Para Carolina Mussolini
A secretária apontou o telefone falando, entre os dentes, que uma mulher queria colocar algumas fotos na coluna social. A editora fechou dois arquivos abertos na tela do computador, riscou compromissos da manhã, amarrou o longo cabelo preto, bebeu um pouco mais do chá de camomila frio, que repousava na ponta da mesa:
- Olá, boa tarde. Em que posso ajudar?
O silêncio a fez pensar que a ligação tivesse caído. Falando um pouco mais alto:
- Em que posso ajudar?
- Oi. A senhora me desculpe. Primeira vez que falo com uma pessoa de jornal. Estou muito nervosa.
- Tudo bem, respondeu a editora. Pode me chamar de você. Não precisa ficar nervosa porque estou aqui para ajudá-la. E, por falar nisso, como posso ajudá-la?
- A senhora, digo, você é responsável pela parte de fotos de festas no jornal?
- Sou a editora responsável pela coluna social em que, entre outras coisas, publicamos algumas fotos de festas. Interesse nas fotos?
- Precisa de muito dinheiro? É muito caro?
- As fotos são publicadas de graça, disse a editora, puxando a xícara de chá, dando mais um gole e procurando um número qualquer na agenda aberta sobre as pernas.
- Meu “filho” vai fazer dois anos na sexta-feira. Gostaria de saber se as fotos podem ser colocadas na edição de sábado. Podem?
- Sem dúvida. Como ele vai fazer dois anos, presumo que a festa se estenda, no máximo, até por volta das dez da noite.
- Exato.
- Temos três fotógrafos para cobrir eventos sociais, mas um está de licença médica e o outro de férias. De modo que temos apenas um profissional disponível. Ele teria de ficar, no máximo, quinze minutos, tirar as fotos e já voar para outros eventos. Só na sexta-feira, disse, constatando na agenda, ele possui sete festas.
O silêncio do outro lado da linha substituía o nervosismo inicial ou pela angústia ou pelo medo.
- Se tiver alguém que entenda de fotografia, pode tirar umas quinze e a gente escolhe as três melhores.
A leitora confirmou a presença do irmão que entendia de fotos e de artes e se comprometeu a enviar a quantidade solicitada até meia-noite. A editora falou pausadamente o endereço eletrônico e, antes de desligar, ouviu o agradecimento da mulher.
- Meu “filho” é excepcional. Isso significa muito para mim!
Na sexta-feira, a editora alertou a equipe sobre o envio de mais ou menos quinze fotos por volta da meia-noite. Escolhessem as três melhores e, acontecesse o que acontecesse, publicassem as do “filho” excepcional. Se preciso, deixassem de publicar as da filha do presidente do supermercado, do gerente da rede de farmácias, da esposa do diretor-presidente da construtora Prédio em Pé e até do encarregado do banco do estado, mas em hipótese nenhuma esquecessem de sua recomendação.
Às 23h45, um dos membros da equipe telefonou. Nada de foto. Pediu que esperasse mais um pouco. Meia-noite e meia: nada de notícias. Pouquinho depois da uma hora da manhã, o ajudante confirmava o recebimento e perguntava se realmente queria publicar aquelas fotos “excepcionais”.
- Você é muito preconceituoso! Como pode me perguntar se quero publicar fotos “excepcionais”? O jornalismo contemporâneo pratica a inclusão e garante o mesmo espaço para todos. Para todos, você me ouviu? Do mais rico ao mais pobre, do mais inteligente ao intelectualmente menos favorecido, do agricultor ao citadino, do cristão ao ateu, do socialista ao liberal!
O assistente respondeu positivamente. Escolheria as três melhores fotos do “filho excepcional” da leitora, colocaria numa posição de destaque. A editora ainda comentou o desaforo do assistente com o marido. As pessoas falavam tanto de mudança, mas se denunciavam refém de preconceitos. O “filho” excepcional da leitora de fora? De jeito nenhum. O marido disse-lhe três ou quatro dúzias de lugares-comuns para acalmá-la, mas ela se perdia em seus pensamentos de ira, de raiva, de inconformismo. Arrumou o travesseiro, puxou o lençol e acordou às seis e quinze da manhã, telefone tocando, o dono do jornal em voz pausada:
- Desde quando fotos de porcos entram na coluna social?
