sábado, 31 de outubro de 2009

JOSUÉ GUIMARÃES: MESTRE DA LITERATURA FANTÁSTICA

O esforço de Jorge Luis Borges, Adolfo Bioy Casares e Silvina Ocampo de selecionar contos para compor a “Antologia de la Literatura fantástica”, em meados de 1960, foi bem recebido, porém se perdeu no tempo e no espaço.

Da eclética antologia constam nomes consagrados como Casares, Borges, Ocampo, Lewis Carroll, Julio Cortázar, James Joyce, Franz Kafka, Maupassant, Poe, Rabelais, Sinclair, H. G. Wells, entre outros grandes escritores. Parece-me que os organizadores limitaram-se a escolher predominantemente obras da Literatura de língua espanhola, inglesa e francesa, esquecendo-se das de língua portuguesa.

Republicada regularmente, essa antologia (cujo exemplar que detenho atinge a vigésima primeira edição, 2008) insistiu em se manter alheia ao desenvolvimento da Literatura fantástica brasileira. Por essa razão, a obra continuou incompleta por excluir o maior nome do gênero entre nós e, indubitavelmente, um dos mais importantes no mundo: Josué Guimarães.

Com carreira tardia, assim como Saramago iniciada após os quarenta anos, Josué Guimarães consagrou-se escritor quando publicara “Enquanto a noite não chega” em 1978. Alguns poetas se eternizam apenas por parte de sua obra ou por um poema. Josué Guimarães já percorreu considerável trajetória literária, porém, se pudéssemos apontar uma obra fundamental, a novela que narra o cotidiano de Dom Eleutério e dona Conceição numa cidade decadente da qual, com exceção do coveiro, são seus únicos moradores seria escolhida com destaques e louvores.

Discute-se o caminho da morte desde o princípio pelo deserto urbano e pelas ruínas arquitetônicas, pelo desgaste de utensílios (como a falta de barbeador de Dom Eleutério) ou pelo fim da comida (economizada ao extremo por Dona Conceição que sabe que os alimentos não serão repostos), pela fantasia da rememoração mesclada aos acontecimentos contemporâneos, numa evidente ausência de discernimento entre devaneio salutar e delírio nostálgico e patológico.

A mistura entre tempos, lugares, pessoas e episódios permeia todo o enredo que discute secundariamente posicionamentos sobre guerras, escolhas e família, pondo em relevo a condição humana senil na perspectiva do abandono e da efemeridade, dos costumes e das recordações, ressaltando a importância da solidariedade e da compaixão como moedas de sobrevivência.

Um espaço como esse seria curto para tratar das questões intrínsecas e explícitas de um grande livro – embora considerado uma novela que dificilmente ultrapassa as noventa páginas – e de mostrar a genialidade brasileira no Rio Grande do Sul, contudo é mais do que suficiente para mandar um recado a Borges: se as causas perdidas só podem interessar a um cavalheiro, podemos escolher as armas do duelo?


*Publicado originalmente na Série Especial Dez Escritores Contemporâneos do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 30 de outubro de 2009.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

ALUNO MODELO

Orgulhosa e falante, a mãe terminou de despejar café nas xícaras do casal que a visitava:

- Meu filho! Vem aqui.

Mostraria aos primos – na verdade, ela, a prima, e ele, marido da prima – que o filho, aluno modelo do primeiro semestre letivo de famosa escola particular, estudava a valer. Interrompera os estudos na terceira série do então curso primário, a mãe queria o filho desfilando de anel grande e vistoso de doutor (poderia ser de médico, de engenheiro ou de entendido da computação, menos de advogado).

- Ele é uma beleza, afirmava, sorrindo orgulhosamente. Vai primo, pode fazer qualquer pergunta que ele responde. Responde na lata. Nem precisa estudar antes.

