Olá.
Os eventuais leitores deste blog poderão conferir abaixo a íntegra de um artigo do professor e advogado Fernando Batistuzo, cuja página de blog está disponível no "Páginas Interessantes".
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CONSTITUIÇÃO FEDERAL E DIREITOS FUNDAMENTAIS: CONHECER PARA USAR
Caro leitor, qual é a sua leitura de cabeceira? A Bíblia, “Minuto de sabedoria”, um daqueles livros dos “dez mais vendidos do mês”, “Caras”, ou, a Constituição Federal? Não, não estou brincando. A menos que você esteja se preparando para concursos públicos para alguma carreira jurídica, creio que você não tem sobre seu criado-mudo ou sobre aquela sua refinada mesa-de-centro-de-sala-com-tampa-de-vidro, ladeada por livros ou revistas sobre casas, carros, moda, artes, notícias, dentre outros, ou ainda em qualquer canto de sua casa - aqui com exceção dos operadores do Direito - uma edição, por mais simples que seja, da Constituição Federal brasileira. Se não tem, deveria ter, e ler. Você não precisa “comprar” uma Constituição Federal. Você sempre teve uma, apenas não sabe onde está. Para encontrá-la vai uma dica: “baixe-a” gratuitamente pela internet e a salve em seu computador, pois, acredite, ser-lhe-á útil. Como brasileiros que somos, salvo alguns poucos (jamais se pode generalizar), padecemos de heteronomia, sempre transferindo culpas ou deixando para os outros fazerem o que poderíamos fazer. A política vai mal? A corrupção está disseminada? Falta tudo, hospital, escola, segurança, saúde? De quem é a culpa? “Nossa é que não é?” É “do governo”. “Se quem deveria fazer alguma coisa - o Ministério Público, a polícia, o Poder Judiciário - não faz, o quê posso fazer? Nada, certo?” Errado, caro leitor. Podemos e devemos agir contra tudo isso, porque você, todos nós, possuímos direitos, dentre os quais alguns “Fundamentais”. Deles nunca tinha ouvido falar? Não se recrimine, você não está só e a culpa não é, só, sua. Tente se recordar se alguma vez em sua casa seus pais te chamaram para aquela “conversa” e lhe expuseram seus direitos. Certamente se houve determinada “conversa”, não foi sobre esse assunto, mas outro não menos interessante. E na escola, aquela “tia” já quase apagada da memória, em alguma ocasião “ditou” seus direitos? Com certeza seu treino de caligrafia não foi de “constituição”, “federal”, “direitos” ou “fundamentais”. “Mas, peraí” você diz “tive OSPB - or-ga-ni-zação-so-ci-al-e-po-lí-ti-ca-do-Bra-sil!”. Eu também, mas será que foi suficiente? Em outubro passado você ouviu muito sobre democracia, então responda: em quê ela consiste? Poder votar? Será apenas isso? Você vive uma democracia? Se suas respostas não se referirem a “Constituição Federal” e a “Direitos Fundamentais”, então, sinto informar-lhe, seu conceito de democracia e a democracia em que você vive estão muito aquém do que efetivamente podem ser. Numa definição bem simples, Direitos Fundamentais são aqueles sem os quais o indivíduo não se realiza plenamente, não se torna pessoa, “pessoa digna”, fundamento da República Federativa do Brasil. Nesse ritmo, tem-se que um Estado somente pode ser considerado como “Democrático de Direito” dependendo do grau de reconhecimento e proteção, por parte do próprio Estado, do exercício daqueles direitos do indivíduo previstos na Constituição Federal. Diante dessas concepções, indaga-se: sua noção de democracia modificou-se? Que bom se a resposta for afirmativa, pois agora você pode responder àquela pergunta: você vive, efetiva e plenamente, uma democracia? Não, não é? A essa conclusão você chegou por puro raciocínio lógico, por uma coisa levar a outra: direitos fundamentais – reconhecimento – exercício – dignidade – democracia. Arrisco o palpite de que nesse momento você, inconformado pela concepção equivocada que tinha e ansioso para colocar em prática esse novo conhecimento, esteja perguntando se ainda está em tempo de conhecer e exercitar esses seus tais “Direitos Fundamentais”. Sim. O grande fator de modificação de uma sociedade e conseqüentemente de um país é a educação, porém não apenas representada pelo ensino das tradicionais disciplinas escolares, mas também por conceitos, noções e apresentação de quais são os Direitos Fundamentais dos quais somos titulares e como exercê-los. Você, leitor-professor, saiba que com uma Constituição e um jornal nas mãos possui um poderoso “instrumento” para, ao mesmo tempo, ensinar, mostrando a seus alunos a realidade brasileira e como modificá-la, e, formar verdadeiros cidadãos conscientes que abandonarão a confortável postura heterônoma, passando a exercer, a cobrar seus Direitos. Assim, para você que já os conhece e para você que não os conhecia: mexam-se, pois, daqui em diante, se as coisas andarem mal, como diz um ilustre constitucionalista e professor: “não me venha com seus macaquinhos”.