*Publicado originalmente na coluna Ficções, Caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 29 de outubro de 2010.
sábado, 30 de outubro de 2010
sábado, 23 de outubro de 2010
ABRAÇANDO MILHÕES
Moacyr Scliar é, de longe, um dos escritores brasileiros mais importantes, prolíficos, profícuos e cosmopolitas da atualidade, comparável aos grandes nomes americanos ou europeus. A facilidade com que desenvolve sua prosa – seja no romance, seja na crônica, seja no conto, seja no ensaio – demonstra a magnitude de quem fez da palavra atividade de transformação pessoal (quando vence seus limites e redescobre a intensidade do poder criativo) e coletiva (ao nos mostrar sua desenvoltura nas construções sintáticas e semânticas, indiscutivelmente marcadas pela profundidade de suas mensagens).
Essas qualidades reaparecem consagradas em “Eu vos abraço, milhões”, romance de pouco mais de duzentas e cinqüenta páginas que sai pela Companhia das Letras. O que se avalia num escritor consagrado não são mais apenas as questões de linguagem, de estilo e de construções metafóricas – consolidadas e familiares ao seu público cativo – mas a possibilidade de unidade de obra, erigida em temas recorrentes, que perpassam seu trabalho e exteriorizam suas preocupações. Em “Eu vos abraço, milhões”, Scliar refaz a trajetória de Valdo, filho de empregado de estância, cujo pai é humilhado pelo coronel Nicácio. Embora leitor atento e estudante cioso de suas tarefas, Valdo se deixa envolver pela doutrinação do filho da professora de português que, com linguagem adequada e argumentação estruturada, o convence da superioridade do marxismo.
Valdo então pretende seguir para o centro comercial, industrial e político do Brasil para se filiar ao partido comunista e lutar por uma causa que, na prática, asseguraria a mudança no país. A mudança no país, talvez pense Valdo, evitaria situações humilhantes pelas quais passara o pai. A legitimidade do discurso se mantém pela maturidade do narrador em primeira pessoa – o narrador-personagem está em idade avançada, morando, apesar dos protestos dos filhos, numa “casa geriátrica” –, pela intimidade que imprime tom confessional, pelo suporte dos relatos pessoais que é a carta escrita – deixando de lado as mensagens eletrônicas –, pelo distanciamento entre o narrador e o destinatário (um neto que mora nos Estados Unidos, com quem mantém pouco contato. O pouco contato e o distanciamento promovem um aspecto de verdade à narrativa).
Quando destaca esses aspectos narrativos, Scliar retoma amadurecidamente alguns temas que configuram a unidade de sua obra: política, história, memória, Literatura, movimentos sociais, comunismo, medicina, o encantamento de Porto Alegre (como espaço de chegada, de partida ou de desenvolvimento das tramas), da religião como Fato Social observado por Durkheim. Encontramos, por exemplo, “Mês de cães danados” ou “O exército de um homem só” com temas políticos – práticos e teóricos – em situações diversas na história brasileira, retomadas em “Eu vos abraço, milhões”.
A maturidade ainda deve ser festejada na medida em que, seguindo a tradição Literária que criou nos últimos cinqüenta anos, Scliar aperfeiçoa a linguagem que contempla de velhos a jovens, de adultos a adolescentes, demonstrando sua capacidade original de prender o leitor por uma história bem contada em forma e em conteúdo. Essa a grande qualidade de “Eu vos abraço, milhões”: o esplendor da maturidade de quem, seguindo os passos de Érico Veríssimo, mostra-se universal pelo local, consagrando-se pela diversidade, pela forma e pelo conteúdo.