O marido da prima constrangeu-se pela insistência da mulher que acabava de conhecer, porém por cortesia, perguntou de quais matérias mais gostava. Preferia geografia e Literatura. Embora simpatizasse com física, escrevera alguns poemas na adolescência e lia regularmente romances e crônicas. Viajara a alguns estados e aos países vizinhos de modo que, por conhecimento menos teórico do que prático, iniciou a sabatina:

- Qual a capital do Brasil?

- Brasília, respondeu de pronto o moleque.

- Paraíba?

- João Pessoa.

- Acre?

- Rio Branco.


- Maranhão?

- São Luis.

O marido da prima se empolgava, pensou em questões sobre eras geológicas e camadas terrestres, marítimas e aéreas, mas aprofundou-se nas capitais dos países latino-americanos.

- Qual a capital da Argentina? Disparou, sorridente.

- Caracas.

- Uruguai?

- Surinama.

- Chile?

- Ouro Preto.

A mãe abraçava-o, empurrando-lhe duas coxinhas goela abaixo a título de prêmio pelas respostas rascantes. O menino poderia estar nervoso a ponto de trocar nomes de capitais e confundir uma cidade brasileira com a capital chilena. Mudou para Literatura. Perguntas simples, respostas simples.

- Quem escreveu “A luneta mágica”?

- Machado de Assis.

- “Grande Sertão: veredas”?

- José Lins do Rego.

- “Eu e outras poesias”?

- Guilhermino Cesar.

- “Concerto Campestre” e “O pintor de retratos”?

- Castro Alves.

Voltou a premiá-lo com duas coxinhas e o liberou para brincar na rua, mas antes de atravessar a cozinha, o marido da prima quis indagar novamente.

- Em sua opinião, quem é o maior poeta da Literatura brasileira? Entende? Da Literatura brasileira!

Aquiesceu afirmativamente. Aluno modelo do primeiro semestre letivo de uma das mais tradicionais escolas particulares. Responderia facilmente. Voltando o corpo para dentro de casa:

- Fernando Pessoa.

- Eu não disse que ele era um gênio? Um gênio precoce.

Ao fim do café o marido da prima fez questão de tomar nota do nome e do endereço da escola. Esquivar-se-ia das proximidades do educandário para evitar o contágio de inteligência tão grande.

*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis –SP) de 29 de outubro de 2009.

sábado, 24 de outubro de 2009

Valesca de Assis: habilidades múltiplas

O passeio entre dois gêneros literários ou entre suas nuances nem sempre se dá de maneira satisfatória. Seja pela limitação despercebida do escritor ainda imaturo, seja pelas tentativas frustrantes e sem resultados claros, adultos e jovens ou romances e crônicas parecem fronteiras mais do que suficientes para repensar as técnicas narrativas e descobrir caminhos que levam ao mesmo destino. Nesse ponto – em que as técnicas são repensadas antes de aplicadas – destaca-se o trabalho da escritora gaúcha Valesca de Assis.

Educadora, filósofa, autora premiada e ministrante de oficinas literárias no Rio Grande do Sul, Valesca de Assis desperta a atenção por duas características que, embora interdependentes, se complementam na busca dos efeitos que aparentemente pretendem alcançar. Se o ensaísta e escritor mexicano Carlos Fuentes define a Literatura como o exercício idiossincrático da imaginação e da linguagem, Valesca de Assis sabe desempenhar maduramente os artifícios de que dispõe para transformar a linguagem em degrau de uma escada consistentemente construída.

A verificação dessa afirmação ocorre em duas de suas obras. A premiada “Harmonia das esferas”, romance destinado ao público adulto, mas que não contém nenhum empecilho aos leitores de todas as idades, narra a história de um casal, passada na Porto Alegre dos anos de chumbo da ditadura. Quem ultrapassa as dez primeiras páginas e se adapta à linguagem trabalhada para causar, nos moldes semelhantes em alguns trechos de Clarice Lispector, uma angústia pela relação conturbada dos protagonistas, se atém aos amantes que, em momentos de loucura, são capazes de se valer de artifícios pouco ortodoxos para encerrar o passado e retirar suas faíscas do centro da memória.

