quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Soninho

O cinto de segurança apertava o pescoço. A parte superior parecia enforcá-lo a cada curva acentuada ou freada brusca. Forçou bem os olhos sonolentos na estrada noturna, verificou a falta de bases de fiscalização ou de carros policiais disfarçados atrás de arbustos, árvores ou cercas. Tirou o cinto.

Uma tranqüilidade confortável rapidamente invadiu-lhe o espírito. Esticou naturalmente as pernas, abriu os olhos com dificuldade três ou quatro vezes, segurou o volante com uma mão enquanto esticava o braço para se espreguiçar e procurar alguma lata de refrigerante possivelmente jogada embaixo do banco do carona ou enfiada no suporte bagunçado.

Uma árvore de galhos secos tirou uma imagem do fundo da memória: o medo. Lembrava quando assistira a algum filme de terror e, no meio da noite, gritara desesperado ao pensar que o galho invadiria seu quarto. O pai reclamou porque assistira ao filme, a mãe nem levantou da cama, a avó veio consolá-lo, acariciando os cabelos até que se acalmasse e dormisse. Pela manhã, avó e neto olhavam os galhos grandes, cujas pontas frágeis causaram tanto pânico.

Uma moto ultrapassando. O motociclista gesticulava exasperadamente. Erguia o dedo anular com ênfase. Não se fazem mais motoqueiros como antigamente, pensou enquanto encolhia e voltava a esticar as pernas, acomodando a cabeça no encosto da poltrona do carro ao mesmo tempo em que retornava à quinta marcha, olhos satisfeitos, ponteiro pouco mais de cento e dez quilômetros por hora.

Lembrava então da primeira vez que ligara um carro: o pai dissera-lhe para deixar o câmbio em ponto morto, acelerando vagarosamente para esquentar o motor e avivar as articulações do carro. Obviamente um automóvel não era uma pessoa para possuir articulações, mas o pai falava desse jeito: articulações. Ele ligou o carro e acelerava calmamente. Ficasse assim três minutos enquanto entrava em casa para pegar a carteira de habilitação, documento do carro e alguns trocados para abastecerem a máquina, comerem cachorro-quente e tomarem Coca-Cola. Três minutos pareciam prolongarem-se por cinco horas. Olhou bem o câmbio. Como mesmo engatava a primeira? Assim, para frente?

A surra do pai deixara-o sete dias na cama. A avó fazia companhia na parte da tarde, depois que os desenhos da manhã acabavam. Contava-lhe histórias, anedotas, causos. Quantos causos. Impossível colocar todos os causos num livro. Mesmo que o livro tivesse mais de cinco mil páginas. Carro sem seguro. A poupança do pai pagou o carrinho de pipocas do vizinho que trabalhava na frente de casa, a bicicleta de um menino, o hospital, os remédios e os curativos de dona Fran, que voltava cheia de sacolas do supermercado.

Se pudesse voltar no tempo, faria tudo de novo. De novo, sim, falava se acomodando melhor depois de um carro que vinha em sentido contrário quase sair da pista para não colidir. Que tipo de motoristas se fazem hoje em dia, se questionava.

Se pudesse criar tempo, voltar no tempo, parar o tempo...


*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 13 de agosto de 2009.

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