“Eu vos abraço, milhões”, retomando uma das temáticas preferidas do autor gaúcho, resulta numa síntese do bem escrever. Mais um precioso livro que entra na bibliografia do escritor e na biblioteca de admiradores, bons professores e leitores em geral.
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Eu vos abraço, milhões
Moacyr Scliar – Companhia das Letras – 256 p. – R$ 39,50
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Neste domingo, 24 de outubro, a Spoladore Eventos e a Secretaria Municipal de Cultura e Turismo encerram o Salão do Livro de Presidente Prudente que ocorre no Centro de Eventos IBC, Rua Hugo Lacorte Vitale, nº 46, Parque Furquim, próximo ao Centro Cultural Matarazzo. Às 16h de domingo, segundo previsto no cronograma do evento, Moacyr Scliar – escritor, médico, membro da Academia Brasileira de Letras e colaborador de vários periódicos nacionais e internacionais – discorrerá sobre “O autor dentro de sua literatura”. Oportunidade única! Melhores informações: www.salaodolivropp.com.br Participem!
*Publicado originalmente na coluna Ficções, Caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 22 de outubro de 2010.
sexta-feira, 15 de outubro de 2010
PROFESSOR RUBENS
Quando entrei no primeiro ano da faculdade, encontrei um professor calvo, quase metro e oitenta, teólogo, filósofo, mestre e doutor em História que apresentava as nuances da teoria do estado, do pensamento filosófico e das ciências políticas. Desde os primeiros momentos alguns alunos e eu nos encantamos com a avalanche de erudição de quem, na primeira aula, ousou nos empurrar Bobbio. Qualquer livro de Bobbio apresenta uma série de dificuldades por reunir, em parágrafos curtos, a densidade de idéias e de análises enciclopédicas.
Cada sexta-feira ouvíamos as aulas que jamais consistiam num trajeto retilíneo, porém recheadas de tempestades, de turbilhões beligerantes, de confrontos, de desencontros, de percepções múltiplas e de exercício psicológico nos moldes de Clarice Lispector. Não se pode esquecer que vez por outra entrava no espírito de Fernando Pessoa e Shakespeare, na axiologia iconoclasta de Nietzsche ou nas aventuras de Foucault.
Os dois anos iniciais passaram e voltamos a encontrá-lo no penúltimo lecionando metodologia científica, atividade que acabou resultando num livro útil a que, até hoje, já mestre e turista no mundo acadêmico, recorro frequentemente.
Durante as aulas de metodologia, mostrava os sistemas de análise, as tais dedução e indução, hipótese, tese, levantamento e fichamento bibliográficos. Assistia à aula, impressionado novamente pela capacidade oratória aliada à vasta erudição de um mestre das ciências humanas. Além de grande analista intelectual, possuía uma qualidade que muitos desejam, mas que poucos efetivamente alcançam com sucesso: a arte da escrita.
Daí que cada aula de metodologia fugia às convenções da explanação de regras mortas e sem tesão para entrar barulhentamente nas relações epistemológicas e de estilo. Explanava pormenorizadamente quais recursos estilísticos usar:
- Concentrem-se na primeira escrita, pois a primeira passada de olhos quem faz é você, mas na condição de leitor.
Em decorrência de suas análises singulares, de suas interpretações que diferiam do senso comum – e principalmente do senso comum estudantil preguiçoso – e de sua oposição a alguns pontos de consenso reiterados sem reflexão pelo comodismo dos tempos, suas observações causavam burburinhos e protestos nos intervalos das aulas.
Lembro especialmente de duas situações que causaram burburinhos por três ou quatro semanas: estudo e livros. Quando voltou de uma de suas viagens a São Paulo, disse-nos que passara noites e intervalos dos compromissos lendo filosofia. Os alunos se revoltaram. Jamais, afirmava grande parte dos discentes, ficaria trancada ou lendo em São Paulo.