Numa leitura superficial, o uso de explosivos para mandar pelos ares e pelas águas uma ilha do Guaíba parece inverídico, mas, em um segundo momento, as iniciativas e práticas militares durante o regime de exceção beiravam o sem sentido, que certamente surpreenderia Kafka.

A linguagem de efeitos psicológicos e nem sempre fluida de “Harmonia das esferas” cede lugar a uma narrativa linear, corrente e empolgante em “Vão pensar que estamos fugindo!”, destinado ao público infanto-juvenil e publicado no ano passado por ocasião das comemorações dos duzentos anos da chegada da família real ao Brasil.

De situações hilárias e de fatos que prendem a atenção do leitor numa viagem pelos subúrbios da história brasileira, “Vão pensar que estamos fugindo!” vale como material pedagógico imprescindível para lançar na sala de aula, de maneira pedagogicamente eficaz, as discussões frugais e humanas que permearam a vida da nobreza que se instalava em nosso país. Dessa maneira, os longos discursos de exaltação das figuras públicas abrem espaço para as análises das vidas privadas.

Pela condução da linguagem e pela destreza no exercício do foco narrativo, Valesca de Assis deve se instalar na bibliografia dos que pretendem uma leitura divertida, mas não fútil, das relações amorosas e das angústias particulares dos personagens públicos.

*Publicado originalmente na Série Especial Dez Escritores Contemporâneos do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 23 de outubro de 2009.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

CAMINITO

Para Mira

Por insistência do marido, aceitou o convite para passar sete dias em San Telmo e percorrer novamente as ruas históricas da capital de Carlos Gardel, de Cortázar, de Borges, de Ernesto Sábato e de Roberto Arlt. Subiria e desceria pelas quase duas dezenas de livrarias da Calle Florida ou escolheria um café pouco barulhento para se perder em algum romance.

A viagem começara mal: tomara um banho de lama quando um táxi afundara o pneu em um buraco na frente de sua casa, o vôo atrasara quatro horas e meia e, dentro do avião, um comissário criou problemas com as autorizações dos netos.

Como se não bastasse, o avião entrara em Porto Alegre para solucionar um problema mecânico e o trajeto, deveria se encerrar às quatro e quinze da tarde argentina, terminou por volta das treze horas do dia seguinte. O marido gemia de dores estomacais.

- Bem que falei para não virmos, dizia para si mesma, enquanto procurava remédio mais forte na mala desarrumada sobre a cama e tentava o número dos netos, deixados dois andares abaixo.

Quando os dedos deslizavam no teclado do telefone, três socos fortes e seguidos ecoaram da porta. O gerente reclamava da bagunça dos netos cujo apartamento estava desfigurado: a janela interna e o espelho do banheiro quebrados, os colchões jogados ao chão, duas cadeiras de pernas destruídas, suporte, fios, aparelho de DVD e de TV destroçados.

Ordenou que arrumassem a bagunça e, em seguida, refizessem as malas. Voltariam a Presidente Prudente naquele mesmo dia ou no dia seguinte, mesmo que tivesse que pagar multa pesada. Desceu à recepção, desculpou-se com o gerente e pediu que providenciasse as passagens. Ficasse tranqüilo. Pagaria integralmente as diárias.

Saiu em busca de um restaurante, três quarteirões abaixo. Desde a véspera ingerira apenas café, água e suco.

Assim que entrou, o pai transpassou a memória: lembrava dele, anos atrás, sentado numa mesa de canto. A mãe, ela e as três irmãs visitavam Buenos Aires pela primeira vez e, encantadas, ouviam-no atenciosamente falar de Borges.

- O maior escritor do mundo, falava o velho, bebendo elegantemente café sem açúcar.