Fernando Batistuzo Gurgel Martins é Advogado, Professor universitário de Direito Constitucional e de Direito Processual Civil, especialista em Direito Civil e em Direito Processual Civil, e mestrando em Direito Constitucional. E-mail para contato: batistuzo@ig.com.br / Blogs: www.professorumaduvida-fape.blogspot.com e www.professorumaduvida-finan.blogspot.com
PARA SABER MAIS SOBRE O TRABALHO DO PROFESSOR FERNANDO BATISTUZO, CLIQUE AQUI
sábado, 29 de agosto de 2009
quinta-feira, 27 de agosto de 2009
AULA DE MESTRADO
A angústia da concorrência compensou quando verificou seu nome entre os mais bem classificados. Os olhos vibravam, as mãos suavam, falava sem parar. Compartilhou o sucesso com amigos, informou à sogra que ganharia o triplo do salário, disse para a mãe escolher dois vestidos e dois pares de sapatos na loja mais cara.
- Minha mãe merece, dizia para si mesma enquanto folheava o jornal e bebericava alguns goles de café.
Cursara economia, especializara-se em exportação bovina e depois de esforços incontáveis, noites incompletas, reclamações do marido, cobranças das amigas abandonadas, finalmente entraria no mestrado.
Pensava no glamour, nas dezenas de entrevistas que jornais, rádios e televisão solicitariam, dos problemas complexos que seriam apresentados a fim de solucionarem as pendências da sociedade. Que viessem todos os problemas, inclusive os de lógica. Mestranda em filosofia, responderia a qualquer questão.
No início de março despediu-se do marido, deixou os filhos na escola, advertiu a mãe de que não almoçaria com ela, desmarcou a massagista, confirmou a manicure às 19h30, conferiu cadernos, dois livros, garrafa de água sem gás e dois chocolates Batom.
Sociólogos, matemáticos, literatos, advogados, engenheiros, jornalistas, designers, administradores, psicólogos, historiadores, economistas, dois agrônomos, três teólogos e dois alunos especiais compunham a classe heterogênea.
Os dezoito primeiros meses transcorreram como a queda de algodão doce na ponta da língua. Mais um semestre, as aulas acabariam. Daí em diante, dedicar-se à revisão, à reflexão e aos consertos metodológicos, teóricos, formais e estilísticos da dissertação que, como gostava de frisar o professor da disciplina de regras da ABNT, deveria ir além das trezentas páginas.
Uma dupla de docentes ministraria a disciplina dividida em três tardes com duração semanal de quinze horas. Ignorou as piadas dos professores que se referiam às colegas como “terror” e “monstros” do departamento. “Monstros” porque talvez cobrassem extenuantes exercícios de análise, horas excessivas de leitura, trabalhos longos e complexos, participação ativa e intensa nos debates.
Dormiu mal, imaginando como faria para novamente conciliar as atividades de aluna, mãe, esposa, filha, amiga, profissional. Realocou alguns horários e pensou em abrir mão ou pedir licença do trabalho durante aqueles seis meses. “Terror” e “monstros”: duas palavras que a acompanharam durante a véspera da aula e se esticaram durante o dia até o momento de entrar na sala, cumprimentar os colegas e sentar-se desconsolada na sua carteira.
Pontualmente às 14h05, as duas senhoras trajando vestidos longos – como estivessem se dirigindo a uma grande festa – entraram na sala, depositaram o material na mesa e o giz no suporte do quadro negro.
