sábado, 25 de setembro de 2010

MATURIDADE PEDAGÓGICA

Na quinta, sexta e sábado da semana passada ocorreu, na Universidade Estadual Paulista (UNESP) em Assis (SP), o Festival da Palavra, organizado pela direção do campus e pelo conselho administrativo do Poiesis, tendo Antônio Lázaro de Almeida Prado como um dos homenageados.

Professores, estudantes, admiradores literários, ensaístas, críticos literários e escritores participaram do evento. Por motivos de agenda, presenciei apenas o desenrolar dos atos na sexta-feira de manhã quando o poeta Almeida Prado e dois especialistas em Literatura, Márcio e Suzana, compuseram uma mesa-redonda para discorrer sobre tensão e distensão na poesia.

Márcio abriu o encontro, seguido da voz fabulosa de Suzana e, por fim, da intervenção de Almeida Prado, poeta e professor emérito da universidade. Na fecunda explicação sobre poesia, Almeida Prado me surpreendeu em dois momentos. Primeiro, ao convocar os jovens para escrever poesia. De acordo com ele, temos essa capacidade de transmutá-la ao papel. Um alfaiate que faz uma roupa ou um arquiteto que concretiza um prédio são poetas na medida em que conseguem transpor elementos do mundo natural, psicológico ou espiritual para o mundo concreto.

Embora não tenhamos conversado sobre o tema, observo que, em um segundo momento, Almeida Prado e eu comungamos de uma teoria lingüística elementar e de uma ferramenta pedagógica sutil: a liberdade. Quando discorria sobre o processo de criação literária, enfatizava que os emissores são os únicos responsáveis pela mensagem eficiente que deve chegar aos receptores. Em outras palavras, o professor é o responsável pelo insucesso dos alunos se estes não entendem a matéria. O professor (emissor) deve se preocupar com uma explicação que facilite a vida dos alunos (receptores) no estudo de uma disciplina. Se atinge esse objetivo, sua explicação (mensagem eficiente) alcançou o que podemos chamar de finalidade didática.

Neste próximo mês de outubro, se as contas não me falham, Almeida Prado completa oitenta e cinco anos. Décadas voltadas à Literatura e à cultura de maneira geral: dádivas, persistências e teimosias, principalmente para quem pretende socializar a cultura, a Literatura e a vida no velho Oeste paulista. O avanço da idade do poeta é como o vinho: permite melhor degustação com o tempo.

Uma de minhas primeiras atividades numa sala de aula: transmitir aos alunos, em eufemismos compreensíveis, que as aulas de filosofia ou de sociologia são aulas de liberdade. De modo que, sem entrar nos méritos da obra de Bobbio, permanecer ou fugir é o primeiro passo. Primeiro passo do aluno que pode procurar atividades mais interessantes. Primeiro passo do professor que tem um esboço de resultado da ação pedagógica aplicada. Pelo menos sessenta por cento dos alunos comparecem às aulas, mesmo que eu esclareça que todos têm presença garantida. O fato de participarem de aproximadamente três horas de filosofia e de sociologia traduz que, se tudo correr bem, teremos profissionais adequados para lidar com os processos de aproximação ou de separação de grupos sociais e sensíveis ao questionamento temático universal.

Alguns professores acreditam que a caderneta de presença constitui a única arma para manter o aluno em sala. Prender o corpo e não controlar o espírito desemboca naquela história infantil de Rubem Alves. Não me lembro o título do livro, mas o cronista conta que um passarinho e uma menina se dão muito bem. De tempos em tempos o passarinho levanta vôo, fica uns dias fora e depois volta alimentando, como sugere o narrador, a saudade que torna a vida mais doce. Um dia a menina resolve engaiolar o passarinho que perde sua alegria de viver, sua vontade de sonhar e sua coragem de romper espaços.

Certamente não sou o mais preparado para tratar de métodos pedagógicos, mas Educação e Poesia estão visceralmente entrelaçadas e, aliando as observações de Almeida Prado à história infantil de Rubem Alves, concluímos que os alunos e os leitores são como pássaros: devemos deixar a gaiola aberta para que passeiem onde, como e onde queiram. Se voltarem à sala de aula ou à poesia, constataremos que a saudade, ingrediente dos grandes amores fraternos, denuncia nossa união de afinidades, de simpatias e de paixões.



*Publicado originalmente na coluna Ficções, no Caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 24 de setembro de 2010.

sábado, 18 de setembro de 2010

CARTÃO DE CRÉDITO

Atendo ao telefone por volta das sete e meia da manhã. Beberico uma xícara de chá e enfrento malabarismos para comer um pedaço de bolacha amanteigada. Do outro lado, uma mulher de voz cansada adverte que, “para minha segurança”, a conversa será gravada. Confirma nome completo, data e local de nascimento, número do RG e do CPF, endereço, caixa postal, CEP, nível de escolaridade, estado civil, bancos em que mantenho contas correntes e poupança, faixa salarial, número de cheques utilizados mensal e semanalmente, lojas em que compro e o que compro.