Um café sem açúcar numa xícara pequena e um copo de água gelada fizeram-na recordar das preocupações paternas: sumiço da irmã com um argentino de olhos verdes, demora de outra irmã que saíra em busca de um livro, mãe e irmã que saíram cedo para o zoológico e, na volta, detiveram-se no comércio e esqueceram as horas. Puerto Madero e as advertências contra os aproveitadores. Lembraria do pai cantando Caminito se, no momento em que seus pensamentos se perdiam nos labirintos da memória, um cantor não encetasse e os clientes não o acompanhassem: “Desde que se fue/ Triste vivo yo/ Caminito amigo/ Yo también me voy”.

Vislumbrou em volta, os olhos umedeceram, os sentimentos se confundiram, os apuros dos netos misturavam-se às travessuras das irmãs. Ao lado esquerdo do palco improvisado, um homem - terno creme, gravata vinho e lenço vermelho destacando-se no bolso do paletó – cantava empolgadamente. Um homem visto apenas por olhos de felicidade. Um homem escutado apenas por ouvidos poéticos. “Desde que se fue/ Nunca más volvió/ Seguiré sus pasos/ Caminito, adiós”.

À entrada do hotel o gerente informou das passagens para o fim da noite. Um micro-ônibus os levaria ao aeroporto.

Fitou as passagens pulsantes, sorriu discretamente, agradeceu o esforço. Subiria ao andar dos netos. Desfizessem as malas. “Desde que se fue/ Nunca más volvió/ Seguiré sus pasos/ Caminito, adiós”.

*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 22 de outubro de 2009.

sábado, 17 de outubro de 2009

FUNCIONÁRIO PÚBLICO: BOLA DE PING-PONG?

Um projeto aprovado pela Câmara de Vereadores e transformado posteriormente em lei durante o primeiro ano de mandato do então prefeito Roberto de Almeida reduziu a carga horária de uma equipe de funcionários da prefeitura. Em vez de trabalharem oito horas com intervalo para almoço, trabalhariam seis horas diretas.

Ganhou o funcionário que viu crescer a qualidade de vida. Ganharam os munícipes com a ampliação do horário de atendimento dos postos de saúde, estendido até às 19h. Ganhou a prefeitura que, numa iniciativa inovadora e acompanhando a evolução da História dos trabalhadores, proporcionou agilidade no serviço e melhor atendimento à população.

Em meados deste ano, a prefeita de Maracaí achou que os funcionários que trabalham seis horas deveriam voltar às oito horas diárias. Para isso, mandou um projeto de lei para a Câmara sem conversar com todos os vereadores nem ouvir adequadamente o Sindicato dos Funcionários e Servidores Públicos Municipais de Maracaí.

A falta de comunicação desencadeou embaraços. Os servidores diretamente afetados pela proposta de mudança de jornada de trabalho reuniram-se e discutiram as propostas heterodoxas apresentadas pela prefeitura. Apoiado pelo Sindicato dos Funcionários e Servidores Públicos Municipais de Maracaí, o grupo compareceria em peso à sessão que discutiria o assunto.

Na sessão de seis de outubro, acuados, alguns vereadores lastimavam-se da tribuna pela situação em que foram metidos. Vociferam contra um inimigo invisível e sem nome. Sentiram-se incomodados por terem de enfrentar a opinião pública, os funcionários e os cidadãos conscientes que lotaram as dependências do edifício da Câmara.

O projeto da prefeita foi derrotado. Porém, por motivos burocráticos, voltará a ser apresentado em outra ocasião.

Durante a sessão distribuí uma cópia de “Sindicalismo de araque”. No artigo, publicado na imprensa de Assis em junho deste ano, alertava contra sindicalistas que se dizem a favor do trabalhador, mas que viram as costas quando são chamados a defender os direitos alcançados pelo trabalhador.

Os sindicalistas e deputados federais Vicentinho (PT), Paulinho da Força (PDT) e Medeiros (PR) recentemente discursaram a favor da redução da jornada de trabalho semanal durante audiência pública na Câmara dos Deputados em Brasília. Sindicalista de verdade é sindicalista sempre. Sindicalista de verdade está sempre em defesa do trabalhador.