O método didático das duas consistia basicamente na dialética. Uma perguntava, a outra respondia. Uma falava, a outra complementava. As duas se esqueciam e, com muita dificuldade e leveza, tentavam se lembrar da ordem do discurso.
- Montesquieu foi quem primeiro tratou da relação entre filosofia e educação. Não é, Ivonete?
- Claro, Claro. Montesquieu. Isso mesmo.
- Então para facilitar, vamos escrever no quadro negro, não é Ivonete?
- Claro. Vou copiar. Então me acompanhem. Montes... Montes... Quem é mesmo?
- Montesquieu, Ivonete.
- Isso. Montesquieu. Como mesmo se escreve Montesquieu.
- Sabe que também não lembro?
Cento e sessenta horas de aula. Entendia o porquê de “terror” e de “monstros” do departamento de filosofia.
*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 27 de agosto de 2009.
- Minha mãe merece, dizia para si mesma enquanto folheava o jornal e bebericava alguns goles de café.
Cursara economia, especializara-se em exportação bovina e depois de esforços incontáveis, noites incompletas, reclamações do marido, cobranças das amigas abandonadas, finalmente entraria no mestrado.
Pensava no glamour, nas dezenas de entrevistas que jornais, rádios e televisão solicitariam, dos problemas complexos que seriam apresentados a fim de solucionarem as pendências da sociedade. Que viessem todos os problemas, inclusive os de lógica. Mestranda em filosofia, responderia a qualquer questão.
No início de março despediu-se do marido, deixou os filhos na escola, advertiu a mãe de que não almoçaria com ela, desmarcou a massagista, confirmou a manicure às 19h30, conferiu cadernos, dois livros, garrafa de água sem gás e dois chocolates Batom.
Sociólogos, matemáticos, literatos, advogados, engenheiros, jornalistas, designers, administradores, psicólogos, historiadores, economistas, dois agrônomos, três teólogos e dois alunos especiais compunham a classe heterogênea.
Os dezoito primeiros meses transcorreram como a queda de algodão doce na ponta da língua. Mais um semestre, as aulas acabariam. Daí em diante, dedicar-se à revisão, à reflexão e aos consertos metodológicos, teóricos, formais e estilísticos da dissertação que, como gostava de frisar o professor da disciplina de regras da ABNT, deveria ir além das trezentas páginas.
Uma dupla de docentes ministraria a disciplina dividida em três tardes com duração semanal de quinze horas. Ignorou as piadas dos professores que se referiam às colegas como “terror” e “monstros” do departamento. “Monstros” porque talvez cobrassem extenuantes exercícios de análise, horas excessivas de leitura, trabalhos longos e complexos, participação ativa e intensa nos debates.
Dormiu mal, imaginando como faria para novamente conciliar as atividades de aluna, mãe, esposa, filha, amiga, profissional. Realocou alguns horários e pensou em abrir mão ou pedir licença do trabalho durante aqueles seis meses. “Terror” e “monstros”: duas palavras que a acompanharam durante a véspera da aula e se esticaram durante o dia até o momento de entrar na sala, cumprimentar os colegas e sentar-se desconsolada na sua carteira.
Pontualmente às 14h05, as duas senhoras trajando vestidos longos – como estivessem se dirigindo a uma grande festa – entraram na sala, depositaram o material na mesa e o giz no suporte do quadro negro.
O método didático das duas consistia basicamente na dialética. Uma perguntava, a outra respondia. Uma falava, a outra complementava. As duas se esqueciam e, com muita dificuldade e leveza, tentavam se lembrar da ordem do discurso.
- Montesquieu foi quem primeiro tratou da relação entre filosofia e educação. Não é, Ivonete?
- Claro, Claro. Montesquieu. Isso mesmo.
- Então para facilitar, vamos escrever no quadro negro, não é Ivonete?
- Claro. Vou copiar. Então me acompanhem. Montes... Montes... Quem é mesmo?
- Montesquieu, Ivonete.
- Isso. Montesquieu. Como mesmo se escreve Montesquieu.
- Sabe que também não lembro?
Cento e sessenta horas de aula. Entendia o porquê de “terror” e de “monstros” do departamento de filosofia.
*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 27 de agosto de 2009.
sábado, 22 de agosto de 2009
Ler por prazer?
