sábado, 18 de setembro de 2010

CARTÃO DE CRÉDITO

Atendo ao telefone por volta das sete e meia da manhã. Beberico uma xícara de chá e enfrento malabarismos para comer um pedaço de bolacha amanteigada. Do outro lado, uma mulher de voz cansada adverte que, “para minha segurança”, a conversa será gravada. Confirma nome completo, data e local de nascimento, número do RG e do CPF, endereço, caixa postal, CEP, nível de escolaridade, estado civil, bancos em que mantenho contas correntes e poupança, faixa salarial, número de cheques utilizados mensal e semanalmente, lojas em que compro e o que compro.



- As informações estão corretas, senhor?



Indago se é agente da receita federal, da polícia federal ou do poder judiciário. Obteve meus dados numa seleção de cadastros em um grupo de empresas. Antes que me aprofunde, retoma o diálogo:



- Meu nome é Fernanda. Sou representante do banco. O senhor não tem contas conosco, mas foi escolhido por meio do método anteriormente detalhado para participar de nossa promoção: um cartão de crédito com limite de três mil reais, pontos em todas as compras, taxa de administração mensal reduzida e sem a primeira anuidade. O senhor pode me confirmar mais alguns dados e o receberá necessitando apenas desbloqueá-lo através de um 0800. Então, por gentileza, gostaria que o senhor confirmasse...



- Fernanda, interrompo displicente, não sei como você sabe tanto de minha vida, mas gostaria de informar que não me interesso pelo cartão. Não uso cartão de crédito. Quando compro qualquer produto, pago em dinheiro ou em cheque. Estou satisfeito com esses métodos. De modo que...



- Mas, senhor, me interrompe bruscamente a telefonista, o senhor receberá o melhor cartão de crédito do país, que pode ser usado em mais de dezessete mil estabelecimentos, comprando desde pão até casas, dependendo do limite que, se o senhor acrescentar mais alguns dados, pode passar dos cinqüenta mil reais. Então, para que eu possa enviar o cartão de crédito de nosso banco com taxa de administração reduzida e sem a primeira anuidade, o senhor precisaria apenas fornecer...



- Fernanda, corto-lhe o discurso memorizado, agradeço sua atenção de me ligar cedo, entretanto reforço o que falei. Não quero e não preciso de um cartão de crédito...



- Mas, senhor, o cartão é aceito em mais de dezessete mil estabelecimentos, com taxa de administração reduzida e sem a primeira anuidade. E, se o senhor puder me fornecer o resto dos dados, posso ampliar a isenção de cobrança de taxa de anuidade por dois anos consecutivos e retirar a taxa de administração mensal pelos primeiros três meses. Para tanto, eu preciso apenas de alguns dados que ainda não tenho. Se o senhor puder me informá-los, eu...



- Fernanda, esse é mesmo seu nome? Não quero ser indelicado, contudo reforço o que disse. Faço minhas compras com dinheiro e, quando estou sem dinheiro, me arranjo com cheques. Portanto, eu não tenho interesse em adquirir, receber ou saber de nenhum cartão de crédito. Nem de seu banco, nem de nenhum outro, nem de financeiras, nem de casas lotéricas, nem de supermercados, lojas de roupa, postos de combustíveis. Eu não quero e, sendo assim, gostaria...



- Mas, senhor, volta a me interromper no momento em que criava uma desculpa para desligar o telefone, se o senhor não precisa do cartão de crédito agora, vai precisar num futuro próximo. Se me fornecer mais alguns dados posso lhe mandar um cartão com três anuidades de graça e sem taxa de administração por seis meses seguidos aumentando, neste momento, o seu limite de crédito para oito mil reais. Então se me informar...



- Eu não vou informar nada, digo exasperado. Não quero cartão e já disse isso, contudo você prefere ficar repetindo esse seu discurso para enrolar idiotas. Já disse! Eu não quero.



- Mas, senhor, o nosso cartão é recebido em mais...



- Não quero saber! Grito ao telefone.



- O senhor não precisa ser grosso.



- Não estou sendo grosso. Quero apenas que você me deixe em paz.



- Mas o nosso cartão...



- Pegue o seu cartão e o enfie...



- Mas senhor, interrompe a telefonista.



- ...na caixa postal do Cão. Por que você não vai azucrinar o Cão com reza?



- O senhor está sendo estúpido. Esta ligação está sendo gravada. Vou processá-lo.



Mando-a processar quando quiser. Desligo o telefone, sento-me à mesa, perco o apetite. Jogo o chá na pia. O telefone dispara novamente. Penso que pode ser meu irmão ou minha namorada. Digo alô. Antes que fale qualquer coisa:



- Mas, senhor, o nosso cartão é aceito...



*Publicado originalmente na coluna Ficções, do Caderno Tem, do Oeste Notícias (Presidente Prudente- SP) de 17 de setembro de 2010.

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