quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

MOACYR SCLIAR: MATURIDADE, PLENITUDE E COSMOPOLITISMO LITERÁRIOS

Você já imaginou o quanto é difícil, complicado, complexo e extenuante escrever um livro? Inventar um enredo, criar personagens, escolher ambiente e período em que a história se passa, por qual ponto de observação (foco narrativo) optará? Quantas vezes terá de revisar capítulos, eliminar parágrafos e estruturar frases ainda correndo o risco de ter de fazer tudo de novo ou de alguns pontos exaustivamente corrigidos saírem errados?


Se um só livro nos traz um trabalho imenso, imagine escrever cerca de noventa preocupando-se ao mesmo tempo com colaborações em dois dos maiores jornais brasileiros, revistas semanais e especializadas, palestras, cursos no exterior, tradução de suas obras em outros continentes? Essa é a vida agitada de um dos maiores – senão o maior – escritores brasileiros dos últimos cinqüenta anos: Moacyr Scliar.


Membro de uma família de imigrantes judeus instalados em Porto Alegre, Scliar comenta em algumas crônicas a influência da mãe que, mesmo sabendo do orçamento deficitário, não lhe deixava faltar livros. O adolescente freqüentador da feira do livro da capital gaúcha voltaria anos mais tarde ao evento na condição de um dos mais importantes escritores brasileiros contemporâneos.


O início da carreira se deu de maneira pouco pacífica. Embora escrevesse, como ele mesmo gosta de frisar, em papéis, guardanapos, folhas coloridas ou qualquer outro suporte que lhe caísse nas mãos, em qualquer lugar e em qualquer momento, o primeiro trabalho foi mal recebido pelos parentes e amigos que o leram e o criticaram duramente.


Diferentemente de muitos pretensos artistas (escritores, compositores, escultores, pintores etc) que desistem diante das primeiras críticas e se acomodam ante a possibilidade de trabalhos extenuantes que os levarão a gastar mais do que podem ou a se privar de situações rotineiras efemeramente prazerosas, o escritor gaúcho não desistiu e, quatro anos depois da estréia, encetou nova e exitosa tentativa.


Daí em diante, enveredou pelos ensaios, passeou pelos romances, deliciou-se em novelas, brincou nos contos, vivenciou a crônica, ganhou prêmios nacionais e internacionais (participando também de júris mundo afora), lecionou os meandros e as peculiaridades da arte da escrita para profissionais estrangeiros, elegeu-se membro da Academia Brasileira de Letras e, numa militância claramente literária, ajudou a fundar a Associação Gaúcha de Escritores na década de 1980.


Em uma de suas centenas de entrevistas, Scliar nos relata que – assim como Antônio Candido e Nelson Rodrigues – a colaboração em jornais o ajudou a aperfeiçoar a escrita na medida em que prazo e tamanho de textos amadureciam seu estilo. Estilo que o acompanha em grande parte de seus romances e novelas, caminhando tranquilamente entre seus livros de ensaios, entre os quais destacamos “Enigmas da culpa”.


Embora os estudiosos de sua extensa produção literária apontem as reinvenções e as reinterpretações das relações judaicas em enredos ou em alguns personagens, discordaria quase integralmente ao vislumbrá-la como uma leitura subjetiva do fato social que é a religião. Em “O exército de um homem só”, “Os deuses de Raquel”, “Max e os felinos” ou em “Os voluntários”, a busca pela salvação ou pela remissão de ações e de pecados são situações encontradas em todas as religiões cujos seguidores se julgam culpados diante da infração de normas. Assim é o cristianismo – e suas doutrinas heterodoxas – que, na concepção de Nietzsche, se deixou transformar numa religião de ódio, terror e medo.


O realce empreendido por Scliar repousa na capacidade de contar uma boa história que prende a atenção de seus leitores. Uma de suas qualidades: o ritmo que o romancista emprega em sua narrativa. Se, como supõe o ensaísta mexicano Carlos Fuentes, a Literatura se compõe de Linguagem e Imaginação, Scliar consegue reunir as duas características de maneira amadurecida e arrojada na medida em que, contando, inventando ou se inspirando em passagens ou extensos fragmentos bíblicos, consegue prender nossa atenção em uma história que dificilmente conseguiríamos contextualizar, como em alguns dos contos e crônicas de “Histórias para (quase) todos os gostos”.