Uma menina de olhos displicentes interrompeu minha leitura de Sherlock Holmes quando o detetive subia uma espécie de montanha em busca de seu inimigo.
- Quando você tem que terminar o livro?
Coloquei o marcador na página em que fora interrompido e pedi que me explicasse sua pergunta. “Quando” eu deveria “terminar o livro”? Se lia com tanto interesse, certamente possuía prazo para eventualmente escrever um resumo ou um texto para entregar a algum professor.
-Estou lendo por prazer.
A adolescente – acompanhada implicitamente por uma mulher que se sentava no banco dianteiro e de um homem segurando-se ao balaústre – lançou-me olhares inquiridores como se me perguntasse: ler por prazer?
Então me contou que lia exclusivamente livros da escola, abrindo a bolsa e mostrando-me dois do Eça de Queirós, provavelmente solicitados em algum vestibular: O primo Basílio e A Relíquia. O primo Basílio narra um adultério. Escritores passados (Machado de Assis, Flaubert, Tolstoi ou D.H. Lawrence) trataram largamente do tema assim como os contemporâneos (entre eles Autran Dourado, Dalton Trevisan e Luiz Antônio de Assis Brasil). Mesmo na marra, o adultério pode facilitar a leitura de uma obra como O Primo Basílio. E o que dizer de A Relíquia?
Uns dez anos atrás a li quando do fim de um ciclo de estudos. À noite, acordava com o protagonista perambulando pelo deserto em busca de preciosidades como um pedaço da cruz de Cristo ou um manto da Virgem Maria para presentear a tia que lhe financiara a viagem.
A obrigatoriedade de leitura cria um abismo de aversão, quase sempre ampliado, em grande parte, por alguns professores que, repassando obras estritamente relacionadas ao vestibular ou empurradas goela abaixo por programas, esquecem que Literatura não consiste em mera disciplina curricular. Literatura é um caminho de prazeres, de reflexões e de humanização.
Alguns anos atrás o jornalista Gilberto Dimenstein surpreendia-se com o número de estudantes de jornalismo que não liam nem jornal nem revista: 40%. Quantos professores buscaram livros literários desde que abandonaram os bancos acadêmicos? Quantos professores têm prazer na leitura e conseguem transmitir esse prazer aos seus alunos? Quantos professores possuem bibliotecas particulares? Precisamos de professores leitores ou, como nos sugere Marta Morais da Costa, professora da Universidade Federal do Paraná e da Pontifícia Universidade Católica, corremos o perigo de prejudicar a Literatura: “O professor que não lê deforma leitores”.
A nós, professores, a conscientização de elaborar um conhecimento Literário construído pedagogicamente na pluralidade, na democracia e na difícil tentativa de horizontalizar as relações entre quem ensina e quem aprende, rearticulando práticas pedagógicas por meio de estudo sistemático e de leitura freqüente. Dessa forma, provavelmente conseguiremos reunir alguns leitores mirins que levarão o hábito (quem sabe a paixão?) da leitura por vários anos. Será que podemos?
Vicentônio Regis do Nascimento Silva (www.vicentonio.blogspot.com) é crítico literário e educador. Assina a coluna Literatura, publicada semanalmente no Jornal de Assis (Assis – SP).
*Publicado originalmente no Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 22 de agosto de 2009.
- Quando você tem que terminar o livro?
Coloquei o marcador na página em que fora interrompido e pedi que me explicasse sua pergunta. “Quando” eu deveria “terminar o livro”? Se lia com tanto interesse, certamente possuía prazo para eventualmente escrever um resumo ou um texto para entregar a algum professor.
-Estou lendo por prazer.
A adolescente – acompanhada implicitamente por uma mulher que se sentava no banco dianteiro e de um homem segurando-se ao balaústre – lançou-me olhares inquiridores como se me perguntasse: ler por prazer?
Então me contou que lia exclusivamente livros da escola, abrindo a bolsa e mostrando-me dois do Eça de Queirós, provavelmente solicitados em algum vestibular: O primo Basílio e A Relíquia. O primo Basílio narra um adultério. Escritores passados (Machado de Assis, Flaubert, Tolstoi ou D.H. Lawrence) trataram largamente do tema assim como os contemporâneos (entre eles Autran Dourado, Dalton Trevisan e Luiz Antônio de Assis Brasil). Mesmo na marra, o adultério pode facilitar a leitura de uma obra como O Primo Basílio. E o que dizer de A Relíquia?