O deputado federal Vicentinho (PT-SP) defendeu os trabalhadores e a diminuição da jornada semanal de trabalho em seu discurso na Câmara dos Deputados. Pergunte ao vereador de seu partido, em quem você votou, se ele foi contra ou a favor do trabalhador municipal.

Quem estava a favor dos trabalhadores da prefeitura de Maracaí? Zambito e seus companheiros do Sindicato de Cândido Mota, eram alguns deles. José Antônio da Silva e José Aparecido dos Santos, popular Zeca, que integram a diretoria do Sindicato dos Municipais de Maracaí, também apoiaram os trabalhadores. Entre os vereadores, cinco votaram a favor dos trabalhadores: Cleonice David (PSDC), Edvaldo Rodrigues (PP), Eduardo Correa Sotana (PSDB), Agnaldo Oliveira Cruz (PSDB) e Aparecido Cardoso (PSDB).

O funcionário público municipal de Maracaí não é uma bola de ping-pong. Demorou muito para conquistar direitos que se consagram no mundo inteiro e não pode ser forçado a aumentar a carga de trabalho por meio de uma lei que, eventualmente aprovada, pode até ser legal, mas será totalmente ilegítima.

Lembro que em uma ocasião alguém mencionou a contratação de consultoria pela prefeitura. A prefeitura está certa. Quando não se tem capacidade ou não se tem conhecimento completo de um assunto, o melhor – tanto para administradores públicos quanto para a população – é contratar legalmente boas consultorias.

Sugeriria que a prefeitura de Maracaí contratasse uma consultoria em administração pública, especializada em seres humanos. Uma consultoria competente pode ensinar ou aprimorar as relações de administradores, administrados e funcionários. Uma consultoria em administração pública especializada em seres humanos pode ensinar que a autoridade é uma necessidade, mas que eventuais práticas autoritárias são equívocos.

Enquanto a consultoria não vem, indicaria “O ócio criativo”, do sociólogo italiano Domenico de Masi, aos interessados nos temas de trabalho, democracia, liberdade e qualidade de vida. Quem sabe se lendo esse livro alguém não aprenderia um pouco de história, sociologia e economia e observaria que o trabalho desumano do século XIX e de metade do século XX desapareceu em favor do trabalho de qualidade, realizado em poucas horas, essencial para acelerar e consolidar a geração de emprego, riqueza e renda?

*Publicado originalmente na Folha do Vale (Tarumã – SP) de 17 de outubro de 2009.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

AFLIÇÃO

Convocou o sobrinho para dar um jeito no filho.
- Fazes o que quiseres, mas vais colocá-lo nos eixos! Quero todo mundo comentando que meu filho é um garanhão! Entendeste?

Munido da generosa doação do tio, empurrou o primo para um fim de semana de pesca. O primo levara alguns amigos de modo que a noite de sexta-feira e a manhã de sábado transcorreram rapidamente.

Depois do almoço – falta do barulho de carros, motos e caminhões, das conversas femininas nos salões de beleza se preparando para a noite, da TV, do rádio, do computador, do bar de periferia esperando eternamente grande número de torcedores de futebol – confessou:

- Não agüento mais esse negócio de pesca!

- Se não agüenta, por que inventou?

A pergunta inesperada o pôs numa situação pitoresca da qual se desvencilhou brilhantemente: queria sossego, tranqüilidade, contato com a natureza. Entretanto, não pensara que o contato com a natureza fosse tão monótono.

Aproveitando a oportunidade, sugeriu que fossem para a cidade à noite e, como o destino se tornasse cúmplice, um dos amigos do primo gritou euforicamente:

- Por que não vamos visitar as Senhoras das Noites?

O ar de ignorância do primo sumiu quando, ouvindo a explicação para o termo, ruborizou diante da explicação:

- Um rendez-vous!

Perderam a tarde compartilhando impressões, criando situações, discutindo qualidades e discorrendo alternativas da arte de amar.

Telefonou discretamente para o tio:

- De hoje não passa. Garanto ao senhor. De hoje não passa.