Tamanha a maturidade exalada da pena do escritor gaúcho que lemos um romance com a mesma facilidade que passamos os olhos em suas crônicas publicadas semanalmente na “Folha de São Paulo” ou seus artigos bi-semanais no “Zero Hora” (Porto Alegre – RS). A linguagem límpida e corrente da crônica aplicada ao romance não redundaria em superficialidade? De nenhuma maneira. A profundidade não está na simplicidade de seu texto, mas no tratamento e na exteriorização de suas idéias. Nesse item, Scliar consegue gozar de plenitude, maturidade e cosmopolitismo invejáveis.

*Publicado originalmente na Série Especial Dez Escritores Contemporâneos do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 31 de dezembro de 2009.

DESPEDIDA

Olá, eventuais leitores de “Literatura”.


Encontramo-nos semanalmente nos últimos trinta e quatro meses, sendo vinte e seis deles nesta coluna em que escrevi – ou tentei escrever – contos, crônicas e críticas literárias, colaborando eventualmente na segunda página com artigos políticos, sociais, econômicos e culturais.


Durante esses dois anos e dois meses, recebi pouco mais de cento e oitenta mensagens eletrônicas de leitores que concordavam, discordavam, se perdiam em reflexões inconsistentes ou se armavam de argumentos bem estruturados.


Fui abordado nas ruas, restaurantes, livrarias e universidades por leitores assíduos de Palmital, Assis, Maracaí, Paraguaçu Paulista e Tarumã cujos contatos contribuíram para o amadurecimento diário e o aperfeiçoamento contínuo que culminaram na conquista de seis prêmios literários nas categorias contos e crônicas em concursos de São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul.


Grande parte desse sucesso decorre da escrita semanal em jornal que, nas palavras do acadêmico e imortal Moacyr Scliar, estimula a disciplina, baseando-se no tamanho do texto e no prazo de entrega. Pela criação da coluna e pelo convite para escrevê-la, agradeço a Carolina Marquezini, diretora de redação.


Se a vida constitui-se de etapas e se Sêneca estava correto ao despertar os amigos para suas peculiaridades, meu ciclo de colaborações no Jornal de Assis se encerra para que tantos outros comecem e, em seus tempos, igualmente findem.


Fico absolutamente grato aos leitores anônimos ou identificados que me acompanharam regular ou eventualmente, a Carolina Marquezini e a toda a equipe do Jornal de Assis, aos amigos que fiz por meio da imprensa assisense, entre eles o filósofo Marcio Alexandre da Silva e o grande poeta brasileiro Antônio Lázaro de Almeida Prado, aos escritores com quem mantive contato e às editoras que confiaram – nem sempre gostando do que liam – em nosso trabalho.


Aproveito para desejar boa sorte ao novo titular da coluna ou das colunas que vierem a sucedê-la, exprimindo sinceros votos de que a Literatura e a Arte sejam semanalmente brindadas com crônicas, contos e críticas literárias, sempre que possível estabelecendo relações na grande área de ciências humanas, destacadamente a teoria Literária, a historiografia, a sociologia, a filosofia e a antropologia.


Assim como os demais, o ano que se aproxima nos traz surpresas. Elas são indispensáveis para nos apresentar caminhos de evolução. Meus caminhos de evolução foram – e continuam sendo – possíveis graças a estrutura familiar que tenho. Gostaria sinceramente que, no próximo ano, cada um de vocês tivesse a sorte e o privilégio de ter uma grande família.


Sempre que lembro, agradeço pelos pais que tenho: o psicólogo José Antônio da Silva e a pediatra Veralúcia Regis do Nascimento Silva. Jamais seria nada sem eles assim como jamais seria nada sem minhas avós Laura (em memória) e Isaura e, muito menos, sem meus irmãos Regis e Jovian. Até meu irmão Jovian - que não gosta muito ler - inicia seus entreveros de escrita.


Agradeço especialmente às minhas “filhasdrastas” Emily e Natália por fazerem da infância uma maneira de escapar de minha rabugice e a Adriana, pela paciência, pela dedicação e pela solicitude que brotam da prática diária do amor erótico e, predominantemente, fraterno.


Aos que nos acompanharam durante todo esse tempo, meus agradecimentos e votos de um fabuloso 2010.

*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 31 de dezembro de 2009.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

PRESENTE DE NATAL

Ao lado do posto de saúde uma árvore de tronco grosso, galhos enormes e folhas frondosas proporciona uma sombra convidativa embaixo da qual estaciono, abro a porta do carona, sintonizo na Tribuna Soft FM ou introduzo um disco de ópera ou de música clássica ou de Sinatra ou de Altemar Dutra, armo minha cadeira de praia e escolho um dos quatro ou cinco livros que geralmente me acompanham. Alio a leitura literária à paisagem do Parque Ecológico João Domingos Coelho.