Uns dez anos atrás a li quando do fim de um ciclo de estudos. À noite, acordava com o protagonista perambulando pelo deserto em busca de preciosidades como um pedaço da cruz de Cristo ou um manto da Virgem Maria para presentear a tia que lhe financiara a viagem.
A obrigatoriedade de leitura cria um abismo de aversão, quase sempre ampliado, em grande parte, por alguns professores que, repassando obras estritamente relacionadas ao vestibular ou empurradas goela abaixo por programas, esquecem que Literatura não consiste em mera disciplina curricular. Literatura é um caminho de prazeres, de reflexões e de humanização.
Alguns anos atrás o jornalista Gilberto Dimenstein surpreendia-se com o número de estudantes de jornalismo que não liam nem jornal nem revista: 40%. Quantos professores buscaram livros literários desde que abandonaram os bancos acadêmicos? Quantos professores têm prazer na leitura e conseguem transmitir esse prazer aos seus alunos? Quantos professores possuem bibliotecas particulares? Precisamos de professores leitores ou, como nos sugere Marta Morais da Costa, professora da Universidade Federal do Paraná e da Pontifícia Universidade Católica, corremos o perigo de prejudicar a Literatura: “O professor que não lê deforma leitores”.
A nós, professores, a conscientização de elaborar um conhecimento Literário construído pedagogicamente na pluralidade, na democracia e na difícil tentativa de horizontalizar as relações entre quem ensina e quem aprende, rearticulando práticas pedagógicas por meio de estudo sistemático e de leitura freqüente. Dessa forma, provavelmente conseguiremos reunir alguns leitores mirins que levarão o hábito (quem sabe a paixão?) da leitura por vários anos. Será que podemos?
Vicentônio Regis do Nascimento Silva (www.vicentonio.blogspot.com) é crítico literário e educador. Assina a coluna Literatura, publicada semanalmente no Jornal de Assis (Assis – SP).
*Publicado originalmente no Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 22 de agosto de 2009.
quinta-feira, 13 de agosto de 2009
Soninho
O cinto de segurança apertava o pescoço. A parte superior parecia enforcá-lo a cada curva acentuada ou freada brusca. Forçou bem os olhos sonolentos na estrada noturna, verificou a falta de bases de fiscalização ou de carros policiais disfarçados atrás de arbustos, árvores ou cercas. Tirou o cinto.
Uma tranqüilidade confortável rapidamente invadiu-lhe o espírito. Esticou naturalmente as pernas, abriu os olhos com dificuldade três ou quatro vezes, segurou o volante com uma mão enquanto esticava o braço para se espreguiçar e procurar alguma lata de refrigerante possivelmente jogada embaixo do banco do carona ou enfiada no suporte bagunçado.
Uma árvore de galhos secos tirou uma imagem do fundo da memória: o medo. Lembrava quando assistira a algum filme de terror e, no meio da noite, gritara desesperado ao pensar que o galho invadiria seu quarto. O pai reclamou porque assistira ao filme, a mãe nem levantou da cama, a avó veio consolá-lo, acariciando os cabelos até que se acalmasse e dormisse. Pela manhã, avó e neto olhavam os galhos grandes, cujas pontas frágeis causaram tanto pânico.
Uma moto ultrapassando. O motociclista gesticulava exasperadamente. Erguia o dedo anular com ênfase. Não se fazem mais motoqueiros como antigamente, pensou enquanto encolhia e voltava a esticar as pernas, acomodando a cabeça no encosto da poltrona do carro ao mesmo tempo em que retornava à quinta marcha, olhos satisfeitos, ponteiro pouco mais de cento e dez quilômetros por hora.
Lembrava então da primeira vez que ligara um carro: o pai dissera-lhe para deixar o câmbio em ponto morto, acelerando vagarosamente para esquentar o motor e avivar as articulações do carro. Obviamente um automóvel não era uma pessoa para possuir articulações, mas o pai falava desse jeito: articulações. Ele ligou o carro e acelerava calmamente. Ficasse assim três minutos enquanto entrava em casa para pegar a carteira de habilitação, documento do carro e alguns trocados para abastecerem a máquina, comerem cachorro-quente e tomarem Coca-Cola. Três minutos pareciam prolongarem-se por cinco horas. Olhou bem o câmbio. Como mesmo engatava a primeira? Assim, para frente?