- As informações estão corretas, senhor?



Indago se é agente da receita federal, da polícia federal ou do poder judiciário. Obteve meus dados numa seleção de cadastros em um grupo de empresas. Antes que me aprofunde, retoma o diálogo:



- Meu nome é Fernanda. Sou representante do banco. O senhor não tem contas conosco, mas foi escolhido por meio do método anteriormente detalhado para participar de nossa promoção: um cartão de crédito com limite de três mil reais, pontos em todas as compras, taxa de administração mensal reduzida e sem a primeira anuidade. O senhor pode me confirmar mais alguns dados e o receberá necessitando apenas desbloqueá-lo através de um 0800. Então, por gentileza, gostaria que o senhor confirmasse...



- Fernanda, interrompo displicente, não sei como você sabe tanto de minha vida, mas gostaria de informar que não me interesso pelo cartão. Não uso cartão de crédito. Quando compro qualquer produto, pago em dinheiro ou em cheque. Estou satisfeito com esses métodos. De modo que...



- Mas, senhor, me interrompe bruscamente a telefonista, o senhor receberá o melhor cartão de crédito do país, que pode ser usado em mais de dezessete mil estabelecimentos, comprando desde pão até casas, dependendo do limite que, se o senhor acrescentar mais alguns dados, pode passar dos cinqüenta mil reais. Então, para que eu possa enviar o cartão de crédito de nosso banco com taxa de administração reduzida e sem a primeira anuidade, o senhor precisaria apenas fornecer...



- Fernanda, corto-lhe o discurso memorizado, agradeço sua atenção de me ligar cedo, entretanto reforço o que falei. Não quero e não preciso de um cartão de crédito...



- Mas, senhor, o cartão é aceito em mais de dezessete mil estabelecimentos, com taxa de administração reduzida e sem a primeira anuidade. E, se o senhor puder me fornecer o resto dos dados, posso ampliar a isenção de cobrança de taxa de anuidade por dois anos consecutivos e retirar a taxa de administração mensal pelos primeiros três meses. Para tanto, eu preciso apenas de alguns dados que ainda não tenho. Se o senhor puder me informá-los, eu...



- Fernanda, esse é mesmo seu nome? Não quero ser indelicado, contudo reforço o que disse. Faço minhas compras com dinheiro e, quando estou sem dinheiro, me arranjo com cheques. Portanto, eu não tenho interesse em adquirir, receber ou saber de nenhum cartão de crédito. Nem de seu banco, nem de nenhum outro, nem de financeiras, nem de casas lotéricas, nem de supermercados, lojas de roupa, postos de combustíveis. Eu não quero e, sendo assim, gostaria...



- Mas, senhor, volta a me interromper no momento em que criava uma desculpa para desligar o telefone, se o senhor não precisa do cartão de crédito agora, vai precisar num futuro próximo. Se me fornecer mais alguns dados posso lhe mandar um cartão com três anuidades de graça e sem taxa de administração por seis meses seguidos aumentando, neste momento, o seu limite de crédito para oito mil reais. Então se me informar...



- Eu não vou informar nada, digo exasperado. Não quero cartão e já disse isso, contudo você prefere ficar repetindo esse seu discurso para enrolar idiotas. Já disse! Eu não quero.



- Mas, senhor, o nosso cartão é recebido em mais...



- Não quero saber! Grito ao telefone.



- O senhor não precisa ser grosso.



- Não estou sendo grosso. Quero apenas que você me deixe em paz.



- Mas o nosso cartão...



- Pegue o seu cartão e o enfie...



- Mas senhor, interrompe a telefonista.



- ...na caixa postal do Cão. Por que você não vai azucrinar o Cão com reza?



- O senhor está sendo estúpido. Esta ligação está sendo gravada. Vou processá-lo.



Mando-a processar quando quiser. Desligo o telefone, sento-me à mesa, perco o apetite. Jogo o chá na pia. O telefone dispara novamente. Penso que pode ser meu irmão ou minha namorada. Digo alô. Antes que fale qualquer coisa:



- Mas, senhor, o nosso cartão é aceito...