Vislumbrei um casal senil na extremidade oposta do quarteirão quando manobrava para estacionar numa dessas tardes. Ele disparou para a esquina em que eu parava. Ela caminhava com dificuldades, mão e pé esquerdos rijos. Revoltei-me pelo comportamento do marido, abandonando a esposa com dificuldades de locomoção. Ele distanciava-se rapidamente e, quando deduzi que viraria a esquina e desapareceria, se escondeu.


Na medida em que se aproximava, o marido, ouvidos atentos, circundava o tronco. Antes de alcançar a esquina, olhou para os lados, parou e o esperou sair de trás da árvore portando um rosa. Uma rosa que não estava em sua mão. Uma rosa que não estava plantada ali.


Abraçaram-se. Como atores que encenam uma mesma peça centenas de vezes sem perder a paixão da estréia, do primeiro contato com o palco, do primeiro enfrentamento com a platéia, da reticência da recepção imediata, ambos saíram sorrindo.


Baixei as faces sobre o volante. Chorei. Talvez pela sorte de testemunhar o mais fantástico espetáculo de supremacia estética. Certamente pela felicidade de, naquele instante moderno e indiferente, transportar-me para um passado de afabilidade transcendental.

sábado, 19 de dezembro de 2009

DALTON TREVISAN: O MAIOR CONTISTA DO SÉCULO XX

Recebi uma mensagem eletrônica de uma leitora perguntando da necessidade de títulos grandiloqüentes para os trabalhos dos escritores. Referia-se particularmente aos artigos sobre Cyro dos Anjos e Antônio Lázaro de Almeida Prado e as concepções distintas – muitas vezes antagônicas – de seus lugares no campo literário brasileiro.

A leitora está correta. A indiferença ou objetividade é bem aceita no meio acadêmico. Porém, a objetividade e a indiferença se afastam do calor e do frenesi provocados pela paixão. Minha concepção de crítico literário, de leitor e de apaixonado me conduzem pelos caminhos da grandiloqüência. Provavelmente na esperança de jogar os germens da paixão nos trajetos de outras pessoas, como parece ter sido com a leitora em questão, a quem agradeço a mensagem e com quem compartilho outras paixões literárias, entre elas Dalton Trevisan.

Embora considerado – nos mesmos moldes de Nelson Rodrigues – um autor pornográfico e erótico, Dalton Trevisan se erige ao patamar de maior contista do século XX. Capaz de delinear os comportamentos do cotidiano urbano usando linguagem prosaica altamente poética, o escritor paranaense fez do conto a ferramenta literária capaz de transmitir desejo, excitação e angústia.

Alguns estudiosos valem-se do minimalismo para descrever sua qualidade maior. O minimalismo – que significa usar o mínimo de palavras, de frases, de parágrafos ou de capítulos – é um fator importante no estilo do contista paranaense, mas reduzir seu talento à essa explicação limitada e abandonar a segundo plano sua originalidade na reinvenção semântica e sintática são absurdos.

Quando nos debruçamos sobre a obra ou descompromissadamente passamos os olhos por algum conto, as dúvidas sobre a economia frasal são respondidas pelos eflúvios de alta densidade poética (absolutamente) difíceis de imitar. Apenas escrever telegraficamente não representa a capacidade de criação.

O segundo ponto em nossa observação se mantém nos cenários urbanos em que os personagens transitam entre o retrato diário e os desejos abafados. O abuso de uma jovem por um grupo de homens, os estupros, as delícias da infidelidade ou a aceitação dos encontros fortuitos da esposa com amantes diversos são retratos da Curitiba que representa os percalços não apenas no Brasil. Daí que, nesse item, os contos de Dalton Trevisan são verossímeis (porque encontram guarida na realidade) e universais (acontecem em qualquer lugar e em qualquer tempo).

Assinalar o conto de Dalton Trevisan como pornográfico ou erótico também se afasta da realidade. Contos pornográficos se distanciam dos subentendidos inerentes à Literatura e, na maioria das vezes, são tracejados pela repetição sem criatividade e sem o tratamento artístico da linguagem. Eróticos são os que permitem regozijo em pensamentos e excitação pragmática, conquanto não descrevam integralmente as cenas de desejos.

Grande parte dos contos de Dalton Trevisan não se enquadra nem na corrente pornográfica nem na erótica, optando pelo simples retrato de figuras cotidianas urbanas: a ninfomaníaca, o homem que sofre de priapismo, a jovem que se entrega aos desejos do velho ou a professora madura em busca da sujeição do aluno.

