O professor jogou a bolsa no banco ao lado, retirou a calculadora, ajeitou os óculos, puxou uma caneta especial – presente da namorada que viajara à capital do Peru – cruzou as pernas e se meteu a corrigir, verificar e homologar os resultados das contas dos alunos do curso de economia.
Ao fundo, algumas mulheres discutiam os preços dos alimentos. Uma delas interrompia vez por outra a conversa coletiva para falar de um cruzeiro de três noites pelas ilhas do Rio de Janeiro, mas ninguém se interessava. Quando a conversa voltava à empolgação, a mulher do cruzeiro interrompia novamente, falando de detalhes anódinos. Viajara numa dessas promoções em que farofeiros tiram mil fotos para, enchendo a paciência dos interlocutores, tecer supostos comentários especializados.
O motorista do ônibus sintonizara numa rádio AM que executava músicas românticas ou instrumentadas. O vento entrava pela única janela aberta. O professor continuaria corrigindo as contas dos alunos, guardaria o material antes de despontar na primeira parada e, em frente ao posto de combustíveis, desceria tranquilamente.
Sentiu uns repuxos na perna esquerda. Coçou a perna sobre a calça. Os repuxos manifestaram-se dali a pouco. Ele coçava, os repuxos paravam. Coçou até que o suor apareceu nas costas da camisa e na testa. Os repuxos pararam de vez. O vento esfriou o suor. Pensou no que o filho dissera na véspera: - Um sedentário, quando faz os primeiros exercícios, sofre modificações no corpo, sentindo com mais freqüência o sangue correr nas veias.
- Só pode ser isso, disse baixinho, guardando a calculadora e as provas. Já se desconcentrara. Mexera-se tanto no escuro que as passageiras ao fundo deixaram de lado as especulações em torno dos alimentos para elogiarem o bumbum empinado e as pernas grossas. O cavanhaque recebeu moções de aplauso das mais novas.
Um delas disse que adoraria vê-lo apenas de cuecas. Se fizesse um streap, disse a casada há seis anos, que já não via graça no marido, a noite seria perfeita, principalmente se... A casada há seis anos interrompeu o discurso, prontamente retomado pela farofeira que viajara em excursão no cruzeiro pelas ilhas do Rio de Janeiro. O professor levantou-se aos pulos, saltou no meio do corredor, passou a mão na perna esquerda, depois na direta, arrebentou os botões da camisa e revirou os olhos.
- Meu Deus do céu, gritou uma das mulheres. O motorista acendeu a luz interna para verificar o motivo do grito e deu de cara com o professor, passageiro antigo da linha e assíduo no horário, que já se livrava da camisa, ora colocando a perna direita em cima de um banco e se alisando furiosamente, ora chutando a perna esquerda nos braços das poltronas, ora roçando as costas de maneira chocante no balaústre, ora ameaçando se jogar no chão.
A euforia das passageiras se intensificou quando, acabando Bee Gees, a música ecoou pelas caixas de som embutidas. Os primeiros acordes fortes, violentos e impetuosos denunciavam a voz estridente que os acompanhariam em “I’ll survive”.
Os versos da letra e os olhos elétricos de uma professora, também sentada ao fundo, impressionaram ainda mais o motorista:
- Ai, meu Deus!
O professor arrancou o cinto, jogando-o sobre um casal incrédulo. Tirou a bota direta, se livrou da esquerda, desfez-se das meias, tentava abrir o botão da calça que, no nervosismo, insistia em ficar preso e para o qual duas candidatas já se apresentavam. Outra professora, sentindo um calor incontrolável, disse que desmaiaria.
O motorista parou o ônibus no posto da polícia rodoviária e ameaçou: ou se vestia, ou desceria direto para a cadeia. O professor não pensou duas vezes. Com a ajuda de uma mulher que rasgara o botão com um estilete, jogou as calças pelos ares, pulou no banco de trás. O fim da música coincidiu com os gritos eufóricos e satisfeitos das espectadoras que, minutos depois, berravam histericamente, soltando-se de saias, vestidos, calças, camisetas, blusas. No desespero, uma das passageiras caiu no corredor. Duas mulheres tentaram levantá-la, mas a balbúrdia, o empurra-empurra, os gritos, os tabefes, os socos, os chutes e as pernadas as impediam.
Prestando esclarecimentos ao policial de plantão, o motorista incrédulo não imaginava como as centenas de formigas quase carnívoras entraram no ônibus.
*Publicado originalmente na coluna Ficções, Caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 23 de julho de 2010.
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