A surra do pai deixara-o sete dias na cama. A avó fazia companhia na parte da tarde, depois que os desenhos da manhã acabavam. Contava-lhe histórias, anedotas, causos. Quantos causos. Impossível colocar todos os causos num livro. Mesmo que o livro tivesse mais de cinco mil páginas. Carro sem seguro. A poupança do pai pagou o carrinho de pipocas do vizinho que trabalhava na frente de casa, a bicicleta de um menino, o hospital, os remédios e os curativos de dona Fran, que voltava cheia de sacolas do supermercado.
Se pudesse voltar no tempo, faria tudo de novo. De novo, sim, falava se acomodando melhor depois de um carro que vinha em sentido contrário quase sair da pista para não colidir. Que tipo de motoristas se fazem hoje em dia, se questionava.
Se pudesse criar tempo, voltar no tempo, parar o tempo...
*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 13 de agosto de 2009.
Uma tranqüilidade confortável rapidamente invadiu-lhe o espírito. Esticou naturalmente as pernas, abriu os olhos com dificuldade três ou quatro vezes, segurou o volante com uma mão enquanto esticava o braço para se espreguiçar e procurar alguma lata de refrigerante possivelmente jogada embaixo do banco do carona ou enfiada no suporte bagunçado.
Uma árvore de galhos secos tirou uma imagem do fundo da memória: o medo. Lembrava quando assistira a algum filme de terror e, no meio da noite, gritara desesperado ao pensar que o galho invadiria seu quarto. O pai reclamou porque assistira ao filme, a mãe nem levantou da cama, a avó veio consolá-lo, acariciando os cabelos até que se acalmasse e dormisse. Pela manhã, avó e neto olhavam os galhos grandes, cujas pontas frágeis causaram tanto pânico.
Uma moto ultrapassando. O motociclista gesticulava exasperadamente. Erguia o dedo anular com ênfase. Não se fazem mais motoqueiros como antigamente, pensou enquanto encolhia e voltava a esticar as pernas, acomodando a cabeça no encosto da poltrona do carro ao mesmo tempo em que retornava à quinta marcha, olhos satisfeitos, ponteiro pouco mais de cento e dez quilômetros por hora.
Lembrava então da primeira vez que ligara um carro: o pai dissera-lhe para deixar o câmbio em ponto morto, acelerando vagarosamente para esquentar o motor e avivar as articulações do carro. Obviamente um automóvel não era uma pessoa para possuir articulações, mas o pai falava desse jeito: articulações. Ele ligou o carro e acelerava calmamente. Ficasse assim três minutos enquanto entrava em casa para pegar a carteira de habilitação, documento do carro e alguns trocados para abastecerem a máquina, comerem cachorro-quente e tomarem Coca-Cola. Três minutos pareciam prolongarem-se por cinco horas. Olhou bem o câmbio. Como mesmo engatava a primeira? Assim, para frente?
A surra do pai deixara-o sete dias na cama. A avó fazia companhia na parte da tarde, depois que os desenhos da manhã acabavam. Contava-lhe histórias, anedotas, causos. Quantos causos. Impossível colocar todos os causos num livro. Mesmo que o livro tivesse mais de cinco mil páginas. Carro sem seguro. A poupança do pai pagou o carrinho de pipocas do vizinho que trabalhava na frente de casa, a bicicleta de um menino, o hospital, os remédios e os curativos de dona Fran, que voltava cheia de sacolas do supermercado.
Se pudesse voltar no tempo, faria tudo de novo. De novo, sim, falava se acomodando melhor depois de um carro que vinha em sentido contrário quase sair da pista para não colidir. Que tipo de motoristas se fazem hoje em dia, se questionava.
Se pudesse criar tempo, voltar no tempo, parar o tempo...