A manifestação do cotidiano se evidencia pela superação de conflitos. O homem traído muda-se continuamente e continuamente aceita a gravidez da esposa que leva os amantes para casa e, entre as roupas do marido expostas no varal, estende cuecas pertencentes a outros homens. Idêntica superação de conflito mostra-se na retomada do caminho da jovem abusada por um grupo ou pelos transeuntes, ignorando a condição humana, deixam um homem morrer enquanto seus objetos são roubados lentamente.

O estilo e a linguagem de Dalton Trevisan ainda são invejáveis por dois motivos que o acompanham desde sua estréia em 1948 com o famigerado “O vampiro de Curitiba”: a estabilidade e a maturidade. Decorridos mais de sessenta anos de ofício da escrita, Dalton Trevisan mantém um estilo estável que o consagrou em gerações de leitores. Enquanto verificamos pulos, controvérsias, incoerências, imperfeições e contraposições em outros escritores, Trevisan exibe-se numa maturidade inacreditável, como se antes de tudo a poesia se infiltrasse em seus enredos curtos.

Apenas por esses motivos, Dalton Trevisan é, sem sombra de dúvida e sem medo de errar, o maior contista brasileiro do século XX, ainda em plena e invejável atividade no XXI. Sua obra, também lançada em edição de bolso a preços acessíveis, pode ser encontrada nas boas livrarias. Não indico um livro específico – porque a obra estável e madura nos permite ler qualquer conto –, mas sugiro aos aspirantes a escritores e aos leitores em atividade que procurem conhecer esse grande mestre da literatura como maneira de entender a genialidade brasileira.

*Publicado originalmente na Série Dez Escritores Contemporâneos do Oeste Notícias (Presidente Prudente - SP) de 18 de dezembro de 2009.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

MULHERES DO CALENDÁRIO

Sinceramente confesso minha incapacidade de escrever uma crônica, um conto ou um romance sobre essas mulheres inigualáveis, porém tranquilamente sugeriria aos fotógrafos, aos artistas plásticos, aos designers e aos amantes da arte da imagem uma mistura de perenidade e popularidade: um calendário. Que tal um calendário de mulheres de quarenta anos? Arriscaria batizá-lo “Balzaquianas contemporâneas”.


Janeiro começaria com a Penélope Charmosa de Maringá em vestido transparente pela principal e mais famosa Avenida da Cidade Canção: a Colombo festejaria o sorriso discreto e os motoristas buzinariam em cortejo festivo.


O calor e as festas carnavalescas se concretizariam no sorriso e no gingado deslumbrante da atriz Carla Marins, caminhando em Florianópolis, biquíni branco, chapéu de palha. Toque de classe e bom gosto.


O calendário não teria importância sem a jornalista Ana Paula Padrão. A ela seria destinado o mês de março. Short branco, camiseta azul, cabelos soltos, maquiagem leve e sandálias coloridas imprimiriam a leveza das faces joviais ao corpo de mulher cosmopolita. Deslizaria pelo Parque do Povo em Presidente Prudente (SP) e, ao fundo da imagem, a insinuação de dados econômicos.


Que tal um fim de semana de abril em Petrópolis? Uma quarentona genial e naturalmente bela desfilaria pelas ruas da cidade imperial, esbanjando sutileza e carisma: Sandra Bullock.


Os ventos de maio seriam brindados nos trejeitos e no casaco – menos com finalidade prática do que estética – delicadamente disposto sobre os ombros jubilosos de Helena Ranaldi, cujos cabelos pretos – e preferencialmente após os ombros – seriam presos por uma arco discreto de brilhantes.


Junho exigiria a delicadeza e sugeriria o sorriso de uma linda mulher. Sugestões? Julia Roberts ouvindo Ravel ou Chopin no rompimento do crepúsculo nas areias de Lucena (PB). O espetáculo da metamorfose das cores no horizonte ensejaria alguns suspiros de angústia e do medo natural das aventuras efêmeras.


As noites de Julho nos impelem a ficar agarradinhos na chuva, na fazenda ou numa casinha de sapê. Paula Toller desfilaria em um jogo de luz e sombra nas fachadas da Quinta da Boa Vista.


Agosto constitui-se na mistura do gelo que teima em ficar e do calor que insiste em arrombar a porta da primavera. A voz esplêndida de Drica Moraes poderia vir de brinde. Vez por outra teríamos o privilégio de apertar um botão e ouvir declamações de poesias de Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Pessoa, Cecília Meireles, Affonso Romano de Sant’Anna ou Antônio Lázaro de Almeida Prado.