O tio desligou o telefone. A aflição indisfarçável despertou a atenção da mulher que, depois do jantar, entregou-lhe uma xícara de chá de qualquer coisa para acalmar os nervos.

Mal deram nove horas, os sete sentaram-se ao fundo, à direta do palco. Encetaram conversas com as meninas, trataram das condições contratuais. O primo confidenciava-se aos ouvidos de uma uruguaia de sotaque despercebido. Já relaxado, poderia telefonar no dia seguinte para o tio.

Acordou por volta das dez da manhã, celular tocando, ressaca gritante, tio esbravejando: como o enrascara assim? Por que deixara na internet as fotos do filho dançando num palco trajando calcinhas e soutiens?

*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 15 de outubro de 2009.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

AULA DE ARROMBA

Aceitou entusiasmado o convite do reitor para assumir uma matéria recém-criada, destinada a incentivar a cooperação, a interatividade, a criatividade. A primeira chance de se consolidar numa grande instituição de ensino superior.

- É muito fácil o que tens a fazer. O reitor sentou-se na cadeira de couro, apontou o sofá da frente e, assim que o novo professor também sentou-se, continuou seu discurso solene: - A nossa instituição ocupa um lugar de destaque não apenas em nossa região, mas em todo o nosso estado. Quero que os alunos testemunhem que, embora arraigada na tradição, nossa universidade mantém os dois pés na modernidade, na... Parou o discurso, levantou-se, tomou um papel de cima da mesa: - Isso, na multidisciplinaridade, na tecnologia e que contamos com professores altamente qualificados e cheios de mecanismos para prender a atenção dos alunos, incentivando-os a cooperarem.

Ouvia a tudo, esforçando-se para controlar o desconforto causado pelo sapato apertado que machucava o dedo mínimo. Cruzava e descruzava as pernas, pensava em tirá-lo ali mesmo ou quando saísse da sala. A situação o impediu de ouvir integralmente o discurso, gravando apenas o encerramento: - Quero uma aula para entrar na história da faculdade. Uma aula de arromba!

O professor passou os três dias seguintes na frente do computador. Elaborou planilhas, procurou relatórios empresariais, descobriu trabalhos acadêmicos sobre as transformações decorrentes da poluição dos rios, criou uma bibliografia de livros publicados nos últimos seis meses na Inglaterra, na Irlanda, na Itália e na França, pesquisou programas de computador aos quais os alunos acessassem gratuitamente, traçou duas promoções para que os mais destacados durante o semestre gozassem um fim de semana em Florianópolis... – Uma aula de arromba! Uma aula de arromba! As palavras do reitor estrondavam na mente.

Pensava numa aula de arromba de verdade, mas nada de interessante fluía. Voltou ao computador, aperfeiçoou o que já fizera, acrescentando slides de fotos de países da Europa Oriental. Deitou-se angustiado e vislumbrava as reprovações de alunos, de convidados, de professores e do reitor pela aula monótona que ministraria.

Ao chegar à universidade, informado de que ocuparia o anfiteatro. Se as pernas não amoleceram e o coração não disparou, a voz quis dar no pé e o suor – mesmo no frio – invadiu-lhe abruptamente as costas. O reitor subiu ao palco, cumprimentou o público, destacando a presença do prefeito, de um deputado e de um fazendeiro rico, convidou o mais novo contratado e puxou os aplausos que se multiplicavam pelos defeitos acústicos do ambiente.

Acenou para as mais de cento e cinqüenta pessoas reunidas para assisti-lo, gaguejou um pouco e inverteu a ordem da apresentação: os slides que fechariam a aula seriam utilizados no começo. Apertou o controle remoto em direção ao aparelho. Uma, duas, três vezes. Até que alguém indicou a tomada fora do plug.

Pulou do palco, tomada a menos de vinte centímetros e, nervoso pela demora que causava, introduziu-a sem adaptar a pecinha que transformaria os 220 em 110 volts. Voltou ao palco, pegou o controle remoto e antes de ligar o aparelho:

- Preparem-se para algo inesquecível!