*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 13 de agosto de 2009.
quinta-feira, 6 de agosto de 2009
Uma estrela no céu
Para Zé Poeta, pai de Tábata (em memória)
Minha ex-namorada e amiga Luciene convidou-me mais ou menos em 2008 para participar da formatura. Concluiria o bacharelado em química e telefonava-me para que não assumisse nenhum compromisso em 2009 de modo que, em janeiro deste ano, os pais e eu viajamos para Indaiatuba.
Saímos no sábado de madrugada, chegamos na hora do almoço, passamos a tarde na casa da tia e à noite, depois de esperar sua chegada do salão de beleza, partimos para Sorocaba, onde ela estudava. Ficamos até o fim do baile. Cheguei às seis horas da manhã e às oito e meia o pai dela já gritava apressando-nos para tomarmos café, almoçarmos e pegarmos o caminho de volta para casa.
Alguém me perguntou se minha namorada não sentia ciúmes. Luciene havia sido minha namorada, agora era minha amiga, convidara-me para as festividades e eu percorrera quase quinhentos quilômetros para isso. Falei que não tinha problemas. O alguém insistiu, perguntando por que gostava de Luciene a ponto de deixar meus afazeres.
Todas as mulheres – e também os homens – nascem iguais. As mulheres são estrelas. Nascem como estrelas do mar: escondidas, na lama, na escuridão, insignificantes, feias. As estrelas do mar têm a possibilidade de evoluir e se transformarem em estrelas do céu ocupando um lugar essencial, de grande visibilidade, cheias de luz para iluminar os caminhos mais diferentes e inspirar idéias. Tão importantes quanto o ar, a água, a comida, a poesia, a Literatura ou a música. Lindas, fabulosas, indescritíveis.
A maioria das mulheres nasce estrela do mar. Sempre será apenas estrela do mar. Entretanto, algumas têm a capacidade de mudar o rumo das próprias vidas, de transformar as situações mais melancólicas num espetáculo de beleza extraordinária, poética e musical: essas são as que abandonam a escuridão do mar e se transportam elegantemente ao céu. Luciene, Adriana (minha namorada), minha mãe, Dona Laura, Dona Isaura e dezenas de mulheres são estrelas do céu.
Semanas atrás meu pai entrou na cozinha nos comunicando da morte de Tábata, filha de Zé Poeta. Lembrei-me que tínhamos ido doar sangue para que ela fizesse uma cirurgia. Pensei em prestar solidariedade ao Zé Poeta, mas as circunstâncias me impediram de encontrá-lo. Pretendia dizer-lhe palavras de consolo, de conforto, de ternura, porém percebi que estava errado. Por que ficar triste?
Ao assumir uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, o escritor Guimarães Rosa disse que as pessoas não morrem. Elas ficam encantadas. Observando por esse ângulo, encantadas ficam as imagens, as falas, os momentos e as aventuras encenadas por pais e filhos. Quando, por qualquer motivo, pais e filhos são obrigados a se separarem, apenas as lembranças boas, os momentos felizes, as situações engraçadas, as broncas desnecessárias, a desobediência consciente, os suspiros inconformados, a convivência simples e os instantes marcantes se fincam na memória e são eternizados.
Pais e filhos passarão o próximo domingo comemorando o dia dos pais. Como geralmente fazemos em minha casa, minha namorada e minha filha virão de Paraguaçu, meu irmão provavelmente trará a namorada dele, meu outro irmão dormirá, minha mãe se enfiará prazerosamente na cozinha. Como pais e filhos que ainda não estão separados, festejaremos o dia dos pais na casa cujas portas sempre estão abertas para você, Zé Poeta.
Meus irmãos e eu poderemos presentear meu pai com um livro, um disco ou um filme. Um livro, um disco ou um filme são presentes que mais cedo ou mais tarde serão lançados no esquecimento. O pai dificilmente lembrará o presente e os filhos jamais imaginarão que presentearam o pai. Bons presentes são os utilizados todos os dias. E, nesse ponto, fico feliz por você, Zé Poeta. Porque você é um dos poucos que, na noite do dia dos pais, poderá olhar orgulhoso para cima e vislumbrar a estrela Tábata, a estrela que você ajudou a fixar permanentemente no céu. A estrela que com magnitude, singularidade, beleza e ousadia ilumina o universo e nos mostra os trajetos da perseverança, da persistência, da alegria, do amor.
*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 6 de agosto de 2009.