Se Setembro indiscutivelmente traz os benefícios das melodias dos pássaros reunidas aos desejos intransponíveis das árvores de passearem nas redondezas e estabelecerem novas amizades, Maria Padilha desfilaria em alguns trechos floridos do Parque João Domingos Coelho em Assis, óculos escuros ameaçando despencar dos cabelos.


Nada possuo contra mulheres na política. De modo que Outubro estamparia a sacada da Casa Rosada e, envolvida na faixa presidencial argentina, Cristina Kirchner posaria numa mistura invejável de beleza e autoritarismo.


Ainda na política, talvez convidássemos a monarca da Jordânia para figurar em novembro. A rainha Rânia desprenderia as maçãs e destacaria os olhos harmônicos e multicoloridos em uma foto fechada sobre eles.


Dezembro, espaço em branco. Os compradores do calendário elegeriam a mulher balzaquiana contemporânea que mais lhes despertasse interesses. De maneira fugidia, discreta, secreta, acanhada ou angustiante, roubariam uma foto empunhando a câmera fotográfica atrás de uma árvore, na fila do supermercado ou entre a entrada e saída de veículos em um estacionamento qualquer.


As meninas, as adolescentes e as jovens me desculpem, mas maturidade é fundamental. Se eventualmente o calendário das “Balzaquianas contemporâneas” saísse, eu compraria uns trinta ou quarenta para espalhá-los nos locais que geralmente freqüento, sempre dando um jeito de grampear as folhas a fim de que março se eternizasse todos os dias, todos os meses, todos os anos.


*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 17 de dezembro de 2009.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

ALMEIDA PRADO: MAGNIFICÊNCIA POÉTICA

Confesso a facilidade de criticar romances, novelas, contos, crônicas, teatro (restringindo-me apenas ao texto), ensaios. Também confesso que, embora existam centenas de livros teóricos e pragmáticos lecionando as técnicas de análise de poemas, leio poesia menos com uma função mecânica do que com um desejo passional, emotivo, sentimental, espiritual e inexplicável. Poesia é como a paixão: bateu, valeu. Não tem explicação. Você já viu alguém apaixonando explicando o amor de maneira racional?

Por essa razão, desconheço os motivos que desde sempre me levaram à paixão por Manuel Bandeira e Augusto dos Anjos e, mais recentemente, Carlos Drummond de Andrade e Antônio Lázaro de Almeida Prado.

Mais ou menos um metro e sessenta de altura, óculos graves cravados em faces morenas sobre as quais cabelos puxados para trás aliam-se à voz firme e erudita de professor universitário. Doutor e Livre Docente em língua e Literatura italianas pela Universidade de São Paulo (USP), Almeida Prado abandonou a capital paulista e cidades de grande porte para se instalar em Assis, batizada por ele Cidade Fraternal, na qual ajudou a fundar e consolidar o campus da Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho e de onde saíram brilhantes nomes de nossa Literatura, entre eles, além de Almeida Prado, os críticos literários Antônio Cândido e Antônio Soares Amora.

Embora a geração acadêmica atual ganhe prêmios e reconhecimento – destacando-se Luiz Antônio de Assis Brasil, Deonísio da Silva, Cristovão Tezza e Milton Hatoum –, Almeida Prado pertence à época em que teoria e prática literárias apresentavam-se dissociadas ao grande público, daí que conhecemos poucos bons detentores das teorias e metodologias que conseguiram elaborar obras criativas, inteligentes, inteligíveis e interessantes como temos visto recentemente.

Rompendo o estigma da inaplicabilidade de teorias à prática criativa, Almeida Prado passeou pelos campos da crítica, da análise e da criação literárias, dos ensaios, da compreensão historiográfica.

Dedicou-se, como ainda vem se dedicando, à crítica literária em revistas e jornais gerais e especializados, elegendo a honestidade intelectual e a franqueza teórica como norteadores de seu trabalho. Como analista literário, produziu dezenas de artigos científicos e participou de congressos, seminários, simpósios, mesas-redondas e bancas de mestrado e doutorado.

Publicou livros de ensaios nas décadas de 1960/1970 que tratavam da obra de literatos italianos: Salvatore Quasímodo e Cesare Pavese. Versado em línguas, traduziu filósofos e intelectuais, entre eles Giambattista Vico e Giuseppe Ungaretti.