Apertou o botão: o slide pipocou, o fogo alastrou-se sobre o aparelho, percorreu o fio e invadiu a rede elétrica, estourou as luzes, queimou os três aparelhos de ar condicionado, contornou a instalação interna, incendiou três microfones e a mesa de som.

Alunos, professores, funcionários e convidados já tinham saído pelas janelas, portas normais e de emergência. Destruíram cadeiras improvisadas entre as poltronas, atropelaram pessoas vagarosas e, do lado de fora do edifício, olhavam boquiabertos o fogo se espalhando e o professor, palestrante da noite, saindo calmamente em direção ao reitor:

- Foi ou não foi uma aula de arromba?

*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis –SP) de 8 de outubro de 2009.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Lampião e Maria Bonita?

Grande parte das pessoas já ouviu falar em Lampião e Maria Bonita. Ou como transgressores da lei, ou como representantes corajosos da liberdade e da denúncia contra a ilegitimidade de governos, Lampião e Maria Bonita firmaram-se no imaginário e, em alguns casos, na memória.

Se você já ouviu falar deles, o que diria se pudesse ler um enredo educativo e ilustrado para seus filhos ou para seus netos no próximo dia das crianças? O que diria de delinear no imaginário de seus pequenos leitores o vasto campo de aventuras, de sentimentos e de peripécias dessa dupla numa linguagem literária de alta qualidade? Por fim, você gostaria de empolgar os pequenos com uma narrativa caprichada em que os protagonistas são Lampião Junior e Maria Bonitinha?

Com desenhos de Marco Carillo, Januária Cristina Alves usa uma linguagem fluida, engraçada e atraente, conjugando estética e oportunidade em espaço necessário para sublinhar desenvoltamente como o menino Lampião Junior e a garota Maria Bonitinha se conheceram e, desde cedo, mantiveram amizade e paixão entrelaçadas pela disputa, pela coragem, pela ousadia e, principalmente, pelo despeito.

Em uma dessas disputas pautadas pela amizade e pela paixão, Lampião Junior e um concorrente ajustam uma competição da qual sairá vencedor quem conseguir dançar xaxado melhor e por mais tempo. A disputa engraçada atinge um efeito inesperado: sem vencedores, o resultado do empate é proclamado como alternativa de conter o ímpeto dos espectadores que, empolgados, também se preparam para entrar na dança.

Essa é apenas uma das aventuras criadas fabulosamente pela escritora que, em grande estilo e futuramente, figurará no rol dos trabalhos mais bem elaborados e verossímeis em decorrência da mistura e do equilíbrio poético que confere à sua linguagem.

Januária entranha-se no grupo dos bons escritores do qual desponta Ariano Suassuna, pois ela, assim como mestre Ariano, transcreve clichês, lugares-comuns, sotaques, frases e interjeições nordestinas sem se jogar no abismo do picaresco, do mau gosto e do equívoco.

Assim como em Ariano Suassuna, os pequenos personagens nordestinos de Januária (que também poderiam ser gaúchos, cariocas ou caipiras paulistas de sotaque, como os de nossa bela região de Assis) minimizam o eventual distanciamento social em decorrência da proximidade da realidade, atributo verificado em todos os bons autores.

Outras características poderiam – e podem – ser enumeradas no trabalho infanto-juvenil, mas acredito que apenas a capacidade de escrita amadurecida aliada à competência estética na composição de “A história de Lampião Junior e Maria Bonitinha” é mais do que suficiente para perceber que ainda existem autores/educadores que sabem que a comunicação infantil eficaz se concretiza pelo uso inteligente do diálogo, do discurso e da linguagem.

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A História de Lampião Junior e Maria Bonitinha
Januária Cristina Alves – Editora Novo Século – 48 p. – R$ 34,90

*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 1 de outubro de 2009.


Esta e outras críticas literárias também podem ser conferidas AQUI.