A outra revelação – e espero não causar nenhum problema ao seu casamento – era a paixão pelos livros. A esposa Carolina (como a de Machado de Assis ou da música de Chico Buarque) reclamava, brigava, ralhava, repreendia, zangava-se, se inquietava quando aparecia com eles. Para manter as pazes com a esposa e continuar a paixão da leitura, optou por método prático: entrava em casa escondido, depositava o livro na biblioteca e só então voltava para o carro, buzinando, fazendo alarde, como se tivesse acabado de chegar.
- Cada aluno que vai sair daqui, continuava no culto à leitura, deve ter, pelo menos, uma biblioteca de 150 livros. O advogado tem que ter 150 livros de sua área. O economista deve ter 150 livros de sua área. O historiador, o administrador, o contador, o médico, o agrônomo, o físico, o biólogo...
Nos dias seguintes, nós, os alunos, achávamos absurda a proposta de 150 livros específicos em nossas estantes.
Hoje, passados dez anos desde nosso primeiro contato, verifico que o professor Rubens Galdino da Silva deslizava – e desliza – em patamar a que, se quisermos chegar, ainda precisamos amadurecer, ler, refletir e se dedicar muito.
Talvez eu não tenha mencionado. O professor Rubens Galdino da Silva cursou teologia porque queria ser clérigo protestante. O grande Rubem Alves também. Sou cético, mas quando leio que a “verdade vos libertará” (Jo 8,32), inevitavelmente me lembro de Rubens Galdino da Silva e Rubem Alves, enchendo-me de sincero contentamento na esperança de que a verdade que um dia os libertou possa, nas canções de suas palavras, nos preencher.
***
De hoje até domingo, 24 de outubro, a Spoladore Eventos e a Secretaria Municipal de Cultura e Turismo promovem o Salão do Livro de Presidente Prudente que ocorrerá no Centro de Eventos IBC, Rua Hugo Lacorte Vitale, nº 46, Parque Furquim, próximo ao Centro Cultural Matarazzo. O evento será realizado das 9h às 22h (de segunda a sexta-feira) e das 10h às 22h (aos sábados e domingos). Melhores informações: www.salaodolivropp.com.br Participem!
*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 15 de outubro de 2010.
sábado, 9 de outubro de 2010
UMA LINDA MULHER
O poeta Affonso Romano de Sant’Anna escreveu uma crônica magistral que, na voz perfeita do ator Paulo Autran, nos faz pensar na interação da Literatura com outras disciplinas, manifestações artísticas e teorias do conhecimento. “A mulher madura” só tem vida quando une texto de Affonso à voz de Autran.
Talvez a insistência de ouvir a interpretação da crônica me tenha feito perceber alguns pontos interessantes nas mulheres maduras. Mas, assim como uma aluna interrompeu Affonso em uma de suas aulas na PUC do Rio de Janeiro para perguntar se ela já chegara à maturidade, indago: o que é a mulher madura ou, pelo menos, o que é uma mulher madura? Ela se estabelece pela idade, pela experiência, pelo dinheiro, pela quantidade de viagens no mundo, pela profissão, pela inserção social? Ela se constrói pela capacidade de encantar discretamente ou pela sutileza de exalar o perfume antes mesmo de chegar? Uma mulher madura se constitui pela idade – 20, 30, 40 anos? – ou se forma na perspectiva de se tornar atraente, erótica e sensual durante as rotinas?
Diante dos questionamentos, melhor deixar os pensamentos voarem numa velocidade própria e achar não mais uma mulher madura, mas uma linda mulher em quem possamos concentrar nossas atenções, pensarmos em seu charme durante a noite, sonharmos com ela durante o dia e sentir seu cheiro musical aos fins da tarde.
Quando o fim da tarde coincide com sua chegada, a transformação do ambiente pressupõe experiência estética única, repetindo algumas das discussões filosóficas de Parmênides sobre realidade e aparência. A realidade se configura pelo sorriso daquela linda mulher enquanto a aparência – efêmera como todas as coisas gostosas – deveria se diluir, mas se mostra intacta e revigorante.
