terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

AVENTURA DE CURITIBA


Se você gosta de revolução de costumes, não pode perder a nova linha da empresa Guerino Seiscento: ela sai de algum lugar – Penápolis? – arrastando todos os passageiros do caminho – Tupã? Quatá? Paraguaçu Paulista? – até chegar a Assis e de lá, tomando rumo por Londrina, descer até a capital dos paranaenses.
Como provavelmente nunca saíram de suas cidades e desejam ardentemente conhecer a cidade invejável das revistas, os passageiros extravasam a ansiedade por diálogos intempestivos, intermináveis e audíveis.
Você encontrará o pai com três ou quatro filhos, gritando o tempo inteiro que, em Curitiba, nadarão na piscina do Tio Conrado. Como se não bastassem os gritos, o pai também ouvirá músicas peculiares e, a cada cinco ou seis minutos, gritará seus refrãos.
Você também encontrará a mulher que, no banco traseiro, após as insistentes entoações do pai, escolherá algumas músicas religiosas e, sem desconfiômetro, bradará os hinos sem indagar aos demais se aceitam sua apresentação artística gratuita.
Você se deliciará com o pessoal que, de férias, conversará ou pelo telefone ou pelo zap com filhos, netos, mães e parentes em geral sobre as qualidades do ônibus: banheiro no piso térreo – afinal, eles estão no primeiro andar, vista panorâmica, água mineral e ar-condicionado – banco de couro, suporte para as pernas, saquinhos plásticos para o lixo e luzes no chão.
Quando você imaginar que nenhuma outra surpresa poderá ocorrer, uma mulher de Assis, seguida de outra de Penápolis, arrancará os tênis, estenderá as pernas sobre o painel e, em poucos minutos, o ônibus inteiro se inebriará com os olores de queijo francês, guardado a sete chaves por sete séculos em algum calabouço.
Obviamente a aventura renderá boas lembranças a ponto de um cronista encher as linhas de sua coluna ou a menina completar os espaços em branco da redação sobre as férias, pedida pela professora no primeiro dia de aula. Se você quiser uma aventura – viajar até Curitiba – não perca, por nada neste mundo, a linha da Guerino Seiscento que passa em Assis/SP. Mas, nunca siga nela caso precise assistir ou ministrar aulas ou prestar concursos.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

OU O CARRO, OU A MÃE


Desde que virara coroinha, a mãe falava pausadamente daquele que, nove meses de gestação e dez anos de vida, transformara-se em seu orgulho. Seguia os passos de Francisco de Assis, santo dos animais e conhecido por ter abandonado o patrimônio familiar para se dedicar às causas do espírito. Transbordava de felicidade quando ele transportava os apetrechos da celebração eucarística.
O menino não precisava seguir os passos do padre, mas se aprendesse a colocar em primeiro lugar bondade, abnegação e amor ao próximo, tornar-se-ia um homem pacífico no mundo de violências. Talvez por essa razão incentivasse-o a procurar a melhor maneira de dar resposta às situações mais incomuns.
Exemplar, lavava o próprio prato, recolhia suas roupas, arrumava o quarto, organizava os cadernos e os livros, chegava vinte minutos antes da catequese e, quando indagado a respeito de trecho bíblico, erguia o braço, respondendo palavra por palavra do fragmento solicitado.
A mãe comentava com as amigas da antiga faculdade da convicção de que, acontecesse o que acontecesse, o filho jamais seguiria o erro e de sua boca nunca sairia palavra que não exalasse doçura.
A formação religiosa do primogênito encaminhava-se bem até os festejos de fim de ano quando o amigo de carro de ar-condicionado resolveu visitar a família. Entre uma conversa e outra, a ideia de tomar sorvete no Parque do Povo. O grupo dividir-se-ia em dois automóveis já que, ao total, somados o amigo, a mãe e a amiga do amigo aos dois filhos, ao marido e a ela, totalizavam sete pessoas.
Fim de tarde tranquilo se o amigo não a tivesse angustiado com a dúvida: ele preferiria a família sem ar condicionado ou um estranho com ar condicionado?
À saída, o menino hipnoticamente encaminhou-se ao carro do estranho. A mãe gritou: - Para onde você vai? Nosso carro está aqui.
- Vou no carro do tio, sintetizou o menino, sem estacar o passo.
- Você vai abandonar sua família? O que vai ser da gente sem você?
Ele parou. Virou-se. Depois de alguns segundos:
- Deus proverá – e continuou arrastando os chinelos até o carro do “tio”, estimulando o irmão mais novo a pegar o melhor lugar.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

APRENDENDO INGLÊS


As oportunidades da rede mundial de computadores: sexo, exercício físico, comida, livros, viagens, móveis, remédios, hotéis, sapatos e, até mesmo, curso de idiomas. Provavelmente a hipótese da dificuldade paterna passou despercebida pelo filho quando pagou curso de inglês que prometia, em 12 parcelas de 500 reais e 48 semanas de atividade pedagógica, tornar qualquer um fluente na língua de Dickens.
O filho mexeu no mouse, ajeitou a tela do computador, ajustou o som, apontou as setas de “volta” e de “adiantamento” das lições on line, anotou, em um caderno, o telefone para conversar com especialistas sobre problemas técnicos, despediu-se do velho exigindo, nos próximos três meses, o domínio básico do idioma que o tornaria independente para visitá-lo na Irlanda.
- Calma, papai. Tenha muita calma.
Os comandos – didaticamente dispostos em fichas coloridas – pareciam simples: solucionou o primeiro, o segundo e o terceiro exercícios numa quinta-feira, retornando às lições na manhã seguinte. Ultrapassou sem dificuldades o quarto, o quinto e o sexto. Em seguida, o sétimo, o oitavo e o nono. Porém, concentrava todas as suas forças contra a imensa barreira da décima lição. Assimilara bem os indicadores do passado e do presente, mas que raio significava aquele verbo que, no presente, indicava algo realizado no passado presente que, por sua vez, diferenciava-se completamente do passado remoto, absolutamente distinto do passado cujo conteúdo manifestava incertezas?
Passou a mão no telefone. Milagrosamente a telefonista o atendeu em menos de três minutos. Depois de explicar suas dúvidas na composição sintática e semântica, ouviu a justificativa de que a função daquele número limitava-se a esclarecer problemas técnicos – páginas que não abriam, senhas bloqueadas, supressão de som, imagens incompletas...
- Como vou resolver meu problema com o idioma?
- Isso eu não sei, senhor, respondeu a atendente. Aqui, resolvo apenas problemas técnicos. Tenha um excelente dia. Fique na linha para avaliar meu atendimento.
À noite, quando o filho indagou se o inglês abria horizontes, o pai, olhando o computador partido ao meio por uma cadeirada, asseverou:
- Está abrindo muitas coisas!