Percorrendo os difíceis, cáusticos e desafiadores percursos da história, a quatro mãos com Maria Silvia Moreli escreveu “Assis – passado, presente e futuro”, livro com rico e diversificado acervo iconográfico que detalha a trajetória da cidade fundada pelo capitão Assis e internacionalmente reconhecida pelo campus da Universidade Estadual Paulista.

Apesar do amplo trabalho acadêmico e teórico desenvolvido em mais de cinco décadas, Almeida Prado realça sua habilidade literária na criação, manifestada harmoniosa e maduramente nas poesias.

Por ocasião das comemorações dos cem anos de Assis (SP), arregimentou sua produção artística em “Ciclo das chamas” (Ateliê Editorial, 2005) e, anos mais tarde, nos versos de “Lúcido Sonho” (Olavo Brás, 2008), em que grande parte dos títulos poderia facilmente ser reunida numa temática particular: o amor pela esposa Themis.

Os grandes escritores buscam a forma perfeita, a frase única, o verso singular e contundente. A bibliografia de Carlos Drummond de Andrade seria anódina sem “Anúncio classificado”. Manuel Bandeira pouco se destacaria sem “Poemeto erótico”. Augusto dos Anjos se distanciaria do ápice caso não tivesse concebido “Versos íntimos” e “Psicologia de um vencido”. E Almeida Prado?

Almeida Prado conquista e mantém um lugar privilegiado na poesia brasileira não apenas por sua densidade poética exalada em todo o seu trabalho, mas principalmente na elaboração de um poema. Se pudesse escolher um poema que pudesse demonstrar toda sua magnitude, “Desafio orquestral” indubitavelmente seria eleita a poesia cujos últimos versos ressoam oniricamente: “Que eu faço versos/ mas sem espinhos,/ com partituras/ pros passarinhos...”

O leitor desatento e pouco poético se perguntará o que tem de tão especial nesses versos. O primeiro ponto reside na distinção entre a poesia como instrumento inerente à humanização e a árdua lembrança de épicos intermináveis. O segundo ponto, o ponto mais brilhante, fica por conta da criação de partituras. Partituras não para compositores, amantes da música ou instrumentistas. Partituras para passarinhos correrem os olhos e traçarem a harmonia e a melodia de seu canto. Desde quando passarinhos precisam de partituras? Desde quando a poesia se banhou de tanta beleza em tão poucos versos?

*Publicado originalmente na Série Especial Dez Escritores Contemporâneos do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 11 de dezembro de 2009.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

MEMÓRIAS

Ao professor Wilson Rodrigues, Promotor de Justiça emérito de Paraguaçu Paulista e brilhante civilista brasileiro


Um argentino de roupas floridas conversava com o neto quando perguntou: - Como construíram uma estátua tão grande num lugar tão alto?


O avô e eu nos viramos. O Cristo sorria discretamente do Corcovado. Na sabedoria que só os avós transmitem aos netos em momentos de beleza, respondeu:


- Com um carretel. Com um carretel de linha de costura, para ser mais preciso.


Quis rir, mas me contive para não quebrar a mágica da explicação. Um Cristo daquele tamanho construído com um carretel?


- Um homem subiu até a ponta do morro. Quando chegou lá em cima, puxou uma linha de costura, desenrolada de um carretel. Com a linha puxou uma corda. Com uma corda puxou uma caixa de pregos, alguns pedaços de madeira, um martelo e uma pequena picareta. Com a picareta abriu um buraco na rocha, colocou um pedaço de madeira, pregou outros pedaços de madeira e amarrou algumas cordas por meio das quais outros homens subiram. Muitas cordas e muitos homens: cimento, ferros, areia, tijolos, tinta, mármore, diversos instrumentos de construção. Com uma simples linha, construíram algo tão grandioso.


Aquela passagem fincou-se em minha memória. Anos depois levei minhas duas filhas às praias de Santa Catarina. Caminhávamos pelo calçadão em Camboriú, quando uma delas me perguntou por que o mar era salgado.


Poderia explicar cientificamente que o impacto permanente do mar contra as rochas desprendia uma quantidade de fluidos que salgavam as águas. Entretanto, lembrando-me do avô argentino, pensei em transformar a pergunta numa ocasião especial.


- Vocês já leram aquela parte da bíblia que fala que Deus fez o mundo em sete dias?


Ambas balançaram afirmativamente a cabeça.


- Vocês lembram que em um dia Deus fez a terra? No outro, as águas? No outro, os animais?


Confirmaram novamente minhas explanações.