São nesses momentos que descobrimos se um homem está enfeitiçado. Os homens se alteram e se comportam de maneira inesperada. Querem simplesmente se aproximar da linda mulher, sentir o vôo de seus cabelos, o desejo de seu pescoço, os gritos dos olhos. O homem enfeitiçado quer uma linda mulher perto da visão, como se quer perto das mãos as teclas do piano, como se quer perto dos olhos os romances mais instigantes, como se quer perto dos ouvidos as notas de Ravel, como se quer perto do nariz as essências vitais, como se quer perto da pele o gosto da vida.
A busca do homem muitas vezes é útil. Útil porque permite que o amadurecimento das tentativas consubstancie as próximas tentativas numa vontade intensa da conquista da linda mulher que, para ser amada, precisa decidir-se por uma resposta à pergunta aristotélica: Que espécie de amor você quer? Se, mesmo assim, a dúvida persistir e a resposta se embaralhar, talvez seja hora de mergulhar em Epicuro e questionar a si mesma: busco a felicidade ou a formalidade?
Quem pensa que a filosofia não tem aplicações práticas e não serve para nada está certo. Rubem Alves e Affonso Romano de Sant’Anna já nos deram oportunidades de conhecer o “nada” por meio de suas crônicas. Talvez seja esse “nada” que permite à mulher – seja a madura de Affonso na voz de Autran, seja a que idealizamos no espetáculo do crepúsculo – a metamorfose de sua vida, da minha vida, das nossas vidas. Bem ou mal, chega o momento em que a mulher – assim como o homem – descobre que Epicuro estava predominantemente correto: a felicidade é muito mais importante do que a formalidade, a burocracia, os estigmas e as opiniões dos outros. É só observar, por exemplo, qual o destino dos personagens de Carlos Heitor Cony e de Lygia Fagundes Telles ao se guiarem pela opinião alheia.
Uma linda mulher – mesmo quando não temos o prazer de vislumbrá-la todos os dias – tem o poder de nos enfeitiçar e nos deixar hipnotizados com sua presença em nossas mentes. Talvez por isso os fins de tarde se apresentem tão fabulosos e aguardados, provavelmente na esperança de que entre esvoaçante, trajando mais um de seus belos vestidos que nos deixam extasiados, usando um corte de cabelo perfeito, um sorriso dramatúrgico, maquiagem jovial e palavras diferentes, compreensivas, sedutoras. Essa linda mulher decifra-se em pura ebulição nos tornando espectadores num primeiro momento, expectadores em uma segunda oportunidade e, ao final, fãs quase incondicionais. Quando finalmente caímos em seus cantos de sereia, esperamos angustiadamente os hálitos da construção de intermináveis suspiros, devaneios e desejos inomináveis.
*Publicado originalmente na coluna Ficções, Caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 8 de outubro de 2010.
sábado, 2 de outubro de 2010
PROFESSOR DE FILOSOFIA
Para Júlio Cesar Gonçalves, filósofo e educador
O professor entrou atrasado depois de transitar por cinco dos doze prédios da instituição, procurar indicativos ou pontos de referência, pegar um livro de Nietzsche que caíra enquanto descia seis lances de escadas, comprar uma Coca-Cola, lembrar-se do cheque especial estourado, do filho que queria um intercâmbio, da filha que procurava um namorado, da mulher que reclamava que ele trabalhava muito, do ex-orientador exigindo produção científica, de um antigo amor do Paraná, do congresso em Florianópolis...
- Boa tarde. Sou o professor de filosofia. Hegel, Nietzsche e Russell são nossos objetos de estudo nos próximos cinco sábados. O tempo é pouco – disse, observando a sala repleta de homens e três mulheres, botas, calças jeans, camisas de flanela colorida e alguns usando fivela de cinto de causar inveja aos mais brilhantes profissionais de pratos da rainha da Inglaterra – mas faremos o possível para nos aprofundar no sistema filosófico desses três pensadores que são, do meu ponto de vista e de milhares de especialistas e leitores, os mais importantes da sociedade ocidental.
