadêmico, recorro frequentemente.
Durante as aulas de metodologia, mostrava os sistemas de análise, as tais dedução e indução, hipótese, tese, levantamento e fichamento bibliográficos. Assistia à aula, impressionado novamente pela capacidade oratória aliada à vasta erudição de um mestre das ciências humanas. Além de grande analista intelectual, possuía uma qualidade que muitos desejam, mas que poucos efetivamente alcançam com sucesso: a arte da escrita.
Daí que cada aula de metodologia fugia às convenções da explanação de regras mortas e sem tesão para entrar barulhentamente nas relações epistemológicas e de estilo. Explanava pormenorizadamente quais recursos estilísticos usar:
- Concentrem-se na primeira escrita, pois a primeira passada de olhos quem faz é você, mas na condição de leitor.
Em decorrência de suas análises singulares, de suas interpretações que diferiam do senso comum – e principalmente do senso comum estudantil preguiçoso – e de sua oposição a alguns pontos de consenso reiterados sem reflexão pelo comodismo dos tempos, suas observações causavam burburinhos e protestos nos intervalos das aulas.
Lembro especialmente de duas situações que causaram burburinhos por três ou quatro semanas: estudo e livros. Quando voltou de uma de suas viagens a São Paulo, disse-nos que passara noites e intervalos dos compromissos lendo filosofia. Os alunos se revoltaram. Jamais, afirmava grande parte dos discentes, ficaria trancada ou lendo em São Paulo.
A outra revelação – e espero não causar nenhum problema ao seu casamento – era a paixão pelos livros. A esposa Carolina (como a de Machado de Assis ou da música de Chico Buarque) reclamava, brigava, ralhava, repreendia, zangava-se, se inquietava quando aparecia com eles. Para manter as pazes com a esposa e continuar a paixão da leitura, optou por método prático: entrava em casa escondido, depositava o livro na biblioteca e só então voltava para o carro, buzinando, fazendo alarde, como se tivesse acabado de chegar.
- Cada aluno que vai sair daqui, continuava no culto à leitura, deve ter, pelo menos, uma biblioteca de 150 livros. O advogado tem que ter 150 livros de sua área. O economista deve ter 150 livros de sua área. O historiador, o administrador, o contador, o médico, o agrônomo, o físico, o biólogo...
Nos dias seguintes, nós, os alunos, achávamos absurda a proposta de 150 livros específicos em nossas estantes.
Hoje, passados dez anos desde nosso primeiro contato, verifico que o professor Rubens Galdino da Silva deslizava – e desliza – em patamar a que, se quisermos chegar, ainda precisamos amadurecer, ler, refletir e se dedicar muito.
Talvez eu não tenha mencionado. O professor Rubens Galdino da Silva cursou teologia porque queria ser clérigo protestante. O grande Rubem Alves também. Sou cético, mas quando leio que a “verdade vos libertará” (Jo 8,32), inevitavelmente me lembro de Rubens Galdino da Silva e Rubem Alves, enchendo-me de sincero contentamento na esperança de que a verdade que um dia os libertou possa, nas canções de suas palavras, nos preencher.
***
De hoje até domingo, 24 de outubro, a Spoladore Eventos e a Secretaria Municipal de Cultura e Turismo promovem o Salão do Livro de Presidente Prudente que ocorrerá no Centro de Eventos IBC, Rua Hugo Lacorte Vitale, nº 46, Parque Furquim, próximo ao Centro Cultural Matarazzo. O evento será realizado das 9h às 22h (de segunda a sexta-feira) e das 10h às 22h (aos sábados e domingos). Melhores informações: www.salaodolivropp.com.br Participem!
*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 15 de outubro de 2010.
Nenhum comentário:
Postar um comentário