- Então, retomei mais confiante, Deus acordou depois de trabalhar na construção de mais um dia. Era de madrugada, tudo escuro, o sol ainda não nascera. Caminhou até a cozinha, ligou o fogo, colocou uma panela, jogou manteiga e um ovo – queria comer pão com ovo e café São Braz – e quando ia pegar um pouco de sal, o pacote de sal caiu das mãos dele e foi parar na água. Onde o sal caiu, Deus chamou mares e oceanos. Onde o sal não caiu, Deus chamou rios, lagos e lagoas.


Minhas filhas olharam-me desconfiadas. Falhara na tentativa de marcar uma história na memória delas. Enganei-me. No dia seguinte, enquanto o ônibus transitava para Itapema, elas conversavam com um rapaz que, inusitadamente, não sabia responder o porquê do sal do mar. Diante do titubeio, contaram em detalhes o que lhes falara na véspera.


*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 10 de dezembro de 2009.

sábado, 5 de dezembro de 2009

CYRO DOS ANJOS: O ESTILISTA DO SÉCULO XX

Embora os críticos literários apontem Machado de Assis como o maior escritor brasileiro de todos os tempos, o século XX – considerado a Era dos Extremos pelo historiador Eric Hobsbawm – ficaria em segundo plano sem a presença de um escritor mineiro que fez da magnitude da linguagem questão de capacidade e distinção.

Alguns podem se lembrar naturalmente de Guimarães Rosa, Murilo Rubião, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Autran Dourado, Affonso Romano de Sant’Anna ou Carlos Drummond de Andrade. Apesar da contribuição de cada um deles, o século XX jamais seria o século XX, insisto, se Minas Gerais não tivesse concebido Cyro dos Anjos.

Autor de, entre outros livros, “O amanuense Belmiro” e “Abdias”, Cyro dos Anjos atingiu o ápice do refinamento lingüístico, deixando para trás o grande Machado de Assis. O crítico literário Wilson Martins rebateria as comparações e argumentaria contra a hipótese de um Machado de Assis “renovado”, “melhorado” ou “rejuvenescido”. Obviamente Machado e Cyro possuem personalidades e estilos diferentes. Entretanto, não se pode deixar de inventar um trajeto de elegância e concisão iniciado com Machado de Assis, passando por Cyro dos Anjos e buscando o fim em algum escritor que ainda aparecerá. A procura da perfeição para os que desejam esgotar as possibilidades semânticas – destacando-se entre os contemporâneos Dalton Trevisan – é cíclica: constituiu-se em recomeço permanente e, em alguns casos, patológicos.

Pouco (re)conhecido no âmbito acadêmico e fora dele, Cyro dos Anjos aparentemente reflete simpatias por protagonistas masculinos, silenciosos, acanhados ou socialmente distanciados. Narrando sempre em primeira pessoa, Belmiro e Abdias sofrem com o isolamento optativo ou forçado. A escolha do narrador em primeira pessoa colabora para realçar o sofrimento e alçar os diários de ambos à verossimilhança transfigurada pela confissão, pela confidência, pelo delírio, pela paixão, pela mágoa e pela esperança. Mágoa e esperança percebidas nas investidas (explícitas ou implícitas) de ambos os protagonistas sobre seus respectivos objetos de desejo e, tempo depois, no ridículo e na frustração causados pelo fracasso.

Tomando Minas Gerais como ambiente predominante de seus romances, Belmiro e Abdias são caracterizados como espíritos submissos, sem ação, fechados em mundos pessoais que dialogam com o exterior por meio da palavra escrita e sem ressonâncias. Belmiro mal consegue impor suas opiniões entre os amigos, pouco se sobressaindo no trabalho de escrevente público. Abdias desfruta de vida intelectual fria e sem chances de despontar no cenário regional ou nacional: administra um museu. Convidado para lecionar numa escola feminina coordenada por freiras francesas, enlaça-se com uma das alunas. Crente de que abandonará mulher e filhos para usufruir de uma nova aventura, cai no ostracismo quando refutado pela discente numa dança em um baile bastante concorrido. Como amá-la inesperadamente? Como acreditar num amor ilusório? Como trocar de vidas e, trocando de vidas, enfrentar desafios anteriormente considerados audaciosos? Um covarde se revestiria de coragem?

Ao término das desilusões amorosas e dos malogros cotidianos, Belmiro e Abdias seguem rotineiramente o trajeto sem sobressaltos, sem desesperos e sem instabilidades. Belmiro e Abdias retratariam o homem cético, ansioso pela aceitação no grupo e, como conseqüência desta, a aceitação de si mesmo. No entanto, o ceticismo – estável e programado – se sobrepõe aos desejos e aos desígnios inesperados, percorrendo o caminho paralelo que, tão próximo e tão premente, espera o momento adequado para se perder, se misturar e se confundir, alterando vida/realidade em morte/sonho.