*Publicado originalmente na coluna Ficções, do Caderno Tem, do Oeste Notícias (Presidente Prudente- SP) de 17 de setembro de 2010.

sábado, 11 de setembro de 2010

QUERO SER ROBERTO CARLOS

O menino terminou de almoçar arroz com alface – o décimo oitavo no mês – colocou a louça na pia, abriu as cortinas para economizar energia. Entrou no quarto para pegar o caderno. Talvez tivesse dúvidas sobre uma pergunta da professora. Quando voltou, a tia conversando com a mãe na cozinha.



- Oi, meu querido. Tudo bem com você? Você não sabe da maior. A tia comprou um cachorrinho. Tem três meses. Um amor. Ainda não tinha tido tempo de vir aqui para contar a novidade.



Uma foto na carteira: o animal, de pelos grossos, olhava para câmera como se soubesse que sua imagem fixa voaria pelos quatro cantos na bolsa da dona. A mãe fingiu procurar café para oferecer, porém voltou a se sentar puxando conversa sobre uma prima ou uma tia que viria a Presidente Prudente em dois meses.



- Mas é lindo, interrompeu a tia. Passei na loja de animais. Algo me chamava. Primeiro, comprei um peixe. O peixinho viveu dois anos. Depois, uma tartaruga. Você lembra, mana? Fiquei com ela quase uma década. Em seguida, ganhei um canário de presente. Numa noite que deu aqueles ventos que arrancou o telhado, o bichinho se foi. Hoje, quando passei em frente da loja de animais, eu vi o Roberto Carlos.



- Roberto Carlos? Indagou a irmã, entre surpresa e irônica.



- Nós o batizamos de Roberto Carlos, porque é um sucesso em todas as idades! Achei barato. A vendedora até me deu um desconto: Roberto Carlos custava oitocentos reais, mas me fez por setecentos e noventa.



A irmã pasmou diante da informação. Os olhos do menino vidrados na tia, popular Professora Filezinha, desconheciam os valores monetários.



- Tinha pegado o Roberto quando a vendedora me perguntou do enxoval. Mostrou os objetos que têm lá: caminha, redinha, almofadinha, colchãozinho, tapetinho, comedouro e bebedouro. Achei muito caro, mas como disse que me daria um jogo de garfo, faca, colher e xícara de chá para ele, passei o cartão em três vezes de cento e setenta reais. Já tinha colocado os acessórios no carro quando ela me perguntou se passearia com ele sem coleira. A cidade tem muito carro. Então me mostrou um armário com mais de mil coleiras. Como tinha gastado demais, comprei uma das mais baratas: oitenta reais.



A irmã disfarçava a admiração. Tentava conciliar a indignação e a revolta do dinheiro aplicado em Roberto Carlos e, por tabela, pensava em quebrar um por um os discos do cantor, guardados numa caixa velha dentro do guarda-roupa.



- Estava saindo quando, mais uma vez, retomou empolgada a tia, a vendedora perguntou quantas vezes jejuava ao mês. Achei a pergunta engraçada. Como ia embora sem levar o mais importante: ração? Quis a mais barata, porém depois que a vendedora me falou das necessidades de uma dieta rica em proteínas, fiz um esforço e comprei a melhor. Sabores de peixe, caviar, carne de boi, porquinho assado ou avestruz ao molho. Basta escolher e servir o prato do dia. Você acredita que algumas vezes ele fica com fastio e não chega perto da ração. Aí, fazer o quê? O jeito é assar meio quilo de filé ou de alcatra. Mesmo assim, ele deixa de lado...



A saliva do menino ameaçava discretamente estourar sobre o caderno, a mesa e a roupa, mas antes que a mãe notasse, a tia retomou o relato após um gole de água.



- Quando chego de noite é uma alegria só. Seu tio, apontou para o menino circunspecto, queria chamá-lo de Carlos Gardel, de Frank Sinatra, de Julio Iglesias e de Tony qualquer coisa. Só que preferi um nome brasileiro. Um nome de rei. E, como todo rei, além da caminha, da redinha e do tapete, mandei construir um banheiro privativo para ele. A mãe arregalou os olhos, perguntando o que ela queria dizer com construir um banheiro para cachorro. – Oras, disse a tia, eu mandei construir mais um banheiro para ele ter privacidade. Com vaso sanitário, bidê, banheira, chuveiro quente, hidromassagem e sauna.



A tia olhou o relógio, pegou a bolsa em cima da mesa, levantou-se, inclinou-se sobre a irmã, dois beijos:



- Tenho que ir. Vou levar o Roberto ao veterinário. Tudo é tão fácil nos dias de hoje, não é? Fiz um plano de saúde por duzentos e oitenta reais mensais. Já inclui banho e tosa semanais, passeio de carro pelo Parque do Povo, sessão de relaxamento, bronzeamento e condicionamento, raio X, exame de coração e, se necessário, operações de baixa periculosidade.