Retirou alguns papéis da bolsa e enquanto escrevia esquemas no quadro, ouviu um aluno falar baixinho ao outro:
- Não disse que valia a pena? Que tinha bons professores? Onde mais estudaria filosofia? Aqui tem café no bule.
O professor riu discretamente, concluindo as anotações, abrindo a lata de Coca-Cola e perguntando se tinham tido aula de filosofia em seus cursos de graduação. O silêncio o advertiu da cautela necessária e do esforço redobrado na transmissão dos conhecimentos. Se emaranhasse as complexidades dos três filósofos na primeira oportunidade, os alunos se amedrontariam.
- Pois bem, disse espontaneamente, gostaria de saber se alguém aqui já ouviu falar de Hegel. O silêncio bateu mais uma vez nos alunos que se entreolhavam, virando-se para os lados, para frente e para trás, em busca dos mais bem informados.
Como ninguém se manifestasse, o professor continuou:
- Hegel tem um importante papel na teoria do conhecimento, principalmente porque inspirou aquele que é considerado o filósofo mais famoso, cujas teorias causaram uma grande modificação no cenário político mundial de todo o século vinte. O nome dele? Karl Marx! Marx desempenhou um papel importante como grande teórico do Direito, da Filosofia, da Sociologia, da História, da Economia e, para alguns, da Literatura. Vocês já ouviram falar de Marx, não é?
- Claro, respondeu uma senhora sentada ao fim da fila do meio. Ou o senhor acha que não assisto ao Fantástico no domingo à noite?
- Perdão. Marx no Fantástico? No domingo à noite?
A senhora gorda fez pouco caso, falando com desprezo e ironia.
- Claro! Pelo visto, o senhor não assiste nada! E ainda se diz professor! Pois, todos os domingos à noite, eu assisto ao Marx fazendo o trabalho de conciliação nos Tribunais de Justiça de São Paulo e do Rio de Janeiro. Por isso ele é tão importante para o Direito, a História e para a Sociologia, porque consegue fazer as pessoas se conciliarem...
Uma risada estourou. Um aluno de óculos de sol denunciou: a gorda confundia o filósofo Karl Marx com o apresentador do Fantástico Max Gehringer. A sala inteira caiu em gargalhadas. A aluna rechonchuda engolia a empáfia.
O professor de filosofia voltou a beber mais refrigerante, respirou fundo e discorreu sobre a vida do Nietzsche, filósofo que acrescentara uma maneira virulenta de filosofar na medida em que se tornou um iconoclasta e divergiu sobre as práticas e discursos no louvor cristão. Alguém ouvira falar de Nietzsche?
O silêncio e a troca de olhares cabisbaixos o levaram a pensar que a educação se encontrava numa situação muito difícil. Se, naquela faculdade de ponta, os alunos desconheciam Nietzsche, o que mais lhe faltava? Respirou fundo de novo, sentou-se um pouco e quando se arrependia de aceitar as aulas, um homem de botas empoeiradas, cinto marrom com grande fivela e camisa xadrez adentrou rasgando a sala e se desculpando pelo atraso.
- Boa tarde, disse o professor de filosofia. O senhor é aluno?
- Aluno? Sou professor. Disseram-me que a aula seria aqui, mas vejo que estou enganado, apesar de estar no prédio correto. De que o senhor dá aula?
- Filosofia, respondeu o professor.
- Quando me convidaram para lecionar aqui, me disseram que essa era uma das melhores faculdades do país, mas é a primeira vez na vida que vejo aula de filosofia em um curso de pós-graduação em veterinária.
- Veterinária? Indagou o filósofo, entre surpreso, aliviado e sorridente.
*Publicado originalmente na coluna Ficções, Caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 1 de outubro de 2010.
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