Como amplamente mencionado, a capacidade lingüística e a elegância sintática de Cyro dos Anjos possui uma qualidade singular: a inefabilidade. Embora alguns tentem, poucos são os leitores e estudiosos que consegue analisar eficientemente o escritor mineiro – e infelizmente eu não sou um deles – descrevendo pormenorizadamente e explicando pedagogicamente quais artifícios, métodos e teorias foram utilizados na constituição da escrita.

O leitor - que se interesse pela maturidade da escrita e deseje um livro indiscutivelmente bem elaborado, personagens bem compostos, enredos rotineiros e tensão cética e estável – poderá procurar as edições recentes de ambos os títulos, lançadas impecavelmente pela editora Globo.

Sem sombra de dúvida, Cyro dos Anjos é o escritor que mais se destacou na estilística do texto: um dos maiores romancistas do século XX.


*Publicado originalmente na Série Especial Dez Escritores Contemporâneos do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 4 de dezembro de 2009.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

FOGO BRANDO

Mudara-me para Tarumã deixando amigos na cidade em que concluíra a graduação e da qual saíra, no começo do ano, para assumir uma vaga de escriturário num banco da cidade paulista.

Não demorou para simpatizar com uma família que morava na frente da agência e, semanas depois, namorar a filha mais nova, cabelos pretos lisos e compridos, que propositalmente aparecia nas horas impróprias – em que trabalhava como caixa para diminuir a fila – a fim de depositar um centavo.

O comportamento detestável descambou numa espera ansiosa de modo que, sempre que a fila crescia em dias posteriores aos domingos ou aos feriados, meus olhos passeavam pelas faces em busca de uma franja de cabelos pretos ao fim da qual vislumbraria o sorriso cativante harmoniosamente desenhado para suprimir a inexpressividade dos olhos.

Terminava de preencher alguns formulários no reservado quando o gerente acenou-me. Cinco amigos vestidos de roupas de turistas lotando os assentos destinados aos clientes. Quarta-feira que antecedia o feriado de Corpus Christi parecia dia ideal, segundo meus amigos, para me fazerem uma visita surpresa e conhecerem a tão famigerada cidade.

Tentei acomodá-los em minha casa de quarto e sala, mas a euforia e a simplicidade impediam-nos de se darem conta de que dormiriam praticamente uns sobre os outros. Apenas um ponto me preocupava: os pais de Sara.

Prometera-lhes um jantar em casa. Os parentes de Florianópolis chegariam e os pais, ansiosos por apresentar o bom partido, pretendiam mostrar que eu tinha vida modesta, mas era independente e possuía um futuro tranqüilo para sustentar a filha.

Telefonei para um restaurante próximo, encomendei alguns salgadinhos, refrigerantes e cinco garrafas de vinho gaúcho. Faríamos uma reunião informal, os pais de Sara conheceriam meus amigos, meus amigos conheceriam os pais de Sara e os parentes compartilhariam momentos agradáveis.

- Tenho uma coisinha especial para esse velho, confidenciou-me André, sorrindo maliciosamente.

Adverti que não poderia aprontar barbaridades, pois o pai dela mostrava-se sério quase todo o tempo. De dentro de uma mala, André retirou cuidadosamente um barril engraçado com uma torneira.

- Trouxe cachaça. Vou colocar aqui em cima e, quem quiser, é só abrir a torneirinha e beber. Cachaça de João Pessoa. Da boa.

Meu sogro chegou antes do horário combinado. Deu-me as chaves para pegar a filha, a esposa e os parentes. Meia hora depois estacionava em frente da casa, fechava o carro, ativava o alarme, olhava o lustre dos sapatos e tomava a frente da comitiva abraçado a Sara.

Passamos rapidamente pelo pequeno jardim coletivo, abrimos a porta e, pulando nos sofás, o pai de Sara e meus cinco companheiros, cantando, berrando e sorrindo incontrolavelmente, entoavam músicas de serenata.

Ao avistar a esposa, engatinhou, derrubou meus livros no chão ao bater na mesinha de centro:

- Eu não tive culpa, meu bem. Eu não tive culpa. Eles disseram que a cachaça era boa, mas eu não sabia que era tão boa assim. Tomei só dois dedinhos...

*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 3 de dezembro de 2009.