Quando a professora perguntou, o menino: - Quero ser Roberto Carlos!



*Publicado originalmente na coluna Ficções, Caderno Tem, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 10 de setembro de 2010.

sábado, 4 de setembro de 2010

EM POSIÇÃO!

Pelos menos dois gêneros – ou como queiram chamá-los – merecem atenção redobrada quando da criação literária: Literatura erótica e Literatura infantil ou infanto-juvenil. A Literatura erótica precisa se munir de cautelas para não descambar em relatos pornográficos de idêntica forma que as mesmas cautelas são necessárias aos que pretendem passear no mundo das crianças e dos adolescentes. O que queremos – todos nós leitores, independentemente da idade – são narrativas bem estruturadas, enredos interessantes e personagens bem construídos.



As lições de moral podem constar sutilmente das mensagens das obras sem, no entanto, transformá-las em manuais de bons costumes. Quando consegue compreender esse elemento primordial da Literatura infantil ou adolescente, o escritor atinge a fantasia e tem grandes possibilidades de conquistar o leitor, como acontece a David Grossman em “Duelo”.



Um homem de vinte e oito anos conclui que é hora de transpor ao papel as aventuras pelas quais passou aos doze anos de idade quando, participando de um projeto da escola que previa a visita semanal a um hóspede de asilo, firmou amizade com um idoso. O narrador, que relata os fatos em primeira pessoa, conferindo tom confessional que aumenta a intensidade da trama e reforça os elementos de verossimilhança, é um menino solitário que descobre nessa amizade uma maneira de se ambientar e de se socializar. A mãe reprova-lhe o comportamento, desejando que mantivesse relações com adolescentes de sua idade e largasse os livros para brincar, se divertir, passear.



Talvez o comportamento silencioso, observador e solitário amadureça a compreensão do conjunto dos fatos que o envolvem de tal maneira que Heirinch Rosenthal, o amigo idoso, hóspede do asilo, de mais ou menos setenta anos e baixinho, compartilha as angústias causadas por uma carta recebida ainda naquele dia: Rudy Schwartz – o valentão da faculdade de medicina, calçava quarenta e sete, levara o campeonato de tiro ao alvo, levantava a enciclopédia de medicina de doze volumes com apenas uma mão e quebrara os dentes de cinco alunos alemães – apareceria às sete horas da noite para ajustar as contas.



O Sr. Rosenthal enche-se de coragem, mas o narrador, escondido embaixo da cama do idoso, percebe as finas pernas tremerem durante todo o tempo e já espera o pior. Seu coração dispara de medo quando tem conhecimento do conteúdo da carta. Entre outras ameaças, o valentão da faculdade de medicina insulta o Sr. Rosenthal de ladrão miserável e sem-vergonha.



O tom confessional, já mencionado, o ritmo narrativo, os fatos que se sucedem interrompidos inteligentemente por espasmos mnemônicos ou psicológicos, as angústias estampadas nos espíritos dos ameaçados e a impressão de fim inevitável projetada na provável briga pela “boca dela” fortalecem a maestria de David Grossman por, entre outros fatores, transmitir reflexões maduras e acertadas por meio do narrador de doze anos que discorre sobre o isolamento provocado pelas características essenciais de distanciamento entre grupos sociais:



“Sei que existem meninos que não gostam de gente velha; que dizem que os velhos às vezes têm cheiro ruim e cara cheia de rugas ou que irritam a gente porque são muito lerdos para fazer as coisas. Só vou dizer uma coisa sobre isso: existem muitos velhos largados e desleixados, mas é só porque foram largados pelas outras pessoas. Eles não têm ninguém que os ame ou cuide deles. E isso é muito simples, é como uma regra básica de gramática: se você larga uma pessoa, ela fica largada. E pronto. Não fui eu que inventei essas coisas. Ouvi isso várias vezes dos velhos no asilo, sentado conversando com eles enquanto esperava o senhor Rosenthal. Muitos deles tinham famílias e amigos e colegas de trabalho, mas no instante em que entraram no asilo, parece que todo mundo esqueceu deles. Havia uns velhos que não recebiam mais visita nem dos filhos”. (p. 11-12)



O fragmento acima demonstra a maturidade e a beleza com que David Grossman universaliza os conflitos entre crianças, adolescentes, adultos e velhos demonstrando, de maneira sensata e sem afetação, as reflexões que precisamos – adultos ou crianças – desenvolver diariamente. Sem dúvida, o melhor livro infanto-juvenil dos últimos anos.





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Duelo
David Grossman – Companhia das Letras – 136 p. – R$ 32,00


*Publicado originalmente na coluna Ficções, Caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente - SP) de 3 de setembro de 2010.