Minha ex-namorada e amiga Luciene convidou-me mais ou menos em 2008 para participar da formatura. Concluiria o bacharelado em química e telefonava-me para que não assumisse nenhum compromisso em 2009 de modo que, em janeiro deste ano, os pais e eu viajamos para Indaiatuba.
Saímos no sábado de madrugada, chegamos na hora do almoço, passamos a tarde na casa da tia e à noite, depois de esperar sua chegada do salão de beleza, partimos para Sorocaba, onde ela estudava. Ficamos até o fim do baile. Cheguei às seis horas da manhã e às oito e meia o pai dela já gritava apressando-nos para tomarmos café, almoçarmos e pegarmos o caminho de volta para casa.
Alguém me perguntou se minha namorada não sentia ciúmes. Luciene havia sido minha namorada, agora era minha amiga, convidara-me para as festividades e eu percorrera quase quinhentos quilômetros para isso. Falei que não tinha problemas. O alguém insistiu, perguntando por que gostava de Luciene a ponto de deixar meus afazeres.
Todas as mulheres – e também os homens – nascem iguais. As mulheres são estrelas. Nascem como estrelas do mar: escondidas, na lama, na escuridão, insignificantes, feias. As estrelas do mar têm a possibilidade de evoluir e se transformarem em estrelas do céu ocupando um lugar essencial, de grande visibilidade, cheias de luz para iluminar os caminhos mais diferentes e inspirar idéias. Tão importantes quanto o ar, a água, a comida, a poesia, a Literatura ou a música. Lindas, fabulosas, indescritíveis.
A maioria das mulheres nasce estrela do mar. Sempre será apenas estrela do mar. Entretanto, algumas têm a capacidade de mudar o rumo das próprias vidas, de transformar as situações mais melancólicas num espetáculo de beleza extraordinária, poética e musical: essas são as que abandonam a escuridão do mar e se transportam elegantemente ao céu. Luciene, Adriana (minha namorada), minha mãe, Dona Laura, Dona Isaura e dezenas de mulheres são estrelas do céu.
Semanas atrás meu pai entrou na cozinha nos comunicando da morte de Tábata, filha de Zé Poeta. Lembrei-me que tínhamos ido doar sangue para que ela fizesse uma cirurgia. Pensei em prestar solidariedade ao Zé Poeta, mas as circunstâncias me impediram de encontrá-lo. Pretendia dizer-lhe palavras de consolo, de conforto, de ternura, porém percebi que estava errado. Por que ficar triste?
Ao assumir uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, o escritor Guimarães Rosa disse que as pessoas não morrem. Elas ficam encantadas. Observando por esse ângulo, encantadas ficam as imagens, as falas, os momentos e as aventuras encenadas por pais e filhos. Quando, por qualquer motivo, pais e filhos são obrigados a se separarem, apenas as lembranças boas, os momentos felizes, as situações engraçadas, as broncas desnecessárias, a desobediência consciente, os suspiros inconformados, a convivência simples e os instantes marcantes se fincam na memória e são eternizados.
Pais e filhos passarão o próximo domingo comemorando o dia dos pais. Como geralmente fazemos em minha casa, minha namorada e minha filha virão de Paraguaçu, meu irmão provavelmente trará a namorada dele, meu outro irmão dormirá, minha mãe se enfiará prazerosamente na cozinha. Como pais e filhos que ainda não estão separados, festejaremos o dia dos pais na casa cujas portas sempre estão abertas para você, Zé Poeta.
Meus irmãos e eu poderemos presentear meu pai com um livro, um disco ou um filme. Um livro, um disco ou um filme são presentes que mais cedo ou mais tarde serão lançados no esquecimento. O pai dificilmente lembrará o presente e os filhos jamais imaginarão que presentearam o pai. Bons presentes são os utilizados todos os dias. E, nesse ponto, fico feliz por você, Zé Poeta. Porque você é um dos poucos que, na noite do dia dos pais, poderá olhar orgulhoso para cima e vislumbrar a estrela Tábata, a estrela que você ajudou a fixar permanentemente no céu. A estrela que com magnitude, singularidade, beleza e ousadia ilumina o universo e nos mostra os trajetos da perseverança, da persistência, da alegria, do amor.
*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 6 de agosto de 2009.
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